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PROTEÇÃO AOS PODEROSOS – Polícia usa extermínio para solidificar exclusão social, diz Juarez Tavares

A brutalidade policial foi o assunto da semana no Brasil. No Rio de Janeiro, uma operação na madrugada de terça-feira (24/5) deixou pelo menos 23 mortos na Vila Cruzeiro, Zona Norte da cidade. Um dia depois, em Umbaúba (SE), agentes da Polícia Rodoviária Federal prenderam um homem no porta-malas de uma viatura e jogaram spray de pimenta e gás lacrimogênio no compartimento. Ele morreu por asfixia mecânica e insuficiência respiratória aguda.


Esses episódios recentes ilustram o argumento do advogado e professor de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Juarez Tavares no livro Crime: crença e realidade, primeira obra publicada pela editora Da Vinci Livros, selo da histórica livraria do Centro do Rio.


Segundo ele, a polícia não serve para proteger a população de atos antissociais, mas é, na realidade, “um instrumento brutal de contenção de liberdade e solidificação da exclusão, até mesmo por meio do extermínio”.

Em entrevista à ConJur, Tavares afirmou que a polícia brasileira protege seletivamente a população. “Se alguém que mora nos Jardins, em São Paulo, ou no Leblon, no Rio de Janeiro, chamar a polícia, com certeza ela vai proteger a vítima. Mas se for alguém em outras condições, ela não protege ou, se proteger, será diante de fatos muito graves, que não podem ser simplesmente esquecidos.”

Por isso, o professor defende a extinção da Polícia Militar e, no futuro, o fim de todas as polícias. Na visão dele, seria possível substituir a corporação por outro órgão, com agentes administrativos desarmados, que cuidassem do tema de proteção e segurança. No entanto, o advogado ressalta que a população não aceitaria propostas do tipo no atual cenário.

Em Crime: crença e realidade, Juarez Tavares, que já foi procurador da República, argumenta que a pena não serve para punir que praticou um delito ou prevenir novos crimes. Segundo ele, a pena tem a função de manter a estrutura do Estado e da sociedade. E a crença na pena fortalece o poder, que, justificando-a com base em sua aceitação social, utiliza-a como instrumento para a repressão das classes subalternas e dos inimigos políticos.

Tavares é favorável à extinção da pena. O primeiro passo seria eliminar a pena de prisão, substituindo-a por medidas alternativas. Com o desenvolvimento e o estabelecimento de uma sociedade coesa, na qual o sentimento de solidariedade fosse muito forte, seria possível acabar com o conceito de crime, opina o professor.

Enquanto isso não acontece, o Direito Penal deve ter o papel de elaborar regras de contenção do poder punitivo. É a única finalidade legítima da matéria em um Estado Democrático de Direito, avalia.

Leia a entrevista:


ConJur — O senhor afirma no livro que a polícia não serve para proteger a população de atos antissociais, mas é, na realidade, “um instrumento brutal de contenção de liberdade e solidificação da exclusão, até mesmo por meio do extermínio”. É possível haver uma polícia mais humanizada, que efetivamente proteja a população?
Juarez Tavares — Eu tenho muitas dúvidas. A polícia foi criada justamente para a contenção de movimentos opositores. Depois da Revolução Francesa, a polícia se constituiu como um instrumento de manutenção do regime vigente, ou seja, da burguesia. Então, ela sempre será um instrumento do Estado para fortalecer seu poder, não é uma polícia cidadã.

Essa relação entre polícia e poder é mais nítida e direta no Brasil, até porque nos países centrais houve uma certa evolução no sentido de conter os excessos policiais. Ainda que haja excessos policiais na Alemanha e em outros países, há uma legislação já culturalmente arraigada de sua contenção. No Brasil, há um compromisso para expandir o poder policial com o objetivo de controlar a população pobre através dos órgãos de repressão, que atuam praticamente sem limites.

Por exemplo, há vários casos evidentes de policiais que cometeram chacinas. Muitas vezes, o Ministério Público entendeu que não havia prova de sua participação nas mortes. Isso mostra que há uma seletividade do poder penal e, por outro lado, que a polícia é um instrumento de poder.

Há um estudo de um colombiano da década de 1990, em que ele faz uma análise muito rigorosa de que, se a polícia militarizada fosse extinta, a criminalidade cairia 50%. Isso porque o número de fatos puníveis, de fatos criminosos que são atribuíveis à polícia militarizada é enorme. É incrível, mas estatisticamente só a extinção da polícia militarizada extinguiria 50% da criminalidade. Claro, sempre restaria a criminalidade comum, como ocorre em todos os países, com roubo, furto, tráfico de drogas etc.


ConJur — Então a polícia não protege a população, no fim das contas?
Juarez Tavares — Ela protege seletivamente. Se alguém que mora nos Jardins, em São Paulo, ou no Leblon, no Rio de Janeiro, chamar a polícia, com certeza ela vai proteger a vítima. Mas se for alguém em outras condições, ela não protege ou, se proteger, será diante de fatos muito graves, que não podem ser simplesmente esquecidos.

ConJur — Com essa proteção deficiente e desigual, faria mais sentido extinguir a polícia?
Juarez Tavares — Essa é uma boa conclusão, embora a população não a aceite. Pelo menos, poder-se-ia pensar em extinguir a polícia militarizada. Uma polícia militarizada dá sempre o sentido de que todos estamos em uma guerra do bem contra o mal. A extinção será uma proposta para o futuro, para aqueles que acreditem que tudo possa mudar. A polícia poderia ser substituída por outra corporação, por outro tipo de agentes administrativos que cuidassem do tema de proteção e segurança. Poderia restar a polícia judiciária, encarregada da investigação criminal, mas não a polícia militarizada.

ConJur — Esses agentes ficariam nas ruas, exercendo o que se chama hoje de “policiamento ostensivo”?
Juarez Tavares — Sim, exatamente. A polícia inglesa, por exemplo, não tem armas. A não ser a polícia secreta, que, na Inglaterra, chega a matar gente, como ocorreu com aquele brasileiro, Jean Charles, que foi morto no metrô de Londres, confundido com um terrorista. Nítido caso de racismo, claro. Mas a polícia inglesa das ruas não tem armas. Essa atividade policial é menos letal sem armas do que com armas.

ConJur — O senhor afirma que, em uma sociedade como a brasileira, o conceito de ação social só pode ser construído se forem levados em conta aspectos como histórico de povoamento e divisão de terra, diversidade cultural, tradição escravista, exploração capitalista, fusão entre poder e consórcios financeiros e econômicos, marginalização de grupos desfavorecidos e assimilação e difusão da violência como forma de solução de conflitos. Considerando todos esses aspectos, como punir, por exemplo, pobres que traficam drogas ou praticam roubos de celular?
Juarez Tavares — Esse é um problema sério. Recentemente está-se criando uma mentalidade de que é possível, para a proteção da propriedade, matar o sujeito que furtou um celular, o que é de uma total desproporção, porque a vida humana vale muito mais do que a propriedade de um celular. Mas está se concretizando esse tipo de mentalidade, que está presente inclusive na academia. Ensina-se que é possível matar uma pessoa para a proteção da propriedade quando não haja outro recurso de fazê-lo. Porém, essa reação é desproporcional e se caracteriza como uma forma irracional de defesa. O direito não pode admitir que seus institutos sejam irracionais.

Agora, é evidente que o delito não é uma simples ação individual, mas uma ação social. Não é ação puramente individual porque ninguém pratica um delito sozinho, sem que, pelo menos, outra pessoa sofra suas consequências. Como o delito é uma ação social, ele recebe, em sua configuração, toda a influência das relações intersubjetivas. Inclusive do ponto de vista histórico, isso está nítido na formação brasileira, na qual o escravismo durou mais de 350 anos e o país foi dominado pelo estrangeiro, com expropriação e domínio de terras indígenas, e com a promoção de genocídio desses indígenas.

Claro que isso se reflete na configuração de uma conduta social para caracterizá-la como conduta delituosa. Então, na configuração do que é uma conduta delituosa, temos que verificar como nossa formação histórica identifica determinados comportamentos como antissociais.

Por outro lado, pode-se dizer que, à medida que os comportamentos antissociais são definidos pelo poder político dominante, eles não refletem o interesse de todos, mas sim o de uma minoria. É o interesse hegemônico que predomina sobre população em geral e influencia as pessoas a pensarem de acordo com a ideologia dominante.

ConJur — Quanto a isso, o senhor afirma que a proibição de uma conduta não é um ato vinculado necessariamente à estrutura ou aos efeitos da conduta, e sim um ato político de poder, que busca justificação em diversos fundamentos éticos ou jurídicos. Além disso, diz que é preciso rever sempre os processos de proibição, pois a proibição que implique a destruição ou dessocialização da pessoa humana é incompatível com qualquer regra social de convivência. O Legislativo brasileiro analisa esses critérios ao elaborar e rever leis?
Juarez Tavares — O Legislativo brasileiro não analisa esses critérios. Houve até um projeto de lei, da legislatura passada, proposto pelo então deputado Wadih Damous (PT-RJ), para que qualquer projeto de criminalização de condutas passasse por uma avaliação acerca dos impactos sociais que aquela criminalização deveria produzir. Esse projeto, infelizmente, não foi adiante. Mas é uma iniciativa espetacular, porque vincula o Legislativo a verificar se a criminalização de uma conduta efetivamente tem uma relação com os efeitos que ela produzirá na sociedade e quais são os efeitos negativos e positivos dessa criminalização. Isso é fundamental.

Nós gastamos uma verba enorme, por exemplo, na repressão às drogas, e o mundo inteiro hoje está fomentando uma certa legalização das drogas. É preciso rever essa política antidrogas, até porque ela gera extermínio. É justamente na execução dessa “guerra às drogas” que os policiais ingressam nas favelas e desenvolvem atividades que vão desembocar no extermínio.

ConJur — O senhor afirma que as funções retributiva e preventiva da pena são meras justificativas para o que, na verdade, corresponde a uma lógica de poder — a imposição da pena. Então a pena não tem função?
Juarez Tavares — A pena tem a função de manter a estrutura do Estado e da sociedade, tal como está. A pena atua de dois modos. Primeiro, através da suposição de que a prática de um ato proibido irá acarretar certas consequências indesejáveis e, por isso, precisa ser reprimido. Desse modo, quer-se obter da sociedade uma certa disciplina ou adesão em face dessa ação punitiva, dessa ameaça da pena.

Em segundo lugar, quer-se demonstrar que, para os infratores, a pena funciona, porque os coloca na prisão e os submete a sofrimentos maiores do que a privação da liberdade. É a chamada inocuização.

Contudo, a pena tem que ser encarada sob outros enfoques: a pena como figura abstrata prevista na legislação penal e a pena concreta, que é aquela executada nas prisões. A pena cominada, a pena abstrata, é uma pena ficta, que se descreve como privativa de liberdade. O Brasil só prevê a pena de morte no caso de guerra externa. Nossa pena básica é a de prisão. Observe-se que temos uma pena de prisão temporária, ainda que o Legislativo sempre procure aumentar o tempo de encarceramento, de modo a perpetuar esse tempo de prisão.


Contudo, a prisão que está na lei não é a prisão que se executa concretamente. A prisão que se executa concretamente não retira apenas a liberdade do sujeito. Ela retira todos os demais direitos da pessoa humana. Submete essas pessoas a um sofrimento que não é admissível nem pela Constituição nem pela lei. A ordem jurídica não comporta esse tipo de procedimento.

Por isso, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal já começou a declarar o estado de inconstitucionalidade do sistema penitenciário brasileiro, na ADPF 347. Porque ele produz no sujeito sofrimentos que não estão previstos na legislação nem na Constituição. A Constituição prevê, claro, a pena privativa de liberdade, mas essa se destina apenas a privar a liberdade, não a privar todos os direitos do sujeito.

Veja-se que a prisão induz a mais criminalizações por ela mesma. Por exemplo, a criminalização do uso de celular na prisão, em plena era da comunicação. O Brasil é um dos poucos países do mundo que tem essa criminalização. Em outros países, o preso pode se comunicar com a família quando quiser, sem nenhum problema. Alega-se que a proibição tem como escopo impedir o funcionamento de grupos ou facções de criminosas, mas essas facções existem e a proibição não as impediu, nem vai impedi-las. A proibição apenas reforça o sentido da execução extensiva da pena privativa de liberdade para a limitação de outros direitos.

ConJur — Apesar disso, permanece uma crença na pena na sociedade e no aparato estatal. No que se baseia a crença na pena?
Juarez Tavares — A crença na pena vem de longe. Li recentemente um livro, Crítica da razão idolátrica, do Ricardo Timm de Souza, que mostra como a idolatria se afasta do humano e se sedimenta no objeto, como o objeto passa a ser outro tipo de divindade, capaz de captar a adesão das pessoas. O crime e a pena, a criminalização e a punição, são tipos de objetos, de políticas do Estado, que captam a adesão da comunidade, colocando-os como se fossem um objeto idolátrico.

Antes da modernidade, as pessoas tinham uma certa noção de que o ato criminoso era enunciado pelo príncipe porque ele detinha o poder, e esse poder era visível. Já antes da modernidade, desenvolveu-se a ideia de afastar, formalmente, o príncipe da edificação das leis e dar a entender que a lei não era um ato individual dele, mas um ato do Estado.

Uma vez que a criminalização não era identificada como ato individual do príncipe, passou a ser um ato que derivasse da vontade de todos. A norma proibitiva, como manifestação abstrata, começa a surgir justamente por esse tipo de ideologia, de criar uma forma neutra de avaliar as condições do delito. Essa forma neutra dá lugar à chamada “dogmática penal”, que é um sistema de saberes e regras que quer ser neutro — mas na verdade não é, porque é, geralmente, comprometido com o poder — para demonstrar à coletividade que o Estado está atuando em seu benefício.

ConJur — E na verdade não está.
Juarez Tavares — Não está. O Estado atua em benefício daqueles que Raimundo Faoro denominava “os donos do poder”. Max Weber já alertava que, para que isso acontecesse, era necessária uma certa burocracia que se afastasse da figura que estivesse na direção direta do poder. Por exemplo, a burocracia da Receita Federal se afasta do ministro da Fazenda e do presidente da República. Ela funciona por si mesma. Todo mundo acha que a burocracia é uma coisa neutra, disposta a beneficiar a todos. Na verdade, ela sedimenta a exclusão social, a desigualdade. Mas sedimenta de uma forma que não é vista como autoritária, e sim como uma forma sensível à população.

ConJur — A crença na pena fortalece o poder que, justificando-a com base em sua aceitação, utiliza-a como instrumento para a repressão das classes subalternas e dos inimigos políticos. Como o poder usa a pena no Brasil?
Juarez Tavares — O poder usa cada vez mais a pena como uma forma de afastar os chamados “indesejáveis”. Há um livro importante de um professor de Frankfurt, Hubert Beste, que fez uma pesquisa de mais de dez anos nas comunidades marginalizadas da cidade. Ele chegou a uma conclusão interessante: nas comunidades marginalizadas não havia distinção de raça, sexo, cor e origem.

Observe-se que um das coisas mais tensas na Europa é a questão da imigração. Os imigrantes, muitas vezes, são vistos como inimigos, pela população em geral, que acha que eles ocupam seus empregos e são todos delinquentes. Mas nessas comunidades marginalizadas os imigrantes não eram vistos como inimigos, porque conviviam com várias nacionalidades, com os alemães ou com os franceses, os quais estavam no mesmo bojo da marginalização. O inimigo dos grupos não era o imigrante, mas sim a polícia, que os reprimia. Portanto, nesses grupos não vigorava a questão da imigração, nem da raça, do sexo, da origem e do padrão econômico. A seleção não é feita no grupo, é feita pelo Estado. E aí o que acontece é que a pena vai recair, pelo princípio da seletividade, nos mais vulneráveis, que são aqueles que são objeto do sistema penal, principalmente os marginalizados, em qualquer país.

Sabe-se que é muito difícil um político ser submetido à prisão, salvo quando cair em desgraça e for elevado a bode expiatório do sistema. Em geral, quem está no poder manipula para que os seus semelhantes não sejam importunados pelo sistema penal. Mas quem está na periferia das cidades é vulnerável ao extremo. Qualquer fato que aconteça lhe é atribuído. Mesmo que não seja culpado, o vulnerável é acusado de alguma coisa. A pena funciona dessa maneira como instrumento de manutenção da vulnerabilidade.

ConJur — O senhor afirma que a prática de um ato proibido só tem valor quando afete uma ou mais pessoas. Assim, a conduta puramente individual não tem relevância. Dessa maneira, seria o caso de descriminalizar o uso e venda de drogas, por exemplo?
Juarez Tavares — Isso é evidente. Há um artigo da Constituição da Argentina (artigo 19) que diz que o ato só poderá ser apreciado pelo Estado quando causar um dano a terceiro. Esse artigo deveria estar em uma reforma constitucional brasileira, porque só quando há um dano a terceiro é que o Estado pode intervir. E não para punir o agressor, mas para proteger o agredido. Temos que inverter a regra da repressão.

A população acha que proibição de um ato tem a única finalidade de reprimir o agressor, de fazê-lo pagar pela infração. Na verdade, ela deveria ter a finalidade de proteger a vítima, não de agredir o infrator. Em face disso, podem ser propostas medidas alternativas à prisão.

No Brasil, as penas alternativas são muito criticadas. Porém, a função do Estado não deve ser a de punir, senão a de proteger. A prisão não pode ser o único instrumento de proteção. Para começar a se proteger a pessoa, é preciso estabelecer que só é possível caracterizar algo como fato delituoso quando houver um prejuízo, um dano ou mesmo um perigo concreto a terceiro. Sendo assim, é claro que a posse de drogas para uso próprio, que não produz esse dado, nem esse perigo, tem que ser descriminalizada.

ConJur — Mas o prejuízo a terceiro tem que ser efetivo?
Juarez Tavares — É preciso haver dano ou perigo de dano. Condição essencial para o enunciado de uma norma criminalizadora.

ConJur — O senhor também defende a extinção de crimes de perigo abstrato e uma restrição quanto aos crimes omissivos. Por quê?
Juarez Tavares — Os crimes de perigo abstrato são aqueles cujo resultado é presumido pelo legislador. Então, não há um resultado real, o resultado é presumido. O crime de tráfico de drogas, por exemplo, é um crime de perigo abstrato, pois se presume que alguém que o pratique, que tenha o poder de comercializar as drogas, produza um resultado. Porém, esse resultado, que se convencionou dizer que será uma ofensa para a saúde pública, não existe empiricamente. Na verdade, ninguém sabe no que consiste essa ideia de saúde pública. Não existe uma saúde pública, existe apenas saúde individual, ainda que seja de um número indeterminado de pessoas. Então, o tráfico de drogas supostamente ofenderia essa saúde pública, mas esse resultado é puramente presumido. E o direito penal não pode trabalhar com presunções. Assim, sou contra a criminalização com base em resultados presumidos.

Além disso, a lei penal tem também a finalidade, ao traçar as linhas da proibição, de dizer ao cidadão o que ele pode ou não pode fazer. Ela deve indicar como o cidadão deve se orientar em sua atividade concreta. Para que essa orientação seja eficiente, é preciso que a norma demonstre que aquela conduta ocasiona alguma alteração concretizada ou concretizável do mundo exterior. Quando a conduta é proibida apenas porque o legislador presume um resultado, o sujeito concretamente vinculado a uma atividade não vê qual malefício sua conduta pode causar. Os crimes de perigo abstrato são, dessa forma, incompatíveis com uma ordem constitucional, baseada no sujeito, na pessoa humana e não no Estado.

Penso que a Constituição deve ser vista como um instrumento a admitir que o cidadão tenha a possibilidade de participação real de decidir sobre as políticas públicas, ou seja, de ser executor da democracia. Fazendo parte da democracia, ele também deve receber do Estado as informações corretas para o que pode ou não pode fazer, para o que deve ou não deve evitar. Quando os resultados são presumidos, o cidadão não sabe ao certo quais serão as consequências de sua conduta, e perde a capacidade de ser partícipe das políticas públicas.

Os crimes omissivos servem, por sua vez, para um aumento da repressão, porque, normalmente, derivam de violação de deveres gerais. Claro que há deveres reais. Por exemplo, quando a mãe deixa de dar alimento ao filho e causa a morte da criança, ela produziu um resultado visível, a morte de um ser vivo. A omissão da mãe nesse caso é relevante.

E quando o crime omissivo está associado a deveres puramente abstratos? Por exemplo, o crime omissivo de um sujeito que, no exercício de sua profissão, não denuncia a lavagem de dinheiro. Esse crime é de perigo abstrato. Qual é o prejuízo da lavagem de dinheiro? O que causa? É uma questão puramente de execução de uma política monetária do Estado. Só isso. Então, devido a uma política monetária do Estado, criam-se crimes omissivos, e esses crimes omissivos aumentam, ampliam a repressão. Por isso mesmo, os tipos dos crimes omissivos têm que ser sempre interpretados restritivamente.

ConJur — A estipulação das penas não obedece a critérios, o senhor afirma, citando que as penalidades nascem da cabeça do legislador, a partir de seus interesses, sentimentos e objetivos. Seria possível estabelecer critérios válidos e justos para a determinação de penas?
Juarez Tavares — Vou contar uma história interessante. O grande jurista italiano Piero Calamandrei recorda um julgamento em que estava sendo decidida a sorte de um vendedor de cavalos, demandado por um comprador que queria reverter o negócio porque o cavalo era mordedor. A causa era totalmente favorável ao vendedor, o qual acabou vencedor, mas durante o julgamento foi muito marcante a atuação do Ministério Público que endossara a tese do comprador com os seguintes termos: “Sei, por experiência, quão perigosos são os cavalos mordedores: faz muitos anos, enquanto subia com meu filhinho em uma carruagem de aluguel, o cavalo lhe cravou os dentes em um braço deixando-o meio desmaiado de dor e de medo. A lei deve ser rigorosíssima contra os cavalos mordedores!” Assim, em qualquer assunto relacionado a cavalos, ele se opunha ferozmente ao implicado. Os sentimentos e suas experiências estão, portanto, impregnados na pessoa, assim como os preconceitos, as discriminações, o racismo. O legislador não foge disso, vai estabelecer a quantidade da pena conforme seus sentimentos, seus preconceitos e suas idiossincrasias.

Há outro perigo: como o legislador está muito distante da realidade concreta, ele passa a entender os números como se fossem números de uma jogada lotérica. Então, os números de anos de prisão, para ele, não significam nada. São meros números. Mas cinco anos na vida de uma pessoa é muita coisa. Para alguém que comete um furto de celular, a pena vai de um a quatro anos. Mas se o celular está no bolso de uma pessoa, e o ladrão, usando de destreza, furta o aparelho, a pena vai de dois a oito anos de reclusão. Veja, oito anos de prisão pelo furto de um celular? É uma coisa completamente irracional, uma loucura jurídica. Qual o critério quantitativo para avaliar a ofensa ao direito da vítima?

Há uma tendência, inclusive no parlamento brasileiro, de aumentar as penas. O parlamento chegou à conclusão de que aumentar a pena diminui o crime, o que é uma falácia, porque isso não diminui o crime. O crime continua. Na verdade, só aumenta a capacidade do Estado de reprimir as pessoas mais selecionadas.

Agora, há penas que são absurdamente desproporcionais. O Supremo Tribunal recentemente declarou a inconstitucionalidade da pena de dez a quinze anos para quem importa medicamento sem registro em órgão de vigilância sanitária (artigo 272, parágrafo 2º-B, do Código Penal). Imagine que alguém vá à Espanha ou Alemanha e compre, em uma farmácia ou mesmo em um supermercado, um fitoterápico para facilitar a digestão, que não tenha registro no Brasil, e o traga para o país, em sua bagagem. Isso sujeitaria essa pessoa a uma pena de dez a quinze anos de reclusão. Vemos aí que o legislador não tem qualquer critério para a fixação da quantidade das penas. E nós vemos todo dia o aumento de penas ser proposto no Congresso. A cada dia o Congresso edita uma norma criminalizando certa conduta, e aumentando a pena de uma conduta já criminalizada. Isso está na ordem do dia.

ConJur — Como a determinação da pena se relaciona à força de trabalho?
Juarez Tavares — A pena não é mais corporal, como era antigamente, mas uma pena quantificada em tempo de cumprimento. Essa ideia da quantificação da pena em tempo de cumprimento nasce com a criação da força de trabalho assalariado. Isso já acontecia no Renascimento, nos primórdios do capitalismo, quando efetivamente o valor da mercadoria passa a se vincular ao tempo de trabalho executado para sua produção. A avaliação de determinado fato em tempo de serviço, em tempo de cumprimento, se dá em função da ideia de que aquilo corresponde a uma certa compensação pelo tempo trabalhado. Passando esse critério para o crime, tem-se que a pena de prisão temporal corresponde a uma compensação pelo tempo trabalhado na execução do fato, aí se compreendendo o plano causal e o resultado. A pena quantificada em anos constitui, portanto, uma relação com o tempo de trabalho na execução do crime.

Essa ideia genial foi bem desenvolvida pelo jurista russo Evgeni Pachukanis, que era um grande jurista, mas que, depois, foi defenestrado pelo stalinismo, infelizmente. Ele mostrou a relação de uma coisa com outra, como essa ideia da quantificação do tempo de trabalho impregna a própria ideia da pena de prisão temporal. Qual é o fundamento para aplicar pena de prisão de tantos anos? De onde surgiu essa ideia? Não foi da cabeça do legislador. Foi uma ideia da economia transladada ao direito penal.

ConJur — Como o processo de criminalização ajuda o poder a se sustentar?
Juarez Tavares — O poder só se sustenta mantendo-se sob exercício de uma polícia que reprima as atividades opositoras. Há, certamente, outros instrumentos de manutenção. Por exemplo, a desobediência civil e o direito de resistência, existentes no Direito alemão, são exercícios de direitos que correspondem justamente ao que o poder deseja. O poder não deseja um confronto direto e permite essas atividades. Claro, tudo depende até que ponto essas atividades não influam diretamente no funcionamento do Estado. O crime, contudo, é um ato de confronto direto. Como ato de confronto direto, é, no fundo, um ato político. Assim, ao reprimi-lo, o poder exerce seu aparato repressivo contra um ato político. A diferença entre crime político e crime comum é, aliás, muito sutil. Essa diferença conduz à ideia de que o crime comum não tem nada de político, mas tem, sim. À medida que se protege, por exemplo, a propriedade, se protege um tipo de sistema econômico capitalista. Então, a criminalização é um ato político.

ConJur — É possível acabar com o conceito de crime?
Juarez Tavares — É possível, mas convém observar o seguinte. Quando se fala em acabar com o conceito de crime, é preciso distinguir alguns delitos. É fácil, por exemplo, acabar com o conceito de crime relacionado aos crimes comuns, como o furto, o roubo ou mesmo o tráfico de drogas, ou até os crimes contra a administração pública. Esses fatos poderiam ser desqualificados como delitos e passarem a ser vistos como infrações civis ou administrativas. O político que desviou recursos de uma obra pública em seu benefício poderia sofrer a imposição de medidas alternativas, como a expropriação de seus bens ou imposição de multa maior. O ladrão poderia ser obrigado a frequentar cursos de respeito a direitos dos demais. Para tanto, não se precisa do Direito Penal. A sociedade, em sua sanha punitiva, quer vê-los na prisão, mas as medidas alternativas são muito mais proveitosas e ninguém se dá conta disso. Parece que carregamos conosco ainda a culpa do pecado original, que só pode ser expiada na prisão.

O problemático no Direito Penal é, no entanto, o crime de homicídio. Porque no crime de homicídio há uma vítima concreta, que é eliminada do convívio social. E não é possível hoje se dizer que não vai mais existir a criminalização do homicídio, porque ninguém vai se conformar com isso. Os parentes das vítimas de homicídio vão ficar alucinados com qualquer tipo de proposta nesse sentido. Agora, é possível se pensar em uma sociedade sem crime. À medida em que cada vez mais se estabeleça o convívio social, e a solidariedade, os atos de agressão devem diminuir consideravelmente. Há estudos antropológicos que demostram que algumas tribos indígenas não conhecem atos de agressão. Os patagões da Argentina, por exemplo, não conheciam o homicídio. A sociedade era tão coesa, o sentimento de solidariedade era tão fortalecido que as pessoas não tinham necessidade de se agredir mutuamente.

ConJur — Então uma sociedade sem crime depende de coesão social?
Juarez Tavares — Exatamente. Eu não vejo a impossibilidade de uma sociedade sem crime. Eu vejo a impossibilidade atual, mas não uma impossibilidade futura de uma sociedade sem crime. É mais fácil primeiro eliminar a pena e depois o crime. Primeiro eliminar a pena de prisão porque ela só causa sofrimento. Para isso, seria preciso avaliar as medidas alternativas à prisão. Um tempo atrás, houve o julgamento de um indígena pelo tribunal do júri realizado dentro de uma aldeia, em Roraima. O indígena fora condenado por tentativa de homicídio, mas o julgamento do júri foi submetido a uma reavaliação da própria comunidade indígena, por força do Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973) e da Constituição. Os indígenas, na verdade, estavam apavorados com o julgamento, porque eles nunca tinham visto um alto grau de agressão e de humilhação entre as partes. O promotor, na verdade, era o maior agressor. Em face disso, a comunidade considerou nulo o julgamento do júri e condenou o autor a uma pena de dois anos de ostracismo. Quando retornasse, iria trabalhar em prol da comunidade. Todos sabemos que o processo e a pena têm mesmo o sentido de humilhação. Todas os processos criminais e todas as penas. A humilhação é inerente ao sistema punitivo. No momento em que se cria a ideia de nudismo, de vergonha, se cria a ideia de humilhação. Humilha-se o sujeito que não cobre as partes íntimas.

Na Idade Média, por exemplo, o sentimento de humilhação era mais transparente, porque era executado em praça pública. O condenado era colocado aos sábados e domingos em praça pública por duas horas para ser humilhado por todos. Hoje não se faz mais isso em praça pública, mas se faz nos julgamentos e nas prisões, se faz pela imprensa, que condena o sujeito antecipadamente, trata-o como um sujeito carniceiro, brutal, criminoso empedernido. Faz-se na internet, nas redes sociais. O nome do suspeito fica eternamente nas nuvens, nos registros. Passado algum tempo, se comprova que o sujeito não era o autor do fato, mas a humilhação já acontecera. No entanto, como disse, as pessoas, em geral, gostam desse tipo de humilhação, porque isso satisfaz seu sentimento de vingança, que não podem exercer contra os seus reais inimigos, mas é satisfeito ao ser exercido simbolicamente contra aquele inimigo que elas nem conhecem.


ConJur — O senhor afirmou que, na discussão sobre a extinção do conceito de crime, o grande problema é o homicídio. E o estupro e as lesões corporais grave e gravíssima?
Juarez Tavares — O estupro e as lesões corporais graves e gravíssimas são fatos relevantes, claro, mas podem receber outra forma de compensação, como algum tipo de alijamento social. Diante dessa afirmativa, alguns grupos vão falar que a dispensa de pena seria um absurdo, porque o estuprador tem que sofrer na prisão tudo o que causou na vítima. É um sentimento e eu entendo esse sentimento. Porém, se fosse construída uma sociedade sem agressões mútuas e o homicídio fosse extinto, o estupro também seria. O estupro é a expressão mais radical de um ato de poder masculino, e isso ocorre na sociedade hierarquizada, na qual o homem detém o poder. O homem se sente empoderado como macho e, por isso, pratica o estupro, como expressão de seu domínio contra a vítima. O estupro é a essência exata do machismo.

À medida em que a democracia avança, em que o sentimento de solidariedade avança, em que as pessoas são tratadas de outra forma, em que se elimine esse sentimento machista da sociedade, é possível que o estupro desapareça. Não agora, mas no futuro. Assim como desapareceu o crime de adultério, cuja repressão tinha também a finalidade de execrar totalmente a mulher. Era a expressão mais direta do patriarcado, que felizmente, neste ponto, não existe mais.

ConJur — Qual deve ser o papel do Direito Penal em um Estado Democrático de Direito?
Juarez Tavares — O Direito Penal, como forma de saber, só tem uma função, que é elaborar regras de contenção do poder punitivo. Porque qualquer outra função que ele possa exercer será uma função justificadora. Como o poder punitivo é um poder político, que não se justifica, a não ser pelo próprio exercício, o Direito Penal tem como finalidade a de restringir o poder punitivo e de estabelecer regras exigindo que esse poder punitivo a elas se submeta. Claro que é uma contenção mais simbólica do que eficaz, mas pelo menos é uma fórmula de contenção, uma fórmula de tornar o poder menos irracional. Isso porque o poder punitivo também necessita do aparato doutrinário que o justifique. É aquela velha lição de Max Weber, da burocracia neutra, que aparenta estar a serviço de todos. E como o poder punitivo tem um aparato doutrinário que o delimita, para não se apresentar à sociedade como um poder autoritário, ele terá que se ajustar a esse aparato de contenção. É a única finalidade legítima do Direito Penal.

ConJur — Qual deve ser o papel dos direitos fundamentais em Estado Democrático de Direito?
Juarez Tavares — Direitos fundamentais são direitos subjetivos essenciais à convivência em uma sociedade democrática. A importância dos direitos fundamentais é delimitar o poder de punir e fornecer instrumentos para que a doutrina penal possa deles se valer para propor uma autêntica democracia. Como disse o ex-reitor da Universidade de Berlim, Hans Meyer, a democracia nada mais é do que forma de governo que delimita o poder. Sem delimitação de poder não há democracia.

Sérgio Rodas – Conjur

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