OPINIÃO – Tráfico de drogas deixou de ser equiparado a crime hediondo?
Entre tantas contradições, atecnias e erros, o “pacote anticrime” (Lei nº 13.964/19) apresentou mais um, que certamente gerou efeito contrário ao pretendido. Como se diz no linguajar popular, o tiro disparado pelo autor do projeto, o então ministro da Justiça e ex-juiz Sérgio Moro, que, entre outras, defendia a famigerada “licença para matar”, saiu pela culatra.
Desta feita, o nó górdio da quaestio ficou na natureza do tráfico de drogas (artigo 33, caput, da Lei nº 11.343/06), se continua o tipo penal equiparado ou não ao crime hediondo. E isso porque, conforme a resposta a ser dada, as frações para progressão de regime se alteram radicalmente.
Segundo lembra Luciana Boiteux (Lemos, Clécio. et al. Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: IBCCrim, 2014), “A partir da Constituição de 1988 constata-se um grande paradoxo na política criminal, pois ao mesmo tempo que houve grandes conquistas, como o reconhecimento de direitos e garantias individuais, inclusive dos presos, foram também previstos indicativos repressivos de grande impacto no texto constitucional, tal como os crimes hediondos, posteriormente definidos pela Lei (8.072/ 1990), ao qual o tráfico de drogas foi equiparado expressamente (…)” (pág.87).
Para a doutrinadora, de olhar crítico, com o crescente encarceramento em razão do tráfico, há um aumento de gastos penitenciários e humanos, com maior número de pessoas submetidas a péssimas condições de vida carcerária, in verbis: “Trata-se de um custo muito alto arcado pelo Estado brasileiro, que vem demonstrando grandes dificuldades para melhorar as condições de suas prisões, o que já levou, inclusive, a denúncia perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com relação às terríveis condições da penitenciária conhecida como ‘Urso Branco’, em Rondônia (…)”(pags. 98-99).
Pontualmente, como anotado, a Constituição, em seu artigo 5º, inciso XLIII, estabeleceu que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos”.
Como se vê, a Constituição apenas enunciou o tráfico como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Ela não o incluiu, porém, como crime hediondo, deixando em aberto a possibilidade de sua equiparação. Fosse contrária a intenção e o constituinte teria feito constar expressamente a equiparação. Destarte, foi apenas com a Lei dos Crimes Hediondos (8.072/1990), que o crime de tráfico passou a ser considerado equiparado aos crimes hediondos, e isso pelas consequências idênticas a que restou incluído e não pela classificação, esta, até hoje inexistente.
O artigo 1º, da referida lei, aponta quais são os crimes considerados hediondos, como por exemplo o homicídio. No rol não está o tráfico de drogas, mas ele aparece, porém, expresso no caput do artigo 2º (Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de…), e o §2º o equipara, pelos efeitos: “A progressão de regime, no caso dos condenados pelos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente, observado o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 112 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal)”.
Entretanto, e essa a atual realidade, o artigo 2º, da Lei dos Crimes Hediondos, especificamente o seu 2º parágrafo, foi revogado pela “pacote anticrime”. E mais, independentemente da atecnia, contradição e ausência de fundamento científico já observados acima, ao tratar da execução das penas, o pacote modificou o artigo 112 da Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal), que na sua nova redação em nenhum momento colocou o tráfico de drogas como equiparado ao crime hediondo, aliás, em nenhum momento o dispositivo se referiu ao tráfico de drogas, como até então a legislação vinha fazendo.
Com alguma certeza, portanto, pode-se dizer que o crime de tráfico voltou a ter status comum, com seus consectários, especialmente no respeitante à progressão de regime.
Há posicionamentos contrários, no sentido de que o atual artigo 112 da LEP se aplica ao tráfico de drogas, em uma interpretação mais flexível dos dispositivos legais. Ocorre que, pelos princípios da legalidade e da proibição de indeterminação da lei penal (taxatividade da norma penal) (artigo 5º, inciso XXXIX, da CF), não havendo mais na lei a especificação sobre quais seriam os crimes equiparados a hediondos, como antes do “pacote anticrime” acontecia, resta obstaculizada a aplicação extensiva e prejudicial ao apenado dos percentuais atuais previstos aos crimes hediondos para a progressão de regime. Em síntese, o dispositivo legal que previa a equiparação não mais existe e não foi expressamente substituído. Por isso, o tráfico de drogas não é mais equiparado a crime hediondo.
Inclusive, nessa toada, o Superior Tribunal de Justiça já estabeleceu a tese nº 28: “Jurisprudência em Teses — ed. 131 de 23/8/2019”, consignando que o crime de associação para o tráfico de entorpecentes (artigo 35 da Lei nº 11.343/2006) não figura no rol taxativo de crimes hediondos ou de delitos a eles equiparados.
Com isso, o STJ deixou claro que não se aceita na ordem jurídica a inclusão de crimes no rol dos hediondos ou a eles equiparado sem expressa taxação.
Relembre-se que o princípio da legalidade está previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem (ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso — artigo 11); nas Regras de Mandela (Regras 37 e 39); no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU(artigo 9º, item 1); na Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 9º); no Conjunto de Princípios da ONU para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão (Princípio 2).
Para o brilhante professor Juarez Cirino dos Santos, “O princípio da legalidade é o mais importante instrumento constitucional de proteção individual no moderno Estado Democrático de Direito, porque proíbe (a) a retroatividade como criminalização ou agravação da pena de fato anterior, (b) o costume como fundamento ou agravação de crimes e penas, (c) a analogia como método de criminalização ou de punição de condutas e (d) a indeterminação dos tipos legais e das sanções penais (artigo 5º, XI,CR)” (Direito Penal: parte geral. 3ª edição. Curitiba: Lumen Juris, pág.20).
Além do mais, mormente em sede de sistema de justiça criminal e execução penal, em contraposição à proscrita analogia in malam partem, é imperioso que se leve em consideração o princípio pro homine, trazido no artigo 29, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica), a saber: “Artigo 29. Normas de interpretação — Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de: […] b. limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados; […]”.
Sobre o tema, Luiz Flávio Gomes destaca que, “por força do princípio interpretativo pro homine cabe enfatizar: quando se tratar de normas que asseguram um direito, vale a que mais amplia esse direito; quando, ao contrário, estamos diante de restrições ao gozo de um direito, vale a norma que faz menos restrições (em outras palavras: a que assegura de maneira mais eficaz e mais ampla o exercício de um direito)”.
Neste aspecto, em julgado do Supremo Tribunal Federal, extrai-se a recomendação de que “os magistrados e tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. — O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs” (HC 91.361, Relator(a): CELSO DE MELLO, 2ª Turma, julgado em 23/9/2008, DJe-025 DIVULG 5/2/2009, PUBLIC 6/2/2009, EMENT VOL02347 -03 PP-00430 RTJ VOL-00208-03 PP-01120).
E ainda, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, em vigor no país desde 1/9/2002, consigna no seu artigo 22:2 que a “previsão de um crime será estabelecida de forma precisa e não será permitido o recurso à analogia. Em caso de ambiguidade, será interpretada a favor da pessoa objeto de inquérito, acusada ou condenada”.
Ou seja, a partir do princípio pro homine, aliado aos princípios da legalidade e taxatividade e aos dispositivos correlatos, entre eles o artigo 22:2 do Estatuto de Roma, há que se pontuar que o artigo 112 da LEP, na parte que trata dos percentuais para progressão de regime dos crimes hediondos, porque não mencionou o tráfico de drogas, a este delito não se aplica, devendo assim ser ele tratado como crime comum.
Nesse sentido, os defensores públicos Érico Ricardo da Silveira e Felipe de Mattos Takayassu, em artigo publicado na ConJur, concluíram, ipsis litteris: “as previsões contidas na nova redação do artigo 112 da LEP acerca de supostos delitos ‘equiparados a hediondos’ restam completamente esvaziadas, ante a ausência de previsão legal expressa acerca do seu conteúdo, bem como a impossibilidade de criação dessa figura mais gravosa por outro meio, como interpretação extensiva ou analogia (princípio/ regra da reserva legal penal)” [1].
Registre-se, de outro lado, que o §5º do artigo 112, da LEP, ao proibir a equiparação do tráfico privilegiado aos crimes hediondos, não faz com que o caput do artigo 33 ou outro delito da Lei Antidrogas seja definido como “equiparado a hediondo”. Ora, uma norma que beneficia o apenado e que, registre-se, apenas reproduziu jurisprudência pacífica, não pode ser interpretada em seu prejuízo.
Mutatis mutandis, em interpretação mais benéfica ao apenado, cujo raciocínio hermenêutico pode ser empregado na espécie, o Supremo Tribunal Federal firmou o tema 1.169, in verbis: “Tendo em vista a legalidade e a taxatividade da norma penal (artigo 5º, XXXIX, CF) (1), a alteração promovida pela Lei 13.964/2019 no artigo 112 da LEP (2) não autoriza a incidência do percentual de 60% (inciso VII) aos condenados reincidentes não específicos para o fim de progressão de regime. Diante da omissão legislativa, impõe-se a analogia in bonam partem, para aplicação, inclusive retroativa, do inciso V do artigo 112 da LEP (lapso temporal de 40%) ao condenado por crime hediondo ou equiparado sem resultado morte reincidente não específico”.
Além do mais, é importante salientar que o delito de tráfico se firmou como equiparado a hediondo tão somente por base jurisprudencial, sem lei que o sustentasse (como se viu a equiparação decorreu das condições mais graves impostas para a execução da pena). Por isso, plenamente possível a superação da jurisprudência pela técnica do overruling.
A partir das lições de Fensterseifer, a técnica do overruling significa justamente a possibilidade de superação do precedente que não se encontra mais em relação de coerência com o ordenamento. Contudo, a fundamentação da decisão que supera um precedente deverá ser sempre mais detalhada e pormenorizada do que a decisão que aplica o precedente. A aplicação do overruling pressupõe que o precedente não mais se sustenta, de modo que não poderá ser aplicado ao caso em julgamento. A forma mais adequada de se controlar a atividade dos juízes ao realizarem distinções (distinguishing) e superações (overruling) de precedentes é a fundamentação analítica da decisão judicial, de modo que o julgador explicite de forma clara e objetiva as decisões tomadas por ele em cada uma das etapas do processo decisório (FENSTERSEIFER, Wagner Arnold; Distinguishing e overruling na aplicação do artigo 489, § 1.º, VI, do CPC/2015, in Revista de Processo do MP-SP, acesso em 11/3/2022).
Por fim, acrescente-se que o ministro Sebastião Reis Júnior, do Superior Tribunal de Justiça, deferiu pedido liminar para determinar a observância de fração de crime comum para condenação pelo delito de tráfico de drogas (HC nº 736333 SP — decisão de 22/4/2022).
Em resumo, o “pacote anticrime” revogou dispositivo da lei dos crimes hediondos, que tratava do tráfico de drogas e os percentuais de cumprimento de pena para progressão e nada especificou no seu lugar, na nova legislação. Na ausência de uma taxatividade e na proibição de interpretação em prejuízo do apenado, o resultado é que, como muitos juristas têm entendido, o tráfico de drogas previsto no artigo 33 da Lei Antidrogas, qualquer que seja a sua modalidade, não se equipara mais aos crimes hediondos.
Assim, a todos aqueles condenados por tráfico de drogas, cabe executar a respectiva sanção como a de um crime comum, ou seja, sem os rigores de antes. O que exigia 40 ou 60% para progredir de regime, passa a seguir os critérios objetivos dos delitos comuns, ou seja, 16 ou 20% da pena aplicada.
Como ensina Zaffaroni, o saber penal direcionado aos juízes, que pretenda se enquadrar nos direitos humanos, deve “orientar-se a promover o exercício de um poder jurídico cuja principal função seja a de contenção racional das pulsões letais do poder punitivo, em função da preservação e ampliação dos espaços de dinâmica social inclusiva” (Doutrina Penal Nazista: a dogmática penal alemã entre 1943 e 1945).
Posicionamentos diversos existem. No tempo oportuno, a pacificação jurídica virá, pois, o tema já chegou ao Superior Tribunal de Justiça e é provável chegará ao Supremo Tribunal Federal.
Até lá, que não percamos de vista estarmos tratando de vidas, vidas presas.
[1] Vide ainda: https://canalcienciascriminais.com.br/o-afastamento-da-hediondez-do-crime-de-trafico-ilicito-de-entorpecentes/
Conjur