O papel da advogada criminalista na representação da vítima de crimes sexuais
Mariana Goulart[1]
A figura da vítima e a sua representação durante o processo penal é um tema controverso para nós advogadas e advogados criminalistas que “temos vício da defesa da liberdade” como já apontava Evandro Lins e Silva.
Mas saindo do campo das frases célebres dos juristas, quando penso em vítimas, sobretudo, vítimas de crimes sexuais, vem à mente a famosa frase da cantora Nina Simone: “liberdade é viver sem medo”.
Isso porque o medo aprisiona.
O medo reduz a capacidade de agir; movimentar-se. Mas quando decidem romper a barreira do silêncio, da culpa e da vergonha, o primeiro local que encontram é a delegacia de polícia, as Varas Criminais ou o escritório de uma advogada ou um advogado.Outras barreiras são postas no caminho quando o Sistema de Justiça Criminal é acionado.
É de conhecimento legal que a atuação da vítima é limitada dada a natureza do processo penal de cariz acusatório. O Código de Processo Penal disciplina que a vítima ou seu representante poderá intervir como Assistente do Ministério Público na Ação Penal até o trânsito em julgado da Sentença. O regramento processual penal ainda permite à vítima “propor meios de provas, requerer perguntas às testemunhas, aditar o libelo, participar dos debates e arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público”.
Mas na verdade o Poder Punitivo, confisca o conflito e a vítima como problematiza Eugenio Raul Zaffaroni:
La característica diferencial del poder punitivo es la confiscación del conflicto, o sea, la usurpación del puesto del damnificado o víctima por parte del señor (poder público), degradando a la persona lesionada o víctima a la condición de puro dato para la criminalización. […] Sólo cuando se extrae el conflicto de ese modelo y se lo resuelve conforme a alguno de los otros modelos de decisión de conflictos se llega a una solución, pero en ese supuestro el poder punitivo desaparece, porque por definición nos habremos salido de su modelo. Lo cierto es que, desde el momento de la confiscación de la víctima, el poder público adquirió enorme capacidad de decisión (no de solución) […] para lo cual ejerce un constante poder de vigilancia controladora sobre toda la sociedad y, en especial, sobre los que (ZAFFARONI, 2009, p. 30-31).[2]
Isso porque o Sistema de Justiça Criminal, de acordo com Vera Regina Pereira de Andrade, é um sujeito monumental, abrangendo tanto as instituições formais de controle (polícia, Ministério Público, Executivo, Legislativo e Judiciário) quanto as informais (família, escola, mídia), inexistindo rupturas entre as relações sociais que discriminam a mulher com o próprio sistema que deveria protegê-la. Há, dessa forma, uma relação de continuidade; um intercâmbio entre as instituições formais e informais de controle (ANDRADE, 2005, p. 81)
Possui como função declarada proteger os bens jurídicos e diminuir as violências e as condutas atentatórias à dignidade do sujeito. Todavia, sua função real, materializa-se na (re) produção de desigualdades. Assim, sua eficácia é invertida, pois, enquanto as suas funções declaradas são simbólicas porque não são efetivadas, as suas funções reais – contrárias ao discurso oficial – são perfectibilizadas (ANDRADE, 2005).
O Sistema de Justiça Criminal atua sobre os corpos feminizados da seguinte maneira:
Duplica, em vez de proteger, a vitimação feminina, pois além da violência sexual representada por diversas condutas masculinas (estupro, atentado violento ao pudor, etc), a mulher torna-se vítima da violência institucional plurifacetada do sistema, que expressa e reproduz, por sua vez, dois tipos de violência estrutural da sociedade: a violência das relações capitalistas (a desigualdade de classes) e a violência das relações sociais patriarcais (traduzidas na desigualdade de gênero), recriando estereótipos inerentes a estas duas formas de desigualdade (ANDRADE, 2005, p. 81)
Funciona, outrossim, “como um mecanismo público integrativo do controle informal feminino, reforçando o controle patriarcal (a estrutura e o simbolismo de gênero), ao criminalizar a mulher em algumas situações específicas e, soberanamente, ao conduzi-la ao lugar da vítima” (ANDRADE, 2005, p. 87).Não é a toa que “de acordo com uma pesquisa de opinião Datafolha, encomendada pela FBSP, de 2016, 33,3 % da população brasileira acredita que a vítima é culpada” e,“ mesmo que não se diga se tratar de uma mentira, as mulheres são desqualificadas como vítimas, responsabilizadas no processo, vistas com desconfiança”.
Episódios de descrédito à palavra da vítima são uma constante – isso não há dúvida. Quantas mulheres são questionadas nas delegacias de polícia por escrivães, delegados ou, quando chegam ao Judiciário por juízes, promotores, advogados e todo o aparato formal do Sistema de Justiça Criminal. Sem contar as opiniões públicas ou familiares que, mesmo não fazendo parte do aparato repressivo, contribuem para a duplicação da violência, retratando a vítima como a única responsável pela própria violência que sofrera.
Diante do cenário apresentado, fica o questionamento: qual o papel da advogada criminalista quando alguma vítima de um crime sexual lhe procura?
Além de oferecer uma possível assistência à acusação é necessário ter em mente que o Sistema de Justiça Criminal não trará conforto e a devida reparação pelo ocorrido, muito menos impedir que o mesmo fato aconteça novamente na vida da vítima. Isso porque somos atravessados por uma estrutura patriarcal que reproduz desigualdades e processos de normalização de condutas androcêntricas.
Além disso, respeitar as regras do jogo e não transformar o processo em vingança privada. Processo é garantia e isso não desaparecerá quando estivermos representando a vítima. É imprescindível coerência nesse momento. Necessário respeitar o devido processo legal, a ampla defesa e o exercício do contraditório. Produzir provas robustas e escorreitas para que a narrativa auxiliar à acusação tenha a materialidade e os indícios suficientes da autoria.
Por fim, há dever ético de minimizar os efeitos dessa experiência de violência em nossa atuação. Lembrar da origem latina do nosso ofício “advocatu”: quem é chamado para ajudar, socorrer, prestar o devido auxílio. Escutar e não julgar para que não ocorra uma nova re-vitimização. Intervir para que outros sujeitos processuais não façam a experiência de violência não seja um mero dado para a criminalização.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Soberania Patriarcal: o Sistema de Justiça Criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Sequência, nº 50, jul. 2005.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El enemigo en el Derecho Penal. Buenos Aires: Ediar, 2009.
[1] Advogada Criminalista. Mestra em Direito no PPGD-UFSC (2020-2022). Bacharela em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI (2019).Bacharela e Licenciada em História pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC (2014).
[2] A característica distintiva do poder punitivo é a confiscação do conflito, ou seja, a usurpação da posição da pessoa ferida ou vítima pelo mestre (poder público), degradando a pessoa ferida ou vítima ao estatuto de dados puros para criminalização. [Só quando o conflito é extraído deste modelo e resolvido de acordo com um dos outros modelos de resolução de conflitos é que se chega a uma solução, mas neste caso o poder punitivo desaparece, porque por definição teremos deixado o seu modelo. O que é certo é que, desde o momento do confisco da vítima, o poder público adquiriu uma enorme capacidade de decisão (não de solução) […] para a qual exerce um poder constante de controlo da vigilância sobre toda a sociedade e, em particular, sobre aqueles que considera efectiva ou potencialmente prejudiciais à sua hierarquização.