Erro de tipo e erro de proibição na lavagem de dinheiro
Jimmy Deyglisson*
INTRODUÇÃO
Sendo o dolo um elemento da conduta/ação, a qual integra o tipo penal, não há falar em crime doloso se ausente este requisito, por óbvio.
Assim, nas hipóteses em que a conduta se adequa ao tipo penal, mas se descobre não haver dolo – conhecimento e vontade -, opera-se o que a doutrina chama de erro, o qual afeta o conhecimento que o agente deveria ter sobre o fato, naquilo que toca as características objetivas que compõem o tipo penal; ou no sentido jurídico-social, no que toca à contrariedade ao dever perante a ordem de direito[1].
O primeiro caso seria erro de tipo, enquanto o segundo chamar-se-ia erro de proibição. Em que pese a discussão sobre a crise da diferenciação entre ambos os institutos, a solução dogmática mais acertada seria a orientação pelas consequências jurídicas do tratamento do erro, pelo que a legislação brasileira, nos arts. 20 e 21 do Código Penal, ensina que o erro de tipo exclui o dolo, ao passo que o erro de proibição reduz a pena, se evitável, ou isenta o agente da reprimenda penal, se inevitável[2].
A questão parece ser de fácil visualização quando imaginados delitos de comum constatação e ocorrência e cujo curso causal é simples, como o homicídio, furto, entre outros. Tanto é verdade que os exemplos dos manuais são quase todos neste sentido, a exemplo do agente que dispara arma de fogo durante caçada em um alvo que lhe parecia ser um animal, mas que na verdade era um companheiro ou outra pessoa; do agente que toma posse do objeto alheio para si, mas sem saber que se trata de coisa alheia.
Porém, em se tratando de delitos de maior complexidade, onde o conceito dos elementos normativos empregados e o contexto de sua realização só seriam facilmente percebidos por um especialista, a possibilidade de errar sobre a representação mental aumenta consideravelmente para o homem comum.
Isto se dá porque, mesmo diante de crimes de tipicidade complexa, a doutrina se utiliza do conceito da valoração paralela na esfera do leigo, segundo o qual não é necessário que o “agente tenha conhecimento jurídico ou técnico sobre os elementos normativos, basta que conheça o objeto segundo os dados da experiência ou de acordo com o conhecimento comum”[3].
Esta régua do homem médio, repise-se, cabe diante de homens de sabença comum e sobretudo diante de delitos de reprovabilidade de ação e resultado que não demandam maior esforço de espírito para sua valoração (como os citados no início).
Porém, aplicando-se precisamente ao delito de lavagem de dinheiro, cuja origem remonta ao séc. XX e não à lei das doze tábuas, é extremamente necessário que o trato da matéria se dê com cautela diante de imputações realizadas a homens e em contextos que sugerem possível compreensão equivocada das circunstâncias, a incidir em erro de tipo ou proibição.
Por exemplo, no crime de inscrição de despesas não empenhadas em restos a pagar (art. 359-B, CP), no exemplo trazido por Tavares, o agente tem que saber o que sejam despesas empenhadas e restos a pagar, segundo sua conceituação técnica da contabilidade pública; neste caso é insuficiente o conhecimento leigo; se o agente não sabe exatamente o que são despesas não empenhadas, as quais são por ele utilizadas, incorre em erro de tipo, por desconhecer um elemento do tipo. Igualmente acontece quanto à compreensão do que seja conhecimento de depósito ou warrant (art. 178, CP), a qual depende de sua definição contida na lei que disciplina os armazéns gerais.[4]
O refino dogmático que se pede à matéria atende a inúmeros objetivos e o mais importante deles é que, diante do aumento das imputações do delito de lavagem de dinheiro Brasil e no mundo, a aplicação de uma teoria do delito condizente com as especificidades do homem in concreto, com todas as suas nuances, impede, por isso mesmo, que se aplique pena quando não havia vontade e conhecimento dos elementos de um tipo tão complexo como é o de branqueamento de capitais, ou mesmo que se penalize com reprimenda mais grave que a necessária quando era possível conhecer a proibição ou que penalize quando não era, de maneira alguma, possível conhecer a proibição.
DESENVOLVIMENTO
O tipo de lavagem de dinheiro é assim descrito na lei n 9.613/98:
Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.
Pena: reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa.
§ 1º Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal:
I – os converte em ativos lícitos;
II – os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere;
III – importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros.
§ 2º Incorre, ainda, na mesma pena quem:
I – utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo;
I – utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal;
II – participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei.
§ 3º A tentativa é punida nos termos do parágrafo único do art. 14 do Código Penal.
Como se vê, o crime de lavagem pressupõe um delito antecedente, e pelo curso causal natural é este o objeto onde primeiramente deve recair o erro, tanto no sentido da existência daquele delito como de sua relação de derivação com os ativos lavados.
TAVARES e MARTINS nos trazem vários exemplos relacionados ao crime de lavagem nos quais o erro pode ser de bem mais difícil constatação. O primeiro deles é este: “A atua com ânimo de dissimular a utilização de ativos, mas acredita que o verbo converter, do inc. I do art. 1º, §1º da lei n. 9.613/98, pressupõe uma alteração do estado físico do bem, de modo que não se aplica a direitos ou valores”[5].
Notadamente, aqui se tem um exemplo de falsa representação do elemento normativo do tipo penal e, portanto, a respeito de sua proibição, o que pode afastar a culpabilidade. O importante é perceber que o detalhe, aparentemente ínfimo, deve ser observado pelo intérprete no momento do juízo de tipicidade, pois não se pode analisar um fato com lentes genéricas, que borram a visão, a ponto de qualificar ou não qualificar devidamente um delito.
ULFRID NEUMANN identifica essa espécie como erro de subsunção, pois recai sobre um conceito utilizado pela lei penal. Comparando com o erro de proibição, diz ele que:
“definições são feitas através de regras, e definições de conceitos que são utilizados em regras legais – porque que essas definições decidem qual o conteúdo da respectiva regra legal – têm elas mesmas o caráter de regras jurídicas. Isto leva a considerar que o erro de subsunção tem a mesma estrutura do erro de proibição, também ele relacionado com o desconhecimento de uma regra. O erro de subsunção pode, inclusive, levar a um erro de proibição”[6]
Interessante observar que referida situação pode se caracterizar, a depender da hipótese, como erro de tipo, pois “um erro de tipo que exclui o dolo pode, também, conter elementos de um erro sobre uma regra. e(…) quando o erro se refere a um fato institucional, quer dizer, quando o autor erra sobre uma circunstância de fato que se origina, porém, de uma regra.”[7]
Em outro exemplo afirma: “B sabe que o dinheiro que seu marido C lhe pede para guardar em local seguro é oriundo de prática de operações simuladas, que caracterizam o crime de manipulação de mercado (lei n. 6.385/76, art. 27-C), mas desconhece que essas operações configuram crime.” No exemplo seguinte, uma variante deste último ao imaginar que: “B tem dúvidas sobre a ilicitude das operações, mas não se informa a respeito disso, decidindo que é melhor confiar em C, e esconde igualmente o dinheiro”[8].
É muito comum que esposas de grandes figurões do mercado ou da política estejam alheias aos meandros daquilo de que participa o esposo, o que este faz até mesmo para protegê-la, pois quanto menos souber, melhor, já que o conhecimento do fato atrai o elemento psicológico/subjetivo do delito.
Em midiático julgamento, a esposa do conhecido político brasileiro Eduardo Cunha, processado juntamente com aquela no âmbito da operação Lava-jato, foi absolvida exatamente ao argumento de que a utilização desmedida do cartão de crédito em nome do esposo, em quantias além do salário que auferia como parlamentar, não indicava, por si só, o dolo necessário quanto ao crime antecedente, razão pela qual foi declarada inocente por insuficiência de provas era necessária.[9]
Num quarto exemplo, os autores dizem: “D, que estudou direito há alguns anos, autoriza seu namorado E a depositar dinheiro, oriundo de sonegação fiscal (lei n. 8.137/90, art. 1º), em sua conta (de D), com o objetivo de ocultá-lo, mas acredita que os delitos fiscais não podem ser antecedentes do delito de lavagem de dinheiro.”[10]
A dúvida aqui é sincera, pois mesmo a doutrina não pacificou o tema e o debate segue firme, como apontam Lemos e Colombo[11]:
Por certo que a resposta para os questionamentos se encontra estampada na seguinte afirmação: não há como existir – típica e faticamente – crime de lavagem de dinheiro provocado pela sonegação fiscal, pois a conduta de deixar de recolher impostos, por si só, não é capaz de (i) aumentar o capital financeiro do sonegador e; (ii) o valor sonegado, passível de lavagem, eventualmente utilizado pelo agente, por si só, não configura o tipo penal do art. 1º da Lei n.º 9.613/98, sendo necessária a configuração do dolo da lavagem isto é, que o proveito ilícito seja efetivamente ‘’lavado’’ e reinserido na economia, o que não é o caso do delito de sonegação fiscal.
Essa é a conclusão que se perfilha nos estreitos limites deste ensaio, de modo que admitir que o delito de sonegação fiscal ocupe a posição de crime antecedente da lavagem de dinheiro conduz a um pensamento sem fundamento jurídico, de modo que a própria tipicidade do delito do art. 1º da Lei n.º 9.613/98 impede tal fenômeno, seja pelo fato de que a conduta de sonegar impostos não confere ao agente sonegador um acréscimo patrimonial – exigido pelo delito de lavagem de dinheiro – mas sim, apenas mantém o patrimônio anteriormente existente, ou pelo fato de que só existirá a perfectibilização do tipo penal de lavagem quando ocorrer o processo de dissimulação dos proveitos ilícitos acompanhado da sua consequente reinserção na economia. É dizer, portanto que, sob todos os ângulos, a lavagem de dinheiro desencadeada pela sonegação fiscal é plenamente atípica.
Num quinto exemplo, aduz: “F, policial aposentado, transporta para o grupo de doleiros G, H e I, todos eles associados numa empresa de lavagem, valores oriundos de atividade criminosa, mas acredita que essa conduta não constitui delito de lavagem, porque o verbo transportar não vem incluído em nenhum dos tipos da lei n. 9.613/98”.
Ora, a mesma explicação dada ao primeiro exemplo se aplica nesta hipótese, pois sua dúvida recai sobre a norma de conduta da lavagem, ou seja, sobre uma regra, havendo assim erro de proibição evitável em face de sua condição de policial aposentado.
Ocorre que, consultando famoso e profícuo sítio de busca de jurisprudência chamado www.jusbrasil.com.br, utilizando os termos “erro de tipo”, “erro de proibição”, “lavagem de dinheiro”, entre outros, não foi possível encontrar, até a finalização deste trabalho, nenhum julgado nos tribunais do país que viesse a reconhecer, na hipótese, o erro de tipo ou proibição no crime de lavagem.
Tal fato conduz-nos a pensar que os tribunais brasileiros talvez não estejam tão atentos aos meandros de um crime tão complexo e não se aperceberam que a teoria do erro em relação à criminalidade econômica possa ser bem mais presente que se pensa, ou seria o caso de o Ministério Público sempre acertar quanto ao elementos subjetivos no dolo ao oferecer denúncia contra alguém (o que é de se desconfiar, claro). Espraiam-se os casos de absolvição encontrados sempre em meras ausências de prova quanto ao fato, jamais quanto ao conhecimento das circunstâncias do tipo e da proibição.
Mesmo na jurisprudência alemã, percebe-se um tratamento forçado sobre a teoria do erro e a dúvida no direito penal, sendo o entendimento dominante sufragado em sentença nos idos de 1952, pelo Bundesgerichtshof (BGH), quando decidiu que:
“o sujeito deve, a respeito de toda e qualquer ação que pretenda empreender, fazer um esforço de consciência e refletir sobre se esta encontra-se dentro dos limites das disposições do dever-ser jurídico. Dúvidas devem ser superadas através de reflexão e informação, e aquele que possui a representação de que seu comportamento viola possivelmente uma disposição jurídica, e consente com essa possibilidade (a incorpora em sua vontade), não pode alegar que não possuía consciência de agir antijuridicamente”.[12]
Leite nota (e critica), com essa declaração do tribunal, que praticamente qualquer ação tem de ser precedida de uma profunda reflexão sobre suas consequências jurídicas e que, havendo dúvida, a inação é a melhor saída. É dizer, pense muito antes de praticar qualquer ato juridicamente relevante! Mas isto, continua ele, significaria uma paralisação social e oneração excessiva dos sujeitos, pois a premissa formada seria de que toda e qualquer forma de comportamento humano pode ser, em tese, proibida pelo Estado, algo incompatível com a tradição liberal, que parte do pressuposto de que a maioria dos atos são permitidos e somente a exceção é vedada e criminalizada.[13]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando se está em jogo a suposição de que o agente sempre ou quase sempre agirá de maneira que deixe a entender que conhece a proibição contida na lei penal, não se pode descurar das infinitas possibilidades que levam alguém a ter dúvida sobre a ilicitude do fato, sobretudo quando se está diante da criminalidade econômica, construída sob a plêiade de crimes complexos, com conceitos técnicos distantes do linguajar do homem comum.
Tendo isso em mente, ao interpretarmos o delito de lavagem de dinheiro, que possui uma complexidade ínsita a partir já do requisito primário – o que crime antecedente – não é mais cabível que a instrução processual passe ao largo de considerar a existência de erro sobre algum ponto importante do fato sob análise.
A dúvida em relação a vários temas da lavagem é bastante presente e não se pode mais interpretar que diante dela a intenção do acusado era, de fato, agir contra a lei e flexionar o tipo penal de branqueamento de capitais.
Ter um fato como evitável ou não é um tema bastante controvertido na doutrina, como já dito, não se chegando ainda a um critério absoluto para sua delimitação, contudo,
“não é possível se exigir de todos o mesmo grau de conhecimento, e muito menos de compreensão da antijuridicidade das condutas. Sendo assim, uma avaliação individual em cada caso concreto é vital para abordar o erro de proibição e para se fazer um correto juízo de culpabilidade. Desta forma, embora gerando conflitos na doutrina e jurisprudência, tem-se levado sempre em conta as condições socioculturais de cada indivíduo, bem como sua capacidade individual e esforço para absorver o caráter proibitivo das normas”[14]. (grifou-se)
Como bem acentua Tavares, “não se pode fazer recair sobre o agente a responsabilidade pelo déficit de comunicação e regulamentação por parte do Estado quanto à matéria de suas normas jurídicas.”[15]
*Jimmy Deyglisson é advogado criminalista, presidente da ABRACRIM-MA, L.L.M em Direito penal econômico no IDP e membro associado ao IBDPE (Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico).
[1] BRUNO, Aníbal. Direito Penal – t. 2. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 109.
[2] Erro sobre elementos do tipo
Art. 20 – O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
Descriminantes putativas
§ 1º – É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.
Erro determinado por terceiro
§ 2º – Responde pelo crime o terceiro que determina o erro.
Erro sobre a pessoa
§ 3º – O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime. Erro sobre a ilicitude do fato
Art. 21 – O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.
Parágrafo único – Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.
[3] TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 1 ed. Florianópolis: Tirant lo blanch, 2018, p. 304.
[4] Idem, ibidem.
[5] TAVARES, Juarez; MARTINS, Antonio. Lavagem de capitais. 1 ed. Florianópolis: Tirant lo blanch, 2020, p. 148
[6] Apud, TAVARES e MARTINS, p. 149.
[7] Idem, p. 149-150.
[8] Idem, ibidem.
[9] Encontrado em: https://www.conjur.com.br/2017-mai-25/moro-absolve-mulher-cunha-condena-ex-executivo-petrobras. Acesso em 30 nov 2022.
[10] TAVARES; MARTINS, p. 148.
[11] Encontrado em: https://ibdpe.com.br/o-crime-antecedente-de-sonegac%CC%A7a%CC%83o-fiscal-na-lavagem-de-dinheiro/. Acesso em 30 nov 2022.
[12] LEITE, Alaor. Dúvida e erro sobre a proibição no direito penal. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 20-21.
[13] Idem, p. 21.
[14] RODRIGUES, Cristiano. Teorias da culpabilidade e teorias do erro. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 148.
[15] TAVARES, 2020, p. 155.