Atendimento Humanizado a Pessoas em Situação de Violência de Gênero
Bruna Boldo Arruda*
Diversas são as áreas de atuação em Direito Penal, mas neste artigo nos ocupamos da assistência a pessoas em situação de violência de gênero. Particularmente, em minha trajetória, iniciei na advocacia atuando ao lado dos acusados e penso que essa experiência foi de suma importância para posteriormente vir a trabalhar com vítimas.
Conforme nos diz a criminologia crítica, é preciso desvelar a máscara de monstro imposta pela sociedade, pela mídia e tantos outros aparatos tecnológicos, à pessoa acusada no sistema penal para, de fato, enfrentar as violências e mazelas sociais existentes. Sobretudo em se tratando de crimes contra pessoas consideradas vulneráveis e/ou vulnerabilizadas em nossa sociedade, essa pecha do “ser desviante”, do “doente mental”, costuma aparecer com frequência, pois em nosso imaginário são inadmissíveis que atos extremamente violentos sejam cometidos por “pessoas comuns”.
Entretanto, enquanto seguirmos deslocando toda a responsabilidade dos atos somente aos indivíduos, como pretendem os discursos neoliberais, superar a violência será uma tarefa ainda mais desafiadora, pois é necessário também se enxergar as questões sociais que afetam a todos nós.
Assim porque digo que a experiência ao lado dos acusados, antes das vítimas, me foi muito importante para que fosse possível um grau de afastamento das paixões e emoções envolvendo casos de violência de gênero, a fim de ter uma consciência crítica maior sobre a complexidade deste fenômeno, o qual não pode nunca ser tratado a partir do senso comum.
Deste mesmo modo, vejo a importância da técnica nos atendimentos a pessoas em situação de violência. Há que se ter um equilíbrio entre razão e emoção. É importante que esteja presente a emoção que nos confere a sensibilidade, a empatia, diante de casos de violência. Mas é igualmente importante que essa emoção seja equilibrada com o aspecto racional, que não parte do senso comum, mas da técnica.
Nesse sentido, desenvolvi no ano de 2021, um módulo de formação em atendimento humanizado a pessoas em situação de violência de gênero, com base na metodologia da Comunicação Não Violenta – CNV. Em especial, durante os anos de 2021 a 2023, fui convidada a ministrar referido módulo desenvolvido, em um projeto específico de assistência a vítimas de violência doméstica da OAB Santa Catarina, tendo até então contribuído na formação de 8 turmas entre a grande Florianópolis, sul, litoral e Vale do Itajaí, num total de aproximadamente 150 voluntários, cujos fundamentos quero apresentar brevemente neste artigo, o que passo a fazer na sequência.
Antes de tudo, pretendo fazer uma ressalva ao termo “humanizado”, pois como pode um atendimento feito por pessoas não ser humano? Pois bem, o termo está posto justamente para chamar a atenção. É preciso destacar que um atendimento a pessoas em situação de violência requer uma atenção maior, a partir do acolhimento e da escuta.
Para isso, utilizamo-nos da metodologia da Comunicação Não Violenta. A CNV, como é popularmente conhecida, é uma ferramenta de apoio a diálogos e conversas desafiadoras, desenvolvida pelo psicólogo norte-americano Marshall Rosemberg[2] e se baseia em quatro pilares principais: Observação – sentimentos – necessidades – pedidos claros. É em torno desses pilares, que desenvolvemos o nosso conteúdo.
O primeiro ponto da formação, parte do pilar observação, que se pauta em procurar observar sem julgar nos atendimentos, o que implica em atentar-se aos contextos. Contexto diz respeito não apenas ao indivíduo, ao seu histórico, mas também ao contexto político, econômico e legislativo vivenciado. Logo, é extremamente importante inteirar-se sobre todos os aspectos da Lei Maria da Penha, a saber o contexto da sua edição, o seu propósito, a quem se direciona, para quais casos é aplicável, entre outras questões.
A esse respeito, temos logo no art. 2º da referida lei que “toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana” e deve ser tutelada pela Lei Maria da Penha. Sob este aspecto, cabe justamente uma aproximação sobre questões de gênero: assim como há de se desmascarar o homem “monstro”, “abusador”, há de se desmistificar também a vítima, como aquela mulher idealizada no seio da família patriarcal tradicional, casada, submissa, mãe e dona de casa. O mesmo olhar que se tem para essa mulher, de respeito e dignidade, deve ser dado a uma mulher lésbica que venha a sofrer violência psicológica da sua companheira, sem que seja questionada em sua vivência, por exemplo[3].
Em relação ao contexto de vida das pessoas atendidas, já dizia Freire (2018)[4] que observar os contextos sócio-histórico-econômicos nos quais as pessoas vivem, é imprescindível para uma boa abordagem. Há que se ter o cuidado, contudo, de que conhecer o contexto da pessoa em situação de violência não significa fazer inúmeras perguntas e explorar a sua vida íntima. As perguntas devem vir a partir do que a própria pessoa traz de informações e quer partilhar com quem lhe atende. Assim, as perguntas devem ser realizadas para esclarecer o fato ocorrido e não a curiosidade humana.
Aqui, entra uma outra característica preciosa da CNV: o poder da presença. Profissionais da advocacia, em sua maioria, foram treinados para terem todas as respostas e soluções, mas com isso muitas vezes não escutam verdadeiramente o seu cliente. Na ânsia de respondê-lo, perdem as sutilezas não apenas das palavras, mas dos gestos, dos olhares e do que não foi dito. Algo que percebo nesses anos de prática é que em muitos casos, a pessoa só quer ser ouvida. Seja mediante um projeto ou na advocacia particular, uma pessoa em situação de violência que busca a assistência de um advogado, quer alguém que possa verdadeiramente ouvi-la, por isso preciosa a presença e a escuta-ativa.
Tais ferramentas fazem parte de um método que poderá auxiliar o profissional que se disponibilize a atender vítimas de violência de Gênero. Friso este ponto, pois não raro profissionais colocam-se à disposição deste serviço para atender com base apenas no senso comum, naquilo que tem de vivências, crenças e achismos sobre a violência em si. Proponho assim, um módulo com recursos possíveis para um atendimento com maior cuidado, mas acima de tudo, provocando a reflexão sobre a importância deste ato, que deve ter o mesmo rigor técnico[5] do que quando se elabora uma petição em Juízo.
Não apenas os métodos de atendimento são importantes nesses casos, como o conhecimento sobre a temática. Fala-se, já há algum tempo, sobre o cuidado com o não-julgamento, mas não se ensina a fazê-lo. Quando nos apropriamos da temática a ser trabalhada, citando o exemplo do ciclo da violência contra a mulher[6], mencionando que em um ciclo de relacionamento abusivo, cada mulher passa em média 7 (sete) vezes por este ciclo para conseguir rompê-lo (seja com a mesma pessoa ou com pessoas diferentes), começa-se a compreender um pouco mais acerca do envolvimento psicológico afeto.
Assim, é possível compreender porquê mulheres voltam para ciclos abusivos e porque é tão difícil rompê-lo, de modo que o exercício do não-julgamento passa a ser mais autêntico. Ainda, quando falamos sobre as formas de violência contra a mulher, com exemplos práticos e falamos sobre o violentômetro, demonstrando os verdadeiros riscos existentes, também se chega mais próximo de um não-julgamento, que é diferente de dó e piedade ou qualquer outro aspecto caridoso.
Nesse mesmo sentido, um outro aspecto bastante relevante que buscamos trabalhar neste módulo é a desidentificação com os casos. Quando os voluntários são questionados durante as aulas, acerca da motivação que os trouxe ao projeto, em todas as vezes ao menos uma pessoa se manifesta no sentido de já ter passado por algum tipo de violência de gênero ou presenciado de perto. Neste ponto, precisamos verificar o quanto este emocional está trabalhado ou é latente no profissional atuante.
Não à toa, nos é ensinado nas universidades, sobre o cuidado de atuar em causa própria pois o envolvimento emocional pode atrapalhar na boa análise do caso. Da mesma forma, no atendimento a pessoas em situação de violência que têm demandas muito parecidas com aquilo que vivenciamos. Desse modo, há ainda o respaldo orientativo aos atendimentos pelo Protocolo de Escuta Humanizada, lançado em agosto de 2021 pelo nosso TJSC, com capítulos próprios a cada instituição envolvida no processo, reforçando que o profissional da advocacia deve promover “a realização da oitiva respeitosa, humanizada e não revitimizadora”[7].
Tomar o problema para si e querer solucioná-lo do seu jeito, implica em retirar a força da pessoa que procura ajuda. As relações de violência de gênero, em sua maioria, são também relações de desigualdade de poder, na qual a pessoa que pratica a violência está em posição de hierarquia sobre aquela que é violentada, o que a deixa em uma relação de dependência com o seu agressor em diversos aspectos, seja financeiro ou emocional, por exemplo[8].
Caso o profissional da advocacia não tenha os cuidados para não se deixar levar emocionalmente pela situação da vítima, ele pode vir a ocupar este lugar de autoridade na vida da vítima. Explico: o profissional que diz que vai fazer tudo por aquela vítima, que toma a frente das situações e escolhe os caminhos a percorrer, pode estar criando uma nova relação de dependência com a vítima, não mais com o agressor, mas com o profissional, o que é prejudicial a todos.
O ideal, é que este profissional se coloque lado a lado com a pessoa que lhe procura. Sempre compartilhando com ela os caminhos possíveis e explicando as suas consequências, para que juntos decidam qual a melhor decisão a ser tomada em cada momento.
Por isso, importante o segundo pilar da comunicação não-violenta, qual seja, a identificação dos sentimentos. É essencial escutar como a vítima se sente diante da situação que está passando e, diante das possibilidades jurídicas, qual a sua decisão pessoal, afinal, é ela quem vai vivenciar a situação apresentada. O registro de uma ocorrência, por exemplo, nem sempre é o caminho escolhido pela vítima, sobretudo em questão de crimes sexuais. É preciso ouvi-la, saber o que ela deseja e o que dá conta naquele momento, pois a representação pode ser boa ao sistema de justiça, mas para a pessoa, o enfrentamento de um caminho para o qual talvez ainda não esteja amparada o suficiente a percorrer.
Quando se fala em violência de gênero, é necessário sempre lembrar que falamos de um fenômeno a ser trabalhado em rede. Vários são os serviços que devem compor o atendimento à vítima, já está previsto desde a Lei Maria da Penha. É necessário o acompanhamento psicológico, social, dentre outros, que vão auxiliar na retomada da sua autonomia para conseguir tomar decisões mais conscientes e sustentáveis.
Nosso sistema penal é bastante focado no punitivismo e, conheço e leio muitas colegas feministas (aí me incluo) que criticam tal aspecto do nosso sistema. Porém, ao se deparar com casos concretos, como violências em casos de gênero, não conseguem pensar em soluções para além deste punitivismo. Perde-se, assim, o foco na vítima e na importância do trabalho em rede para auxiliá-la e auxiliar a sociedade como um todo, pois estamos tratando de crimes que estão nas entranhas culturais, históricas e estruturais da nossa sociedade.
Nesse caminhar, se apresenta o terceiro ponto da CNV, que é a identificação das necessidades. Passados os dois primeiros aspectos, ouvindo verdadeiramente a pessoa em situação de violência, é que conseguimos entender do que ela de fato necessita. Nos atendimentos, cuidaremos sim dos aspectos jurídicos, mas também é nosso papel conhecer os setores assistenciais para dar os encaminhamentos necessários.
Só assim conseguiremos alcançar os pedidos claros, que compõem o pilar final da CNV. Uma vez que todo esse caminho tenha sido percorrido, os pedidos ficarão mais claros e passaremos a entender o que aquelas pessoas em situação de violência de fato necessitam no momento de vida em que se encontram.
Longe de ser a única alternativa para a realização de atendimentos a pessoas em situação de violência de gênero, o método ora apresentado (de forma bem resumida), é uma proposta possível que traz um amparo maior ao profissional que irá atuar nestas demandas. Ter uma orientação sobre como conduzir os atendimentos a partir de uma premissa não revitimizadora, favorece não só ao profissional, mas ao atendido. Há que se ter a sensibilidade, mas também o rigor técnico e crítico para que tratemos dessas questões com respeito e dignidade, a partir da seriedade que o tema nos impõe.
*Advogada Criminalista e Familiarista com foco de atuação em Direito Antidiscriminatório. Especialista em Direito Penal e Processo. Vice-Presidente da Comissão Nacional de Justiça Restaurativa da ABRACRIM (2022-2025).
[2] Rosemberg graduou-se em psicologia na década de 1960, período no qual também desenvolveu a metodologia da CNV, utilizada na época em projetos públicos de integração entre escolas e instituições públicas, a fim de pacificar as relações no pós-movimento de segregação racial. A metodologia se expandiu para diversas áreas, tendo o seu expoente trabalhado também em países assolados por guerras civis, conforme se lê em seu livro de referência: ROSEMBERG, Marshall B. Comunicação não violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. Tradução de Mário Vilela. São Paulo: Ágora, 2006.
[3] Inclusive, para elucidar o tema, citamos o entendimento da 6ª Turma do STJ no julgamento do Recurso Especial 1.977.124, afirmando sobre a aplicação da Lei Maria da Penha a pessoas trans, o que corrobora as orientações da Recomendação nº 128/2022 do CNJ.
[4] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 57. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.
[5] Aqui, não quero referir técnica a tecnicismo, de vertente mecanicista, mas a bases epistemológicas e métodos que proporcionem ao profissional um cuidado maior com as pessoas que serão atendidas.
[6] WALKER, Lenore. The battered woman. New York: Harper and How, 1979.
[7] Protocolo de escuta humanizada, realizado pela CGJ-SC em 2021, disponível em <https://www.tjsc.jus.br/web/violencia-contra-a-mulher/protocolo-para-escuta-humanizada>, acesso em jul. 2023.
[8] ARRUDA, Bruna Boldo; DOS SANTOS, João Antonio da Cruz. O enfrentamento da violência contra as mulheres sob o enfoque da justiça restaurativa e da perspectiva sistêmica. In Baggenstoss GA, Dos Santos PR, Sommariva SS, Hugill MSG. Não há lugar seguro. Florianópolis: Editora Centro de Estudos Jurídicos (CEJUR), 2019.P. 178-197.