Existe a possibilidade do cabimento de ANPP (Acordo de Não Persecução Penal) em crimes de maus-tratos de animais?
Anaís Maria Ferreira de Araújo[1]
O presente artigo tem por objetivo esclarecer, debater a temática que nos últimos tempos têm sido alvo de grandes controvérsias no âmbito jurídico sobre a impossibilidade ou possibilidade de cabimento de ANPP em crimes de maus-tratos de animais.
Animal, maus-tratos, ANPP
SUMÁRIO: Introdução. 1. ANPP (Acordo de não persecução penal) 2. Maus-tratos de animais 3. É possível a ANPP em crimes de maus-tratos? Conclusão. Referências.
Antes de adentrarmos na problemática sobre a possibilidade de ANPP em caso de crimes de maus-tratos de animais é de extrema importância, realizar uma análise doutrinária, jurisprudencial e legislativa sobre o Acordo de não persecução penal.
Assim como, fazer um estudo do que se enquadra como maus-tratos de animais, e se o não cabimento de ANPP seria restrito apenas em prática de maus-tratos de animais domésticos, visto que, a Lei Sansão aumentou a pena de maus-tratos para cães e gatos de detenção de 3 meses a um e multa, para reclusão de 2 a 5 anos, multa e proibição de guarda.
Enquanto que, a pena para prática de maus-tratos para os animais silvestres, exóticos permanece a legislação da Lei de Crimes Ambientais ( Lei nº 9605/98).
1.ANPP (ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL)
De acordo com o caput do art. 28 – A do Código de Processo Penal:
Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente
O artigo referente ao acordo de não persecução penal é bastante claro, nos casos em que a prática de infração penal a pena mínima for inferior a 4 anos, assim como não pode existir violência ou grave ameaça, para que a ANPP seja oferecida ao sujeito praticante do delito.
Trata-se de um rol taxativo, não deixando nenhuma omissão legislativa para que o operante do direito possua o entendimento de que a aplicabilidade da ANPP bastasse apenas o quantitativo da pena ou se foi um crime sem violência ou grave ameaça, deve-se levar em consideração os dois fatores, pois ambos são pré-requisitos para o oferecimento do acordo de não persecução penal.
Importante salientar que após o oferecimento da ANPP o juiz precisará homologar para que possa ter validade no âmbito jurídico, entretanto, cabe ao magistrado verificar se foi preenchido todos os requisitos dentro da legalidade, e quando se fala em legalidade, não apenas o que menciona o art. 28 – A do Código de Processo Penal, assim como, a Constituição Federal, e os demais princípios necessários que venham resguardar todos os direitos fundamentais, não apenas do sujeito que praticou o delito, mas também, os princípios que regem a sociedade, e na temática de maus-tratos dos animais, deve-se analisar os princípios referentes ao direito animal.
A legislação referente aos crimes ambientais traz no art. 32 da Lei de nº 9605/98:
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: (Vide ADPF 640)
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. (Vide ADPF 640)
§ 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.
Como se pode observar o crime de maus-tratos referente aos animais silvestres, nativos ou exóticos a pena continua a de detenção que é de três meses a um ano e multa. Enquanto que a pena para animais domésticos cães e gatos, houve o aumento de pena para a reclusão de 2 anos a 5 anos, multa e proibição de de guarda. Vale também mencionar a ADFP de nº 640, o qual proibiu o abate dos animais apreendidos em situação de maus-tratos.
A legislação ainda é omissa no Código Penal sobre a tipificação de maus-tratos, então cabe ao legislador e o operante do Direito sanar a omissão legislativa através da Resolução do Conselho Regional de Medicina Veterinária de nº 1236/2018 e o Decreto Lei de nº 24.625/34.
De acordo com o Conselho Regional de Medicina Veterinária na Resolução 1236/2018:
art. 2 (…)
II – maus-tratos: qualquer ato, direto ou indireto, comissivo ou omissivo, que intencionalmente ou por negligência, imperícia ou imprudência provoque dor ou sofrimento desnecessários aos animais;
III – crueldade: qualquer ato intencional que provoque dor ou sofrimento desnecessários nos animais, bem como intencionalmente impetrar maus tratos continuamente aos animais;
IV – abuso: qualquer ato intencional, comissivo ou omissivo, que implique no uso despropositado, indevido, excessivo, demasiado, incorreto de animais, causando prejuízos de ordem física e/ou psicológica, incluindo os atos caracterizados como abuso sexual; (…)
Então, pode-se concluir que maus-tratos não é simplesmente o ato de bater no animal, mas sim, inúmeras situações, como por exemplo, não alimentar, não dar água, nem assistência médica veterinária, ou seja, quaisquer condutas que sejam necessárias para garantir o mínimo de bem-estar ao animal.
3. É POSSÍVEL A ANPP EM CRIMES DE MAUS-TRATOS?
Já foi mencionado os requisitos necessários para a propositura de um acordo de não persecução penal, bem como o que é crime de maus-tratos. Então, no caso do crime de maus-tratos, não é possível a propositura de ANPP, nem em caso de maus-tratos de animais silvestres ou exóticos, e muito menos de cães e gatos.
Pode-se existir o questionamento no tocante à pena referente aos maus tratos de animais silvestres e exóticos, por ser uma pena ínfima, que nem sequer enseja em reclusão, apenas em detenção. Mas, como já suscitado anteriormente, o cabimento da ANPP não deve vislumbrar exclusivamente o quantitativo da pena, mas sim, se houve violência ou grave ameaça ao bem jurídico tutelado, e no caso em tela, o bem jurídico tutelado além do bem estar animal é o direito à vida digna.
Nos últimos meses está começando a surgir embates jurídicos sobre a possibilidade da ANPP, outros casos em que a promotoria oferece o acordo de não persecução penal, violando os requisitos necessários em rol taxativo no art. 28 – 4 do Código de Processo Penal, ou seja, o órgão que era para fiscalizar a lei, está violando a própria lei.
Entretanto, há também manifestação ministerial da promotoria do Estado do Paraná, município de Ponta Grossa, contrária ao oferecimento de Acordo de não persecução penal, o qual segue a determinação legal propriamente dita:
AUTOS 181-54.2022.8.16.0019
Teve início presente inquérito policial para apurar a prática, em tese, do crime previsto no art. 32, §§1º-A e 2º, da lei n. 9.605/981, imputada a José Aparecido Santos e Carlos Eduardo Delinski, ocorrida no dia 12 de dezembro de 2021. (…)
É o relatório do essencial.
A materialidade do crime de maus tratos, para além das imagens constantes dos autos, tem-se os depoimentos das testemunhas, atestando que a cachorra Djin foi morta por um tiro. Quanto aos indícios de autoria, são certos e recaem sobre José Aparecido Santos e Carlos Eduardo Delinski. (…)
Considerando que o crime cometido mediante violência, descabe falar em acordo de não-persecução penal.
[…] diferentemente de outras previsões [art. 41, I, do CP, p. ex.], o
dispositivo [art. 28-A do CPP] não exige que se trate de crime sem violência à pessoa, de forma que não há razão para se excluir da vedação legal a prática de violência contra seres sencientes, até porque não se está diante de violência contra a coisa. […] Se a Constituição da República diz que o animal não é uma coisa, senão um ser senciente, dotado de valor e dignidade próprios, não se pode incluir a violência contra os animais na categoria de violência contra a coisa, por se tratar de interpretação contrária ao texto constitucional. (…)
Assim como, há decisões no sentido de não acatar a ANPP, decisão proferida pelo juiz da 2ª Vara Criminal da Comarca de Montenegro/RS:
“ Art. 28 – A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça, e com a pena mínimo inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: […]
Em análise ao caso telado, verifica-se que o suposto crime de maus-tratos contra animais foi praticado com violência, uma vez que, o indiciado estava com os faróis do carro ligados, possibilitando boa visualização de rua e do cachorro que aparece deitado, cuja pelagem se destaca da cor do chão, tendo inclusive reduzido a velocidade momentos antes de passar por cima do cão, como se estivesse tentando minorar os danos do veículo pelo impacto, passando por cima do cachorro, momento em que começa uma algazarra de uivos de dor e latidos dos demais animais. O motorista então coloca o corpo para fora do veículo para acompanhar o que estava acontecendo, dá ré, anda mais uns metros para frente, dá nova ré na transversal, passando com a roda dianteira esquerda por cima do animal, que levanta agonizando. O motorista então segue seu curso, sem se preocupar em prestar socorro ou verificar se o cachorro possuía dono, conforme se verifica dos relatos, até então juntadas aos autos.
Assim, apesar de a proposta de acordo de não persecução penal ser uma prerrogativa do próprio Ministério Público, nada impede a atuação judicial, limitada à avaliação da presença dos pressupostos legais para o acordo.
Por todos os motivos expostos, entendo que não é cabível, no presente caso, a homologação de não persecução penal, por ausência dos requisitos objetivos para sua propositura.
É preciso existir a compreensão dos operadores do direito de que o cabimento do acordo de não persecução penal não se limita apenas a análise sobre o quantitativo da pena referente ao ato delituoso que o sujeito praticou, e sim, e também deve ser analisado se o crime praticado foi realizado com violência ou grave ameaça, conforme preceitua o próprio art. 28 – A do Código de Processo Penal.
Ainda há muito o que se evoluir na temática de Acordo de não persecução penal em relação aos crimes de maus-tratos, visto que, existem alguns operadores do direito que simplesmente se limitam ao tempo de pena do sujeito ignorando por completo que o crime de maus-tratos, trata-se de um crime em que existe uma violência ou grave ameaça.
E, não possui uma maior análise dos casos envolvendo os animais, o que falta muitas vezes no operador do direito é a sensibilidade e o bom senso, pois se no lugar do animal fosse uma pessoa, com certeza jamais seria oferecido a ANPP.
https://www.conjur.com.br/2023-ago-01/vicente-franklin-maus-tratos-caes-gatos-anpp/
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14064.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm
[1] Advogada.Professora. Palestrante. Mestre em Direito Público. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Pós-graduanda em Direito Ambiental. Pós-Graduanda em Direito Aeronáutico. Pós Graduanda em Direito Saúde Hospitalar. Presidente da Comissão de Direito e Proteção dos Animais da OAB/PE. Diretora Adjunta de Marketing da Comissão da Abracrim Mulher. Ex- Secretária da Abracrim/PE.