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O testemunho policial no processo penal: um debate necessário a ser trazido pelos criminalistas

Bárbara Simões da Silva*

Com 832.295 mil internos, o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo. Destes, 210.687 são presos provisórios e 621.606 foram condenados[1]. Ao observarmos os crimes cometidos que ensejaram tais prisões temos os delitos contra o patrimônio e relacionados às drogas como os principais. Logo, como afirma Marcelo Semer[2], ambos causam uma espécie de pânico social e moral, o que acaba por validar o discurso da impunidade e pressionar os responsáveis pela investigação, acusação e julgamento de crimes.

Dos responsáveis, há um personagem que possui o primeiro contato com o crime e seus autores, sendo ele, prima facie, quem efetua as prisões e é o encarregado de trazer a primeira “verdade” a ação penal: o policial.

Na esfera administrativa, os agentes públicos são agraciados com a presunção de legitimidade, imperatividade, tipicidade, autoexecutoriedade e veracidade aos seus atos administrativos.

Inobstante, os policiais obtiveram, ao longo do tempo, a presunção de veracidade atribuída à sua narrativa e trazida ao processo penal brasileiro quando no momento de depor em sede policial e em juízo contra um suposto acusado, concedendo um protagonismo um tanto quanto antidemocrático ao testemunho policial.

Por consequência deste protagonismo, o testemunho policial é muito utilizado em uma sentença condenatória[3]. Aliás, a pesquisa realizada por Maria Gorete Marques de Jesus[4] a respeito da prisão provisória e lei de drogas afirma que em 78% dos casos de flagrantes analisados os policiais eram as únicas testemunhas.

Visto que a prova testemunhal é o principal meio de prova do processo penal brasileiro para condenar, a narrativa advinda de um policial militar ou civil recebe ainda mais credibilidade por ser um agente estatal. Daí, o primeiro motivo para mantermos o foco na formulação dessa problemática.

Para muitos, a finalidade do processo judicial é a busca da verdade, e o conceito de verdade é outra discussão necessária na abordagem do tema, pois trabalhada pela Epistemologia Jurídica Filosófica e aplicada no Processo Penal.

E por isso é fundamental que para uma hipótese fática apresentada ser comprovada ou incomprovada no decorrer do processo penal haja o denominado standard probatório, o qual se refere ao grau de probabilidade em que os fatos devem ser provados para serem tidos verídicos[5].

Ou seja, o que se quer dizer é que uma decisão judicial não necessariamente confirma a veracidade dos fatos alegados por uma das partes do processo. Especialmente no que diz respeito a prova testemunhal policial, é evidente que esta deve fazer parte de um standard probatório, porém, não merece atribuição de veracidade presumida. Isto, porque a figura policial foi e é construída socialmente pelos interesses do Estado-acusador e do sistema capitalista e, do mesmo modo, conforme afirma Zaffaroni[6]: “o inimigo é uma construção tendencialmente estrutural do discurso legitimador do poder punitivo”.

Os testemunhos policiais tidos como verdade implicam na ocorrência da injustiça epistêmica. O conceito trazido pela filósofa britânica Miranda Fricker[7] é abordado pela Epistemologia Jurídica e consiste na valoração desigual e desconsideração atribuída à narrativa de personagens baseada no preconceito identitário, a qual ocorre, principalmente, dentro do Poder Judiciário. Isto é, a injustiça epistêmica é promovida por mecanismos perpetuados pelo sistema de justiça criminal e todo seu aparato estatal, mais especificamente, neste caso, a polícia.

Nesse contexto, a atuação do advogado criminalista precisa ser minuciosa.

O advogado deve trazer este debate nas peças processuais, o tornando relevante aos olhos do juiz, analisando o conceito de testemunha no processo penal e se os policiais se encaixam no requisito; demonstrando a inconstitucionalidade da presunção de veracidade do testemunho policial no âmbito criminal diante do princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF/88); pesquisando como os juízes dos tribunais de justiça do Brasil vêm valorando a palavra do policial, decidindo condenações e absolvições a partir destas e; sem dúvidas, como os tribunais superiores estão valorando e decidindo a narrativa policial.

Há tantos temas necessários a serem trazidos ao centro da discussão na área criminal. E trago esse breve tema para instigar os colegas a trabalharem ele em suas atuações, e escrevo isto porque não podemos esquecer que nós, advogados criminalistas, é quem somos a voz ativa dessa causa. Sem o nosso olhar crítico e questionador, nenhuma mudança acontece. Questionemos. Sempre.

*Bárbara Simões da Silva é Advogada Criminalista


[1] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2023, p. 17

[2] SEMER, Marcelo. Sentenciando o tráfico: O papel dos juízes no grande encarceramento. 1. Ed. São Paulo, Tirant Lo Blanch, 2019. 

[3] Para ilustrar este cenário, alguns acórdãos proferidos nesse sentido: TRF4, ACR 5001822-28.2013.404.7115, Sétima Turma, Relator p/ Acórdão Ricardo Rachid de Oliveira, juntado aos autos em 25/02/2015); TJPR – 4ª C.Criminal – AC – 1178276-0 – Cascavel – Rel.: Luciano Carrasco Falavinha Souza – Unânime – – J. 29.01.2015 

[4] JESUS, Maria Gorete Marques de. ‘O que está no mundo não está nos autos’: a construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas. 276 f. Tese (Doutorado) – Curso de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. 

[5] MATIDA, Janaina Roland. O valor probatório da palavra do policial. Revista Trincheira Democrática. Ano 3. Nº 8. 2019, p. 48-52 

[6] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. Tradução Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 3. ed, 2011, 222 p. 

[7] FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: Power & the Ethics of Knowing. Nova Iorque: Oxford, 2007. p.1, tradução nossa.

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