Segurança humana – desafios da Agenda 2030 da ONU
Marcelo Bareato*
Com o pós-guerra e a revolução industrial, vários foram os desafios enfrentados para a convivência e garantia da dignidade humana.
Não por menos, vários tratados internacionais, acordos entre países, criação de tribunais para defesa dos direitos humanos, o tribunal penal internacional, dão conta de que é crescente a preocupação em assegurar a vida humana com dignidade e compelir os Estados a respeitar, sobretudo, o cidadão, criando mecanismos que garantam a convivência com uma certa qualidade de vida.
Visão idêntica já existia na Grécia, quando Aristóteles, em sua célebre Política, apontou para o fato de que o homem só é plenamente humano, quando vive em qualquer era de esplendor da sociedade, com defesa e segurança (Política, IV, c.14). No Leviathan, publicado na Inglaterra em 1651, Thomas Hobbes sublinhou que a função do Estado é manter a paz entre os cidadãos, com a garantia da segurança. John Locke, em Dois Tratados sobre o Governo, lançado na Inglaterra em 1690, observou que a segurança é essencial para salvaguardar a intimidade e os domínios do homem. Jean Jacques Rousseau, na obra Do Contrato Social, editada na França em 1762, mostrou que a soberania da sociedade implica em preservar a segurança e o bem estar da vida, essenciais à preservação do homem. No Discurso Anual do Estado da União, na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, em 1941, o então presidente Franklin Delano Roosevelt, abordou a segurança como primeiro propósito do Estado e, por isso, ressaltou a alta significação da Freedom. Em 1966, o professor Willian Blatz lançou, no Canadá, seu livro Human Security: Some Reflections, o primeiro estudo técnico a utilizar a expressão Segurança Humana, de modo a colocar em relevo os estereótipos da desordem urbana, no plexo da inter-relação entre a sociedade, a proteção e o desenvolvimento humano.
Fato é que a expressão Segurança Humana indica a garantia da sobrevivência individual e do bem estar com dignidade das pessoas no contexto do convívio social e vem amparado no artigo III da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) – toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, na ONU – Organização das Nações Unidas como – processo que engloba tanto a libertação do medo, como a libertação da necessidade (PNUD 1994), e impactam o relacionamento dos seres humanos em três esferas: individual, familiar e comunitária.
Seguindo estes passos, no relatório do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, de 1994, sete esferas foram eleitas como componentes centrais para a segurança humana: 1) segurança econômica – renda básica segura para as pessoas, proveniente, geralmente, de trabalho remunerado e produtivo, ou, em último recurso, de uma rede de segurança com financiamento público; 2) segurança alimentar – todas as pessoas, em qualquer tempo, devem ter acesso, tanto físico como econômico, aos alimentos básicos; 3) segurança na saúde – garantir a proteção mínima para combater doenças e estilo de vidas insalubres; 4) segurança ambiental – acesso ao saneamento ambiental, tais como recursos hídricos limpos, redes de esgoto e tratamento de resíduos sólidos, poluição atmosférica; 5) segurança cidadã – proteger as pessoas das aflições advindas da ameaça de violência física ou moral, seja por motivação interna, seja por motivação externa; 6) segurança comunitária – estimula laços de solidariedade e de estima com a filosofia e a estratégia organizacional das parcerias entre a população, governos e instituições públicas e privadas; 7) segurança jurídica – inerente a uma sociedade que respeita a eficácia do exercício do poder, que deve estar voltado ao bem comum, cuidando da garantia da exigibilidade das regras de direito que motivam os valores das relações harmônicas na sociedade entre o Estado e os cidadãos.
No Brasil, em 1997, na cidade de São Paulo, foi criado o Instituto de Segurança Humana do Brasil, dedicado à realização de cursos de aperfeiçoamento e à implementação de projetos de pesquisa no âmbito do Direito Penal, da Criminologia e da Política Criminal, focalizando temas relacionados aos crimes de homicídios, de corrupção contra imigrantes e refugiados, além de estudos sobre a pobreza e criminalidade, mediação das penas privativas de liberdade ou sujeição dos condenados às medidas pedagógicas alternativas à prisão.
Por ser tema de extrema relevância e necessidade para a manutenção da vida em sociedade e para a reorganização da sociedade para propiciar ao cidadão uma condição digna e suficiente para nação soberana e próspera, a Agenda 2030 da ONU imagina viabilizar políticas operacionais para suporte ao desenvolvimento humanos através: 1) do fundo fiduciário das Nações Unidas para segurança humana; 2) conselho consultivo das Nações Unidas para a segurança humana; 3) assessoria especial das Nações Unidas para a segurança humana; 4) unidade de segurança humana das Nações Unidas; 5) parlamentares para ação global de segurança humana; 6) rede para segurança humana; 7) resolução da ONU sobre segurança humana.
Destarte, a Assembleia Geral da ONU, em 10 de setembro de 2014, em Nova York, aprovou a Resolução A/Res 68/309, com o fim de pavimentar o caminho dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável para – Agenda 2030 da ONU: 1) erradicação da pobreza; 2) fome zero; 3) boa saúde e bem estar; 4) educação de qualidade; 5) igualdade de gênero; 6) água limpa e saneamento; 7) energia acessível e limpa; 8) emprego digno e crescimento econômico; 9) indústria, inovação e infraestrutura; 10) redução das desigualdades; 11) cidades e comunidades sustentáveis; 12) consumo e produções responsáveis; 13) combate as alterações climáticas; 14) vida debaixo d’água; 15) vida sobre a terra; 16) paz, justiça e instituições fortes; 17) parcerias em prol das metas.
As diversas modificações e adequações supracitadas, movimentam todas as áreas do conhecimento em prol de uma sociedade mais igualitária e preparada para os desafios vindouros.
Já no campo criminal, a Agenda 2030 também foi cautelosa e, desde o 9.º Congresso da ONU sobre a Prevenção do Crime e Justiça Criminal, em 1995, no Cairo, Egito, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), com sede em Viena, Áustria, vem agregando aos seus trabalhos técnicos a vinculação sistemática do comércio transnacional de drogas, como forte ameaça à segurança humana. A partir de 2010, o conceito de segurança humana passou a constar da estrutura administrativa do UNODC. Nessa linha, o entendimento sobre velhas e novas formas de crime transnacional vem sendo incorporados, não só como componente de ameaça à segurança humana, mas também a outros conceitos da Criminologia como ciência epistemológica.
De lá pra cá, o UNODC vem viabilizando, em todos os Continentes, diversos projetos de capacitação e assitência técnica para ajudar a prevenir e reduzir o crime, bem como controlar os danos provocados pelas modalidades de tráfico, terrorismo, contrabando de migrantes, corrupção, lavagem de dinheiro, crime cibernártico e outros tipos de criminalidade organizada, na perspectiva de alcançar melhores resultados para a promoção da segurança humana.
A preocupação se justifica na medida em que, já em meados do século XX, três em cada dez pessoas viviam em áreas urbanas, as quais não estavam preparadas para esse desordenado crescimento. Hoje, metade da população do mundo vive em cidades, e até meados do século atual, todas as regiões serão predominantemente urbanas. Essa grande mudança está sendo esperada, de maneira mais intensa na África Oriental. Na América Latina, o crescimento urbano explosivo chegará a 89% em 2050. Nos países do Cone Sul, Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, a taxa de ubanização, desde 2020, passa dos 90%.
Essa estatistica, que pode ser facilmente pesquisada junto ao ONU Brasil, é importante para pontuar que as cidades agem como ímãs para as populações pobres de áreas rurais. Isso tem contribuído para o rápido crescimento em áreas urbanas concrentrar-se nas favelas. Nessas áreas, 70% dos residentes já foram vítimas de alguma forma de criminalidade nacional ou transnacional.
O Modelo de Reforma da Segurança (MRS) busca aprimorar a entrega de eficientes serviços de segurança e justiça, abrangendo os direitos civis, sociais, políticos, culturais e econômicos, destinados a resguardar o que se denomina civilização. Eles são imprescindíveis para abrir a mente das pessoas em relação aos caminhos solidários, enfatizando a importância real da segurança humana, na busca da redução das desigualdades e injustiças que tanto afligem a humanidade.
É oportuno registrar que o Modelo de Refoma da Segurança (MRS) mantém harmonia com as Diretrizes de Prevenção do Crime, traçadas, em 2002, pelo Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC). Essas Diretrizes de Prevenção do Crime delineiam oito princípios centrais para suporte de planos de ação voltados à redução dos riscos e danos do crime no indivíduo e na sociedade: I – liderança governamental, em todos os níveis, para criar e manter uma estrutura institucional de efetiva prevenção do crime; II – desenvolvimento socioeconômico com estratégicas políticas, sociais e econômicas para fomentar a integração dos laços nas comunidades e nas famílias, visando à proteção de jovens e crinaças em situação de risco; III – cooperação e parcerias entre órgãos do governo, sociedade civil e setores empresariais; IV – sustentabilidade e responsabilidade com o uso de financiamento de programas e de medidas de avaliação de prevenção do crime; V – emprego de práticas e experiências comprovadas referentes ao êxito das políticas e programas de prevenção do crime; VI – respeito aos direitos humanos e elevação da cultura da legalidade; VII – preocupação com as conexões da criminalidade local e com o crime organizado transnacional; VIII – zelo em relação às diferenças entre homens e mulheres, assim como entre pessoas vulneráveis no convívio social.
No campo criminal, por exemplo, ZAFFARONI, Eugênio Raúl, na obra Direito Penal Humano e Poder no Século XXI, São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021, assim vem se posicionando:
Um estado é forte quando controla seu território (é soberano), resiste ao colonialismo (é independente) e reduz a estratificação social (é mais justo, ou, se preferir, menos injusto), ou seja, quando cria condições básicas de maior equidade na distribuição da riqueza e, portanto, torna possível melhores conquistas existenciais para seus habitantes. Em resumo, estas condições são as do direito humano ao desenvolvimento social.
(…)
Para dizer mais claramente, o grupo de poder que distribui, se não estiver sujeito a critticas e controle, tende a desviar a distribuição. Portanto, a tão mencionada disjuntiva do pão ou da liberdade é falsa: não é possível controlar e criticar a distribuição do pão sem liberdade; inversamente, se a liberdade for concedida sem pão, ela será usada para reivindicá-la.
Em vista do acima exposto, embora a legislação penal humana deva fazer da contenção do poder punitivo, indispensável para impedir o genocídio e proteger todos os bens legais, uma prioridade, não deve menos se preocupar com a contenção e neutralização de qualquer tentativa de exercer o poder punitivo contra a dinâmica social, em outras palavras, desmantelar qualquer tentativa de suprimir protestos, reivindicações públicas, movimentos populares, sindicatos, partidos políticos etc. Conquanto o direito penal não vá mudar a estrutura do poder – como vimos -, ele é o fator indispensável para possibilitar a dinâmica dos povos na busca do desenvolvimento humano.
Assim, meu Caro Leitor, a união de forças entre os tratados internacionais, como é o caso do Pacto de San Jose da Costa Rica, a observância as Cortes de Direitos Humanos Interamericana, Europeia e Africana, o amparo dos diversos protocolos da ONU para o desenvolvimento sustentável e a efetivação da Segurança Humana, bem como a Agenda 2030, além dos doutrinadores que se debruçam a buscar maior coerência sobre a questão humanitária e seus desdobramentos, se transformaram em importante instrumento de controle interno e externo, auxiliando, não só àqueles que desenvolvem atividades voltadas a erradicação das desigualdades e redução da criminalidade, mas, sobretudo, se tornando em importante instrumento para os advogados que militam na área criminal, no sentido de obrigar os Estados, o judiciário e o sistema de execução de penas, a cumprir as diretrizes mundiais para diminuição da criminalidade e respeito a dignidade da pessoa humana. Neste passo, nosso artigo de hoje tem a perspectiva de incentivar a pesquisa sobre os institutos ventilados vez que, quando as leis internas não atingem mais a esperada segurança jurídica, a especialização de profissionais em campos ainda pouco explorados, mas de eficácia e resultado comprovados, torna-se o fator de desempate entre um trabalho mediano e outro de excelência.
*O autor é Advogado Criminalista com ênfase no Direito Penal Econômico, doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO, Conselheiro Nacional da ABRACRIM, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, membro da Coordenação de Política Penitenciária da OAB/Nacional gestão (2022/2025), Coordenador da subcomissão de Direitos Humanos para o Sistema Prisional da OAB/Goiás (gestão 2022/2024) e Coordenador da Comissão Interestadual de Acompanhamento da Saúde no Sistema Prisional junto ao Conselho Municipal de Saúde de Aparecida de Goiânia/GO, Membro do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura/GO, Membro do FOCCO – Fórum Permanente de Combate à Corrupção do Estado de Goiás, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).