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A possibilidade de celebração de acordo de não persecução penal em casos de LGBTfobia

Luísa Walter da Rosa[1]

 Izadora Barbieri[2]

No dia 13 de junho de 2024 comemorou-se cinco anos desde a criminalização da homotransfobia no Brasil, decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n. 26 e do Mandado de Injunção (MI) n. 4733.

Na decisão o STF equiparou a homotransfobia ao crime de racismo, utilizando uma interpretação abrangente do conceito de racismo, não apenas restrita a aspectos biológicos ou fenotípicos, mas também considerando construções histórico-culturais que justificam desigualdades e visam à dominação ideológica, política e social de grupos vulneráveis, como a população LGBTI+[3].

Nessa linha, no HC 82.424/RS já havia se decidido, de maneira histórica, que o antissemitismo é conduta racista, pois racismo seria a inferiorização de um grupo social relativamente a outro[4]. Desta forma, a Corte reconheceu que a discriminação em razão da orientação afetivo-sexual e identidade de gênero também estão inseridas no conceito de racismo.

Portanto, não houve no caso concreto o ato de legislar, apenas um reconhecimento da aplicação da mesma interpretação conferida em precedente anterior à população LGBT+, após provocação em ações próprias de competência do Supremo (ADO e MI).

Fixado esse contexto, analisa-se agora a possibilidade de aplicação do acordo de não persecução penal (ANPP) em crimes relacionados à LGBT+fobia.

O acordo de não persecução penal pode ser considerado uma alternativa à persecução penal tradicional, na qual, não sendo caso de arquivamento das investigações, havendo justa causa para a ação penal e preenchidos os requisitos legais, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia e propor o acordo. O investigado, acompanhado de defensor, deverá confessar formal e circunstancialmente a prática criminosa, cumprir uma ou mais condições a serem pactuadas no acordo e, após o cumprimento, terá sua punibilidade extinta, sem configurar antecedentes criminais[5].

A ideia por trás da criação do instituto faz parte da lógica da expansão dos espaços de consenso no processo penal, visando um desafogamento do sistema penal brasileiro, por meio da resolução mais célere dos casos, priorizando a autonomia privada das partes para chegarem a um acordo em relação ao conflito penal[6]. A busca pela efetividade do acesso à justiça coloca em pauta a necessidade de considerar outras formas de reparação, evitando a revitimização das pessoas ofendidas em processos criminais.

A lei é bastante clara em vedar a possibilidade de celebração do acordo em casos específicos: não cabe ANPP se for cabível transação penal; se o investigado for reincidente; se tiver se beneficiado nos 5 anos anteriores ao cometimento da infração de transação penal, ANPP ou suspensão condicional do processo e nos crimes praticados no âmbito da violência doméstica ou familiar (incisos I a IV do §2º do art. 28-A).

Analisando-se especificamente a possibilidade de celebração de ANPPs em casos de LGBTfobia, os tipos penais previstos no art. 20 da Lei 7.716/1989 e no art. 140, § 3º do Código Penal (injúria racial) possuem pena mínima inferior a quatro anos, o que permite, em tese, a celebração do acordo de não persecução penal, caso os demais requisitos forem atendidos.

Inexistindo vedação expressa, acredita-se que o acordo poderá ser celebrado nestas possibilidades, pois o legislador foi claro ao especificar as proibições de pactuação do acordo, o que não pode ser desconsiderado na prática. Ademais, outras premissas relacionadas ao ANPP podem ser consideradas para corroborar essa posição.

Como já dito, o acordo de não persecução penal exige voluntariedade das partes para celebrá-lo, não podendo ser imposto, seja pelo Ministério Público ou pelo Poder Judiciário. Em casos de ação penal pública incondicionada, seria o Ministério Público o legitimado a oferecer o acordo, já em casos de ação penal privada, a própria vítima. Porém, nada impede que a vítima participe da celebração da avença como interessada, acompanhada de defensor, em casos de ação penal pública incondicionada.

A inclusão é positiva em diversos aspectos, não só na resolução do conflito, mas também no reconhecimento da vítima como sujeito de direitos, pois há muito que ela é negligenciada no processo penal, podendo o acordo servir como uma possibilidade dela ser ouvida e ter sua vontade considerada, em especial na definição das condições a serem cumpridas pelo investigado[7]. Nesse sentido o §4º do art. 18-A da Resolução n. 289/2024 do CNMP[8], que incentiva a participação da vítima no ANPP para fins de definição da reparação do dano, e o tópico 5.3 do Manual de Negociação do Acordo de Não Persecução Penal da ABRACRIM[9], que trata sobre a participação da vítima no acordo.

Inclusive, iniciativas como a resolução e o manual indicados acima auxiliam na construção de boas práticas relacionadas aos acordos[10], tanto na perspectiva da acusação quanto da defesa. O acordo de não persecução penal não deve ser pensado pela lógica da legalidade estrita da persecução penal de um processo penal tradicional, e sim a partir dos princípios da autonomia privada, lealdade, eficiência, confiança e boa-fé objetiva[11], o que permite uma certa liberdade negocial das partes na construção da solução do conflito.

Em termos práticos, o inciso V do caput do art. 28-A prevê que outra condição para além da reparação do dano, renúncia a bens e direitos, prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária poderá ser definida no caso concreto, quando proporcional e compatível com a infração penal imputada. Tal hipótese abre espaço para a inserção da justiça restaurativa como condição a ser cumprida no ANPP, por exemplo, que objetiva restaurar os danos causados pelo delito, por meio de sessões que visam responsabilizar o autor do fato e permitir que a vítima seja ouvida, através de um procedimento voluntário[12].

Mecanismos como a justiça restaurativa podem auxiliar na compreensão do conflito, porque a conduta seria considerada crime, porque causaria danos à sociedade, buscando uma solução que humanize as partes envolvidas no problema, por meio de uma conscientização e educação concernentes ao ato que foi cometido e o que há por trás dele, o que pode contribuir também para a diminuição da reincidência. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina[13], por exemplo, tem adotado práticas restaurativas há duas décadas, demonstrando o potencial dessa abordagem.

Outro método nessa linha são os grupos reflexivos e de responsabilização para homens autores de violência contra mulheres, previstos na Lei n. 11.340/2006, que já totalizam mais de 312 iniciativas em todo o país, e tem surtido um efeito positivo no combate à violência doméstica[14].

Numa lógica de se evitar a revitimização das pessoas ofendidas em processos criminais, em especial em casos de homotransfobia, a aplicação da justiça restaurativa e quiçá a criação de grupos reflexivos, conciliados aos acordos penais, podem oferecer novas possibilidades na justiça criminal.

A interseção entre ANPP e Justiça Restaurativa é incentivada no item 7 da Orientação Conjunta do MPF, no enunciado n. 10 da I Jornada de Direito e Processo Penal do Conselho da Justiça Federal e no item 8 do Manual de Negociação do Acordo de Não Persecução Penal da ABRACRIM.

Em relação ao que vem sendo feito na prática sobre ANPP em casos de LGBTfobia, não foi encontrado posicionamento específico. Porém, em relação aos crimes de racismo, a questão varia entre os Ministérios Públicos estaduais.

Em São Paulo[15] e no Paraná[16], recomenda-se aos integrantes do MP não oferecerem ANPP em casos de racismo, argumentando que essa medida seria insuficiente para a reprovação da conduta. Já no estado do Maranhão, recomenda-se a análise caso a caso e a aplicação do instituto, desde que observados os requisitos legais, nos seguintes termos:

Os crimes de racismo, compreendidos aqueles tipificados na Lei nº 7.716/89 e no art. 140, § 3º, do Código Penal, não constam no art. 28A, § 2º, do CPP, onde estão elencadas as hipóteses em que não se aplica o ANPP. Logo, não há vedação expressa para o ANPP em crime de racismo, compreendidos aqueles tipificados na Lei nº 7.716/89 e no art. 140, § 3º, do Código Penal. Contudo, assim como nos crimes hediondos e em todos os crimes, na verdade, há necessidade de se verificar, no caso concreto, se o ANPP é necessário e suficiente para a repressão e prevenção de tais crimes, levando em consideração, repita-se, inclusive a situação da vítima[17].

O STF já se posicionou sobre o tema, no julgamento do RHC 222.599/SC, de relatoria do Ministro Edson Fachin, julgado em 07/02/2023, tendo a Segunda Turma do STF, por maioria, decidido que o acordo de não persecução penal não abarca os crimes raciais, assim também compreendidos aqueles previstos no art. 140, § 3º, do Código Penal. Contudo, não houve, ainda, um enfrentamento específico pela jurisprudência sobre a possibilidade ou não de celebração de ANPP em casos de LGBTfobia.

Sendo assim, acredita-se que a extensão da vedação de aplicação do ANPP em casos de LGBTfobia não deva ser automática, em especial diante das possibilidades construtivas e educativas elencadas neste artigo.

Em abril de 2024 foi noticiado que o Ministério Público de São Paulo celebrou um acordo de não persecução penal em caso envolvendo discriminação homofóbica e sorofóbica, condutas enquadradas no art. 20 da Lei n. 7.716/1989. As condições a serem cumpridas pelos investigados consistiam em letramento dos envolvidos na temática LGBTQIAP+, tendo que assistir vídeos e ouvir podcasts; vedação de comparecimento na festa de formatura da vítima e prestação pecuniária a ser destinada a entidades dedicadas ao enfrentamento da homotransfobia. Foi ressaltado que as condições se basearam na vontade da vítima[18].

O exemplo acima demonstra o impacto positivo da celebração do ANPP em casos de LGBTfobia, tanto na perspectiva do investigado, que se vale de um benefício processual, quanto da vítima, que é ouvida e tem sua vontade considerada, tudo aliado a uma lógica educativa e quiçá preventiva de novas condutas. Tanto a criminalização da LGBTfobia quanto a inserção em lei do acordo de não persecução penal podem ainda ser consideradas novidades no direito e processo penal brasileiros, o que permite a construção de novas práticas.

A partir desta perspectiva, podemos pensar em outras formas de efetividade de uma reparação na esfera penal e, sobretudo, aliar à conscientização coletiva, trazendo para a realidade o conceito de igualdade material, previsto em nossa Constituição Federal, o que pode resultar na saída do Brasil do ranking de país que mais mata pessoas LGBT+ no mundo[19], auxiliando na construção de um direito antidiscriminatório.


[1] Mestra em Direito do Estado, com enfoque em Processo Penal pela UFPR. Pós-graduada em Direito Penal Econômico pela PUC Minas e em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS. Presidente da Comissão de Investigação Defensiva e Justiça Penal Negociada da OAB/SC e vice-presidente da Comissão Nacional de Justiça Penal Negocial da ABRACRIM. Autora de livros sobre colaboração premiada, acordo de não persecução penal e justiça penal negociada, pela Emais Editora. Advogada criminalista.

[2] Advogada criminalista. Diretora legislativa na ABRACRIM-Mulher gestão 2021/2025. Pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional e pós-graduada em Direitos LGBT+ pela Verbo Jurídico.

[3] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=414010 Acesso em: 06 jul. 2024.

[4] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-ago-19/paulo-iotti-stf-nao-legislou-equipararhomofobia-racismo/#_ftn1 Acesso em: 06 jul. 2024.

[5] Art. 28-A do CPP.

[6] MORAIS DA ROSA, Alexandre; ROSA, Luísa Walter da; BERMUDEZ, André Luiz. Como negociar o acordo de não persecução penal: limites e possibilidades. Florianópolis: Emais, 2021, p. 19.

[7] ROSA, Luísa Walter da; ROSA, Alexandre Morais da. A participação da vítima na negociação do acordo de não persecução penal: o reconhecimento do seu papel como sujeito de direitos. In: DAGUER, Beatriz; ROSA, Luísa Walter da; SOARES, Rafael Junior (org.). Justiça Penal Negociada: teoria e prática. Florianópolis: Emais, 2023, p. 29-45.

[8] CNMP. Resolução n. 289, de 16 de abril de 2024. Brasília, 2024. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/noticias/2024/Abril/Resolu%C3%A7%C3%A3o_289_2024.pdf Acesso em: 12 ago. 2024.

[9] ABRACRIM. Comissão Nacional de Justiça Penal Negocial. Rosa, Luísa Walter da (coord). Manual de negociação do acordo de não persecução penal [livro eletrônico]. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2024. Disponível em: https://editorial.tirant.com/free_ebooks/E000020005847.pdf Acesso em: 12 ago. 2024.

[10] ROSA, Luísa Walter da. A necessária relação entre liberdade negocial e protagonismo da defesa nos acordos penais. Boletim do IBCCrim, v. 354, p. 26-28, 2022.

[11] MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis na colaboração premiada: entre a legalidade e a autonomia da vontade. In: BOTTINI, Pierpaolo Cruz; MOURA, Maria Thereza de Assis (Coord.). Colaboração premiada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

[12] GODOY, Guilherme Augusto Souza; DELMANTO, Fabio Machado de Almeida; MACHADO, Amanda Castro. A justiça restaurativa e o acordo de não persecução penal. Boletim do IBCCrim, v. 330, p. 04-06, 2020.

[13] https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/justica-restaurativa-completa-mais-de-duas-decadas-de-implementacao-e-avancos-em-sc-1

[14] CNJ. Grupos reflexivos e responsabilizantes para homens autores de violência contra mulheres no Brasil: mapeamento, análise e recomendações. Florianópolis: CEJUR, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/12/grupos-reflexivos.pdf Acesso em: 12 ago. 2024.

[15] Orientação Conjunta n. 1/2020 – PGJ/SP e CGMP/SP  

[16] Enunciado 15 – Não cabe acordo de não persecução penal (ANPP) para o crime de injúria racial. Disponível em: https://mppr.mp.br/Juridica/Pagina/Acordo-de-Nao-Persecucao-Penal-ANPP. Acesso em: 06 jul. 2024.

[17] CARVALHO, Sandro Carvalho Lobato de. Questões práticas sobre o acordo de não persecução penal. São Luís: Procuradoria Geral de Justiça, 2021, p .98.

[18] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-abr-17/anpp-em-caso-de-discriminacao-preve-consumo-de-videos-e-podcasts/ Acesso em: 12 ago. 2024.

[19] Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2023-01/brasil-segue-como-pais-com-maior-numero-de-pessoas-lgbt-assassinadas Acesso em: 06 jul. 2024.

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