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Morosidade processual e a transferência de culpa: o cidadão penalizado pela inoperância do Judiciário

Danilo Marques Borges*

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a prisão de condenados pelo Tribunal do Júri pode ser imediata, independentemente da pena imposta. Tal decisão, que a princípio pode parecer uma resposta eficiente à morosidade processual, na realidade, representa uma distorção perigosa dos princípios constitucionais e do papel que cabe ao Poder Judiciário.

O fundamento central apresentado para justificar essa decisão é a suposta “vontade popular”, o que, por si só, já revela uma abordagem inidônea. A Constituição brasileira atribui ao Poder Legislativo a função de representar e traduzir a vontade popular por meio da criação de leis. O Poder Judiciário, por outro lado, deve interpretar e aplicar essas leis, sem extrapolar sua competência e, certamente, sem se basear em pressões ou expectativas populares. Ao fundamentar sua decisão na “vontade do povo”, o STF se desvia de seu papel institucional e adentra uma perigosa via de ativismo judicial, criando uma espécie de legislação indireta.

A decisão afronta diretamente o princípio fundamental da presunção de inocência, consagrado pela Constituição no artigo 5º, inciso LVII, que garante a todos os cidadãos o direito de serem considerados inocentes até o trânsito em julgado da sentença condenatória. No entanto, a postura adotada pelo STF parece relativizar essa garantia, ao permitir a prisão antes que todos os recursos possíveis sejam devidamente apreciados, sobretudo em um contexto onde o Código de Processo Penal (CPP) prevê recursos específicos para as decisões proferidas pelo Tribunal do Júri, como a apelação.

Ao analisar mais profundamente os argumentos utilizados pelo ministro Alexandre de Moraes, é evidente que a principal justificativa para a decisão está atrelada à demora nos julgamentos, o que demanda uma reflexão mais ampla. A morosidade processual, infelizmente, é uma falha que decorre da ineficiência estrutural do próprio Poder Judiciário. O que se vê, portanto, é uma clara transferência da inoperância estatal para o cidadão comum. Em vez de buscar soluções que garantam uma tramitação célere e eficiente dos processos, o Estado opta por relativizar direitos fundamentais, como se fosse mais fácil restringir liberdades individuais do que promover uma reestruturação sistêmica que torne o Judiciário mais eficaz.

A solução para a lentidão nos julgamentos não deveria ser a supressão de garantias constitucionais, mas sim a reforma estrutural do Judiciário, com o objetivo de garantir que os processos sejam julgados dentro de um prazo razoável, conforme também previsto no artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição. O que se observa, no entanto, é que a decisão do STF ignora essa necessidade de autocrítica e reforma, optando por uma solução simplista e imediatista, que compromete os direitos individuais.

Em suma, a decisão do STF de permitir a prisão imediata após condenação pelo Tribunal do Júri não é apenas um equívoco jurídico, mas também uma afronta aos princípios basilares do Estado Democrático de Direito. Ao se afastar de sua função de intérprete das leis e se aproximar perigosamente de uma função legislativa, o STF abre precedentes preocupantes para o futuro da justiça no Brasil. É necessário que se promova uma reflexão mais profunda sobre os reais problemas do sistema, sem sacrificar direitos fundamentais em prol de soluções que, na verdade, mascaram a verdadeira raiz do problema.

*Danilo Marques Borges é Conselheiro Nacional pela Abracrim-GO, advogado criminalista, professor, mestre e Doutor

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