
PL 4317/24 e a Fome no Cárcere: A Negligência como Instrumento de Política Penal
Israel Wesley da Silva de Lima*
A fome não é apenas uma consequência da pobreza ou da má gestão pública — ela é, historicamente, um mecanismo cruelmente utilizado pelo próprio Poder. No Brasil, desde o período colonial, o controle da alimentação foi uma ferramenta deliberada de repressão, imposta sempre às populações escravizadas como método de desumanização e disciplinamento.
Inacreditavelmente, no presente, a fome continua a operar como ferramenta de punição estatal, agora sob a fachada de negligência administrativa. No sistema prisional brasileiro, a precariedade alimentar não é fruto do acaso: trata-se de uma política punitiva não declarada, sustentada pela omissão estrutural do Estado e pela naturalização da miséria como parte da pena. Em pleno século XXI, negar comida suficiente e adequada aos condenados é evidentemente uma forma moderna de tortura — silenciosa, cotidiana e legitimada pelo discurso social de vingança.
É nesse cenário, que o Projeto de Lei 4317/2024, apresentado por Duda Salabert e o Pastor Henrique Vieira, representa um contragolpe necessário à lógica punitivista que transforma o cárcere em espaço de sofrimento deliberado. Ao estabelecer diretrizes para garantir refeições suficientes, equilibradas e compatíveis com as necessidades nutricionais dos detentos, o PL não se limita a uma providência administrativa: ele desafia diretamente a política da fome como castigo e reposiciona a alimentação como um direito fundamental. A proposta, portanto, é mais do que uma medida humanitária — é um gesto de ruptura com a barbárie institucionalizada.
A demanda dessa regulamentação emergiu ante à gritante realidade das prisões brasileiras, onde a alimentação é utilizada como um instrumento de punição adicional, violando princípios básicos de dignidade e os próprios dispositivos legais já existentes.
O projeto em comento altera a Lei de Execução Penal (LEP – Lei nº 7.210/1984) e a Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021), estabelecendo regras para melhorar a qualidade da alimentação e combater o desvio de recursos destinados ao fornecimento de refeições nos presídios. Dentre as mudanças propostas, destaca-se a fixação de um intervalo máximo de seis horas entre as refeições e de doze horas entre a última refeição do dia e a primeira do dia seguinte, garantindo que presos não fiquem longos períodos sem alimentação.
Além disso, o Texto Legal ora proposto, prevê a obrigatoriedade de fornecimento de alimentos durante deslocamentos e transferências, evitando que detentos passem fome ao serem transportados entre unidades prisionais.
Todavia, não é novidade para ninguém que propostas como essa enfrentam forte resistência de setores políticos que defendem um modelo de encarceramento pautado na degradação e na vingança, ao invés da legalidade e da ressocialização. Esse pensamento foi sintetizado em uma fala do então deputado Jair Bolsonaro, antes mesmo de ser Presidente da República, quando afirmou que “presídio cheio é problema de quem cometeu o crime”, como se o Estado, detentor do poder de punir, não tivesse qualquer responsabilidade sobre a custódia daqueles que condena.
Esse tipo de mentalidade justifica a negligência dentro das prisões, normalizando violações de direitos e convertendo o ambiente carcerário em um espaço de suplício institucionalizado, onde a fome—além da pena já imposta pela Justiça—é instrumentalizada para também penalizar.
A Lei de Execução Penal já estabelece, em seu artigo 12, que o Estado tem a obrigação de fornecer alimentação adequada aos presos. No entanto, essa previsão não é cumprida na prática, sendo comum o fornecimento de refeições insuficientes, mal balanceadas e frequentemente impróprias para o consumo.
Estudos recentes do Laboratório de Gestão de Políticas Penais (LabGepen) da Universidade de Brasília mostram que 92% dos presídios brasileiros oferecem alimentação sem variedade, 30,79% não fornecem proteína suficiente e 68% servem comida inadequada para consumo humano.
A relação evidentemente contraditória entre teoria e prática no sistema prisional brasileiro demonstra como a lei, embora bem fundamentada, se torna letra morta diante da realidade carcerária. Como bem pontua o professor Thiago Minagé[1]:
“(…) O outro lado da moeda, no entanto, nunca é apresentado e disseminado, pouco se fala sobre os custos das intensas operações policiais e do grande encarceramento no Brasil e, essas pautas, nunca são submetidas ao debate público. O tratamento penal da pobreza, ou melhor, das classes inferiorizadas, fica aos olhos da maioria, dotado de uma carga moral positiva enquanto detidos e moral negativa enquanto livres…”
Esse cenário reforça a ideia de que o sistema prisional não busca ressocializar, mas sim punir e degradar ainda mais aqueles que já se encontram marginalizados. A Iniciativa Legislativa 4317/24 propõe ainda a criação de um Programa Nacional de Segurança Alimentar dentro dos presídios, estabelecendo uma parceria entre União, Estados e Municípios para garantir a alimentação dos presos e incentivar a produção agroecológica dentro das unidades prisionais.
A ideia é utilizar terrenos ociosos para o cultivo de alimentos, permitindo que os próprios detentos participem da produção, reduzindo custos e garantindo maior qualidade das refeições.
Outro ponto inovador do projeto é a alteração na Lei de Licitações, que determina que as refeições, fornecidas nos presídios, sejam preparadas a no máximo 8 km do local de consumo e ingeridas em até três horas após o preparo. Essa medida visa impedir que alimentos estraguem antes de serem consumidos, uma prática recorrente nas unidades prisionais. Além disso, o PL exige coleta de amostras da alimentação para fiscalização, garantindo maior controle sobre a qualidade dos alimentos servidos.
Por sua vez, a Resolução nº 3/2017 do Ministério da Justiça e Cidadania, por meio do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, e a Resolução nº 14/1994 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) orientam que a alimentação prisional deve seguir parâmetros nutricionais mínimos e respeitar a dignidade da pessoa presa, no entanto essas recomendações são ignoradas sistematicamente.
A justificativa para essa precarização vai além da escassez de recursos e se insere em um discurso populista punitivista que reforça a ideia de que o sofrimento extremo do preso faz parte da pena. Como reforça o professor Minagé[2]:
“(…) Humilhar, encarcerar para fazer mal, punir por punir, eis o prazer na busca pela falsa sensação de segurança”. Dessa forma, a narrativa dominante trata qualquer tentativa de humanização do cárcere como impunidade, ignorando que a pena de prisão não pode se converter em um meio de tortura institucionalizada…”
Diante desse cenário, é necessário ir além da simples aprovação da Minuta de lei4317/24 e adotar medidas concretas que evitem a continuidade desse ciclo de barbárie. A superlotação carcerária, uma das principais causas da precarização dos presídios, pode ser combatida com a própria ampliação do uso de medidas cautelares diversas da prisão, previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal (CPP).
O encarceramento em massa tem sido aplicado como regra, enquanto alternativas como monitoramento eletrônico, prisão domiciliar para grupos vulneráveis, restrições de circulação e comparecimento obrigatório ao juízo permanecem subutilizadas. Expandir o uso dessas medidas não representa impunidade, mas sim uma política criminal mais racional e condizente com o princípio da dignidade humana.
Além disso, é indispensável fortalecer mecanismos de fiscalização sobre os contratos de alimentação prisional, combatendo os esquemas de corrupção que desviam recursos enquanto os presos passam fome. O Ministério Público e os Tribunais de Contas precisam intensificar investigações sobre as licitações, garantindo punições rigorosas para empresas envolvidas em fraudes e superfaturamentos.
Fato é: O Projeto de Lei 4317/24 representa um avanço significativo na tentativa de humanizar o sistema prisional brasileiro, especialmente ao tratar a alimentação como um direito e não como uma extensão da pena. Em um país cuja realidade carcerária se caracteriza por violações sistemáticas de direitos humanos — onde a fome e a negligência são naturalizadas —, a proposta legislativa surge como um contraponto civilizatório.
Ao estabelecer diretrizes claras para a qualidade, frequência e fiscalização da alimentação prisional, o PL não apenas busca garantir a saúde e a dignidade dos detentos, como também enfrenta o desvio de verbas e o desleixo institucional que assolam o setor.
Contudo, a resistência enfrentada por esse tipo de iniciativa revela uma face sombria da política penal brasileira: a prevalência de um discurso punitivista que recusa a legalidade como parâmetro mínimo de atuação estatal.
Alimentar adequadamente um preso ainda é visto, por parte da sociedade e de setores políticos, como um gesto de condescendência ou benevolência, e não como o cumprimento de uma obrigação legal e constitucional.
Esse animus de distorcer moralmente, enraizado no desejo de punição e vingança social, é um obstáculo não apenas à efetivação da justiça, mas também à construção de um sistema penal verdadeiramente comprometido com a ressocialização e com os direitos humanos. A persistência em negligenciar a alimentação nas prisões — sob a justificativa de que “bandido não merece regalia” — escancara a seletividade do sistema e o tratamento desumano reservado às populações mais vulneráveis, como bem observa o professor Minagé.
Portanto, mais do que aprovar um novo dispositivo legal, é imprescindível um esforço coletivo para desconstruir a narrativa que transforma o cárcere em instrumento de crueldade estatal. A efetivação da proposta legislativa deve vir acompanhada de políticas públicas estruturantes, fiscalização contínua e, principalmente, de um compromisso ético com a dignidade humana.
Afinal, que tipo de sociedade somos — ou pretendemos ser — se admitimos que a fome seja utilizada como ferramenta de justiça? Até quando confundiremos vingança com responsabilidade, castigo com cidadania e dor com ordem? O PL 4317/24 é mais que uma proposta legislativa: é um clamor civilizatório.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: março de 2025.
BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execução Penal (LEP). Dispõe sobre a execução das penas privativas de liberdade e medidas de segurança. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 jul. 1984. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: março de 2025.
BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 abr. 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: março de 2025.
BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Dispõe sobre as normas gerais de processo penal no Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 out. 1941. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: março de 2025.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº 4317/2024. Define regras para o fornecimento de alimentação em presídios. Brasília, DF, 2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br. Acesso em: março de 2025.
LABORATÓRIO DE GESTÃO DE POLÍTICAS PENAIS (LabGepen). Estudo sobre a alimentação no sistema prisional brasileiro. Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2023. Disponível em: https://www.unb.br/labgepen. Acesso em: março de 2025.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (MPF). Operação sobre fraudes em contratos de alimentação prisional. Relatório técnico, 2023. Disponível em: https://www.mpf.mp.br. Acesso em: março de 2025.
MINAGÉ, Thiago M. Prisões e medidas cautelares à luz da Constituição. 5. ed. São Paulo: Tirant Brasil, 2019. 362 p. (TirantLoBlanch Brasil).
BRASIL. Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Resolução nº 14, de 11 de novembro de 1994. Estabelece as Regras Mínimas para o Tratamento de Presos no Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1994. Disponível em: [documento interno]. Acesso em: 21 mar. 2025.
BRASIL. Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Relatório de Visita de Inspeção em Estabelecimentos Penais do Espírito Santo. Brasília, DF: CNPCP, 2020. Disponível em: [documento interno]. Acesso em: 21 mar. 2025.
BRASIL. Secretaria Nacional de Políticas Penais. Panorama Nacional de Alimentação e Acesso à Água no Sistema Prisional. Brasília, DF: SENAPPEN, 2024. Disponível em: [documento interno]. Acesso em: 21 mar. 2025.
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO; INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA; INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA. Alimentação e Prisões: a pena de fome no sistema prisional brasileiro. São Paulo: DPE-SP, 2022. Disponível em: [documento interno]. Acesso em: 21 mar. 2025.
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Laboratório de Gestão de Políticas Penais – LabGEPEN. Nota Técnica sobre Prestação de Serviço de Nutrição e Alimentação para as pessoas presas em trânsito no Estado de São Paulo. Brasília, DF: UnB, 2018. Disponível em: [documento interno]. Acesso em: 21 mar. 2025.
UOL. Presídio cheio é problema de quem cometeu o crime, diz Bolsonaro. 6 jun. 2018. Disponível em:https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/06/06/presidio-cheio-e-problema-de-quem-cometeu-o-crime-diz-bolsonaro.htm. Acesso em: 23 mar. 2025.
SALIBA, Maurício Gonçalves; SALIBA, Marcelo Gonçalves. Prisão cautelar: o suplício pós-moderno! Argumenta – Revista do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Fundinopi, v. 8, p. 179-190, 2008. Disponível em: https://seer.fundinopi.edu.br/index.php/argumenta/article/view/9. Acesso em: Acesso em: 22 abr. 2025.
[1][1] MINAGÉ, Thiago M. Prisões e medidas cautelares à luz da Constituição. 5. ed. São Paulo: Tirant Brasil, 2019. 362 p. (Tirant Lo Blanch Brasil).
[2] MINAGÉ, Thiago M. Prisões e medidas cautelares à luz da Constituição. 5. ed. São Paulo: Tirant Brasil, 2019. 362 p. (Tirant Lo Blanch Brasil).