“Hoje em dia, as arbitrariedades do Estado vêm travestidas de legalidade”
Por Giselle Souza
Se a arbitrariedade era evidente no regime militar, hoje se encontra acobertada por um arcabouço que lhe dá ares de legalidade. É o que afirmam os advogadosFernando Tristão Fernandes e Fernando Augusto Fernandes — pai e filho — sobre a postura adotada nos últimos tempos no Brasil pelos órgãos de investigação, sobretudo na condução da operação “lava jato”, que apura a corrupção na Petrobras.
Em entrevista à ConJur, eles analisam o atual momento com propriedade. Os dois comandam o Tristão Fernandes Advogados, tradicional banca de advocacia, com 55 anos de existência.
Defensor de presos políticos, Fernando Tristão Fernandes acabou se tornando uma das vítimas da ditadura. Ele lembra que advogar naquela época era muito difícil. “Os juízes ficavam muito temerosos. A ditadura não respeitava ninguém”, conta.
Apesar da redemocratização, o cenário para a advocacia criminal parece não ter melhorado muito, analisa seu filho, Fernando Fernandes, criminalista que atua na “lava jato”. Ele classifica o momento atual como absolutamente hostil para os advogados criminalistas.
“Hoje há uma tendência, primeiro, da desqualificação do profissional advogado para, em seguida, como se legal fosse, atacar a pessoa do advogado. Os advogados estão hoje sofrendo ofensas às suas prerrogativas profissionais”, afirma.
É com conhecimento de causa que Fernandes compara o momento atual com o de exceção. Motivado pela história do pai, ele dedicou sua tese de mestrado aos advogados de presos políticos.
Na pesquisa, acabou descobrindo áudios inéditos de Heráclito Fontoura Sobral Pinto, um dos maiores juristas do Brasil, que estavam sendo mantidos sob sigilo pelo Superior Tribunal Militar. O conteúdo veio a públicono documentário Sobral — O homem que não tinha preço.
Fernandes, de forma quase clandestina, conseguiu copiar parte desses arquivos. Logo depois disso, o Superior Tribunal Militar baixou um decreto lacrando os documentos por cem anos. O advogado foi ameaçado de prisão. Tentaram, inclusive, recolher todas as fitas, mas ele conseguiu salvar algumas, que guarda como relíquias.
Leia na entrevista:
ConJur — O escritório tem 55 anos. Qual é a receita para se manter tanto tempo?
F. Tristão Fernandes — Manter-se atualizado, com uma biblioteca que cubra toda a jurisdição legal e fazer com que os clientes confiem no profissional.
F. Augusto Fernandes — Acho também que o segredo para ter um escritório com 55 anos é a persistência e a dedicação constante ao Direito e às garantias individuais. O Tristão foi advogado de preso político. Depois, ele próprio acabou sendo um preso político e foi confinado em Mato Grosso do Sul. Então, ele fez toda uma trajetória defendendo o indivíduo contra as arbitrariedades do Estado. Teve coragem durante o regime militar de 1964 e assim persistiu no Estado Democrático de Direito, que hoje se encontra abalado.
ConJur — Como era advogar nos anos de chumbo?
F. Tristão Fernandes — Difícil. Os juízes ficavam muito temerosos. A ditadura militar não respeitava ninguém.
ConJur — Quais são as diferenças entre a advocacia daquela época e a de hoje?
F. Tristão Fernandes — O arcabouço da força, naquela época, criou nos advogados muita timidez. Poucos eram capazes de enfrentar a autoridade, dizer que ela estava desrespeitando direitos. Hoje o Poder Judiciário está mais forte e é mais respeitado.
F. Augusto Fernandes — A diferença é que a arbitrariedade era evidente durante o regime militar. Hoje, está travestida de legalidade. Era simples cometer ilegalidades em um regime de exceção. Hoje a ilegalidade está acobertada de um arcabouço para parecer legal.
ConJur — Nesses tempos de “lava jato”, a advocacia vem sendo muito criticada por atacar as nulidades e não o mérito das denúncias. Como o senhor avalia isso?
F. Augusto Fernandes — Essa observação visa a encobrir inúmeras nulidades e arbitrariedades cometidas nas operações, como se os fins justificassem os meios. O advogado deve enfrentar o mérito, mas deve estar preparado para atacar as arbitrariedades cometidas nos procedimentos. Apontar as ilegalidades, a exemplo de incompetência territorial da operação “lava jato”, não é ter receio do mérito. Ao contrário: o que está se demonstrando é que o Ministério Público quer enfrentar méritos de qualquer jeito, mesmo cometendo abusos.
ConJur — É o caso das provas que o Tribunal Penal da Suíça declarou serem ilegais?
F. Augusto Fernandes — Não devo falar categoricamente sobre elementos que não estão sobre a nossa responsabilidade. Mas o que há, nesse caso concreto, é uma rejeição constante do juiz Sergio Moro contra toda ilegalidade apontada. Não há nenhuma decisão dele que acate qualquer tipo de ilegalidade. Portanto, pela forma dele conduzir os processos, não existe prova ilícita, nem erros procedimentais, nem violação à Constituição. Ele passa por cima de absolutamente todo o devido processo legal para atingir um objetivo. Uma pergunta central que envolve tudo isso é, inclusive, sobre a própria incompetência. O Supremo Tribunal Federal adotou uma jurisprudência minimalista, inclusive quanto a sua própria competência, por isso declinou [com o desmembramento da “lava jato”] para outras instâncias, como São Paulo e Rio de Janeiro. Já o juiz Sergio Moro, eu diria, adotou uma jurisprudência totalitária, no qual ele entende que é competente para absolutamente tudo. Nesse contexto, atacar a incompetência dele é colocado como um discurso de quem não quer enfrentar o mérito nem o processo, quando na verdade o que se deseja é que se tenha um processo justo, com um juiz competente, provas lícitas e o devido processo legal.
ConJur — A 13ª Vara Federal de Curitiba deveria limitar sua competência?
F. Augusto Fernandes — O Supremo Tribunal Federal tem limitado a sua própria competência por meio do que denominou de jurisprudência minimalista. Então, se o Supremo Tribunal Federal, que é a maior corte do país, vê limites no seu próprio poder, não é possível que um juiz de primeira instância não se autolimite. Essa jurisprudência em que o juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba estende o seu poder por uma conexão inexistente adaeternum, ao contrário do próprio Supremo, só pode ser intitulado como uma jurisprudência totalitarista.
ConJur — Mas o STF tem feito o controle.
F. Augusto Fernandes — Sim. Na decisão, em que desmembrou o processo da “lava jato”. Ocorre que a gigantesca burocracia em que se encontra o Judiciário, até chegar ao Supremo Tribunal Federal; assim como o gigantesco número de processos que há no Superior Tribunal de Justiça, que faz como que um habeas corpus demore de três a quatro anos para ser julgado, faz com que o juiz de primeira instância aproveite para avançar no poder.
ConJur — Na sua avaliação, o Judiciário brasileiro tende a ser pró Ministério Público nas operações que apuram casos de corrupção?
F. Augusto Fernandes — Ninguém no Brasil é a favor da corrupção. Nenhum advogado e empresário é a favor da corrupção. Mas a pior de todas as corrupções é a corrupção à Constituição. A falta de amadurecimento em relação ao devido processo legal e à presunção de inocência é o que está fazendo este abuso permanecer por tão longo tempo. Não há dúvida de que mesmo com toda a pressão na imprensa, haverá de se colocar rumo constitucional a essas operações da Polícia Federal. E com respeito ao devido processo legal, ao juiz natural e à prova lícita, haverá de se condenar quem praticou corrupção ativa ou passiva. Mas o abuso de direito, prisões sem razões para se obter delações premiadas e torturas procedimentais só vai ocasionar, em determinado momento, uma decisão serena do Supremo Tribunal Federal anulando esses procedimentos.
ConJur — Qual é sua opinião sobre manifestações dos advogados contra os rumos da “lava jato”?
F. Augusto Fernandes — É preciso ter coragem de nadar contra a corrente. A democracia nem sempre é seguir a opinião majoritária, mas é manter o respeito aos princípios fundamentais da instauração do nosso regime democrático, que é o fundamento da Constituição de 1988. Portanto, a manifestação dos advogados, que encontrou na opinião pública uma reação, é uma forma de chamar a atenção para os rumos que o Direito Constitucional deve seguir. Estão com razão os advogados. A advocacia é uma profissão muito difícil e às vezes solitária, porque defender um acusado notório é falar contra a opinião pública. Mas as maiores conquistas da humanidade estão em respeitar o indivíduo. A população, em geral, se comporta como se estivesse no Coliseu. Cabe ao advogado chamar a atenção para o respeito individual. E isso é muito difícil, traz consequências, por isso é preciso coragem acima de tudo.
ConJur — O senhor não acha que a manifestação não deveria vir da OAB?
F. Augusto Fernandes — A Ordem representa uma totalidade dos advogados do Brasil e por isso nem sempre consegue exercer o papel de fiscal em relação a essas garantias individuais, que são tratadas por uma minoria profissional que trabalha perante as cortes criminais. Não foi assim, por exemplo, no regime militar de 1964. A ideia de que a Ordem dos Advogados exerceu no regime um papel de resistência não é inteiramente verdade. A Ordem era presidida pela direita e só passou a exercer um papel fundamental com Raymundo [Faoro], já quase no fim do regime. Quem exerceu o papel de resistência durante a ditadura foram os advogados dos presos políticos, que eram minoria. Portanto, é de se exigir da OAB uma posição à manifestação dos advogados, dessa minoria que atua com o Direito Penal.
ConJur — Mas dá para comparar o exercício da advocacia durante o regime de exceção ao de agora, com a operações como a “lava jato”, que apuram casos de corrupção?
F. Augusto Fernandes — Hoje a atuação é pior. Na época do regime militar, havia a possibilidade de um enfrentamento físico com os advogados, com a repressão ou até um sequestro. Hoje há uma tendência, primeiro da desqualificação do profissional advogado, para, em seguida, como se legal fosse, atacar a pessoa do advogado. Os advogados estão hoje sofrendo ofensas às suas prerrogativas profissionais e riscos de invasões aos seus escritórios e indiciamentos com essa tentativa de se acusar criminalmente advogados pela atuação profissional. O ambiente é absolutamente hostil.
ConJur — Na sua opinião, tem havido realmente vazamento seletivo de informações para a imprensa?
F. Augusto Fernandes — A imprensa é um dos mais importantes órgãos de democracia do país, mas é impressionante a diferença de qualidade entre a imprensa internacional e a brasileira. A pauta brasileira se faz hoje com uma pauta criminal e sem dar espaço a opiniões contrárias. É preciso que a imprensa brasileira amadureça, que o seu papel não possa se mediocrizar a um folhetim criminal, mas sim possa debater mais profundamente os fundamentos da democracia brasileira. Sabe-se que a liberdade de imprensa é um mito, porque de fato as empresas jornalísticas também têm seus interesses. Sem falar do jornal “a”, “b” ou “c”, o fato é que as empresas jornalísticas têm seus interesses e noticiam de forma a respeitar esses interesses. Não é possível fazer um ataque generalizado à imprensa, mas é necessário entender que a imprensa também se direciona pelos seus próprios interesses.
ConJur — O senhor acha que falta uma articulação entre os advogados da “lava jato”?
F. Augusto Fernandes — Acho que ninguém nunca foi coordenador central de nenhuma defesa. Em casos com centenas de acusados é impossível haver coordenação central porque existem interesses, inclusive conflitivos, entre os patrocinados. A centralidade vem do mundo acadêmico, mas no caso concreto é impossível haver uma coordenação central. A centralidade pode haver nos debates acadêmicos sobre estes casos, porque na academia pode haver congruência de alguma maneira; mas na atuação profissional, em que há centenas de pessoas, há interesses colidentes entre os patrocinados.
ConJur — Na sua opinião, o que a advocacia criminal pode aprender com a “lava jato”?
Fernando Augusto Fernandes — A lição que fica é o quanto é importante a advocacia criminal, porque, de fato, é a única que está preocupada com o ser humano, com a relação do indivíduo fragilizado e acusado com o poder máximo do Estado, que tem o poder de encarceramento. Não conseguimos ainda ter um país democrático. E para mudar o país culturalmente é preciso ter respeito ao indivíduo. A partir deste amadurecimento se consegue acabar com a arbitrariedade e a corrupção e se chegar a níveis culturais como de determinados países, a exemplo a Holanda. Se fôssemos fazer uma comparação entre os diversos países para dizer para onde o Brasil deveria seguir, não diria os Estados Unidos, que é o país que mais prende na história da humanidade, mas sim para alguns países Europa, onde as cadeias estão vazias. A Holanda, por exemplo, aluga lugares nas suas cadeias para os países vizinhos. Portanto, não é o Direito Penal que vai solucionar o problema da corrupção no Brasil, mas sim o desenvolvimento cultural cravado no respeito ao indivíduo e no qual a autoridade respeite o indivíduo. A Constituição e o devido processo legal são as garantias do indivíduo frente à arbitrariedade do Estado.
ConJur — É possível mudar a visão de alguns de que o discurso do direito de defesa, por vezes, é utilizado para perpetrar a impunidade?
F. Augusto Fernandes — Acredito serem poucos os países que têm amadurecimento para entender que o devido processo legal visa a garantia do indivíduo. O advogado tem a esperança de que chegaremos ao momento que isso será compreendido, mas enquanto não chegamos lá, caberá ao Supremo Tribunal Federal, nosso guardião maior da Constituição, mesmo contra a maior parte da população e da imprensa, ter o amadurecimento de entender que a Constituição está a frente do momento histórico que o Brasil está vivendo. A Constituição de 1988 é para onde nós devemos ir. Não devemos nos afastar desses princípios.
Fonte: www.conjur.com.br