Fim da presunção da inocência, flagrantes online… e a Constituição?
Por Lenio Luiz Streck
Os assuntos se entrecruzam. Julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43 e 44 e os flagrantes online de São Paulo, descumprimentos do Código de Processo Civil e centenas de etcéteras. Quero dizer que estamos em um limiar ou em uma encruzilhada. Estamos, mesmo, apostando que os fins justificam os meios? Peço que me acompanhem.
Em seminário na Itália há uns 8 anos atrás, fui interrompido durante a exposição por uma professora de pendores relativistas, dizendo: “— Você diz que existem verdades e que uma interpretação deve poder ser avaliada como melhor do que outra e que podem existir repostas corretas em direito, que você chama ‘adequadas a Constituição’. Muito bem. Mas, veja, professor Lenio: Nós dois olhamos para um, digamos, um barco. Cada um de nós vê um barco diferente do outro. Até, provavelmente bem diferentes. Então, como explica isso em relação ao que você prega? Respondi-lhe, candidamente: “— Bingo, caríssima professora. Perfeito. Começamos muito bem. Ambos vemos… um barco. Não é um avião”.
Quando as coisas já tem nome, temos um compromisso com esses nomes. Não que fiquemos escravos desses nomes; mas também não podemos ficar trocando as nominações. Na Macondo de Gabriel Garcia Marques (Cem Anos de Solidão), repete-se a tese do logos, enfim, do logos superando o mito, da nomeação, da justeza dos nomes (Crátilo, de Platão) e todas as relações entre palavras e coisas e que nos angustiam desde a aurora da civilização. Na Macondo (como acontece com os filhos de Fabiano em Vidas Secas, de Graciliano), as coisas ainda eram tão novas, tão recentes, que, para dirigirmo-nos a elas, ainda tínhamos que apontar com o dedo… porque elas ainda não tinham nome.
Mas o Brasil não é Macondo. Por aqui a presunção da inocência já tem nome. Ela não é tão nova. Já não precisamos apontar com o dedo. E o artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP) funciona como uma coisa quase medieval: ele é o espelho do artigo 5º, LVI. Quais dúvidas temos?
Vou repetir a argumentação da Ordem das Advogados do Brasil — que subscrevi honrosamente — é constitucionalmente direta: está-se diante de uma constitucionalidade espelhada (aqui), o que pode ser visto pela simples comparação dos dois dispositivos. Vejamos:
Constituição da República | Código de Processo Penal |
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Artigo 5º LVII — Ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. LXI — Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei. |
Artigo 283 Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgadoou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. |
Em linha similar, com variações, está a ADC 43, do PEN (ler aqui).
Alguns setores da imprensa e do próprio Judiciário e do Ministério Público vem esgrimindo argumentos de que o Brasil é atrasado e que só por aqui é que se tem esse tipo de recurso. “— Isso gera impunidade”, bradam alguns setores. Até mesmo ministros da Suprema Corte dizem algo parecido. Só que esses argumentos não são jurídicos; são morais e políticos. Mesmo que, por exemplo, em outros países isso não fosse assim, ainda assim perguntar-se-ia: e daí? Querem trazer o sistema jurídico norte-americano para cá? Ótimo. Façamos júri de quase tudo. Ah: quero ver essa transplantação. Vamos eleger juízes? Promotores? Lá tem uma norma interessante: aquela que faz com que quem vaza informações perde o cargo. É ruim, não é?
Dirão outros: mas na Alemanha o sujeito não pode recorrer à vontade. Ora, isso é uma falácia. No Brasil também não se pode recorrer à vontade. Existem requisitos de admissibilidade. E a Constituição Federal e a lei permitem a liberdade até o trânsito em julgado (cujo nome não pode ser trocado só porque se quer).
Diz-se que em outros países (por exemplo, Alemanha e Portugal), depois do segundo grau o condenado deve cumprir a pena. Será mesmo assim? Na Alemanha, na Itália e em Portugal, o recurso do condenado só não tem efeito suspensivo da pena no apelo que vai para o Tribunal Constitucional.[1] Mas, para o equivalente, mutatis mutandis, ao nosso Superior Tribunal de Justiça, o efeito suspensivo existe, sim.
De todo modo, se por aqui quisermos copiar a Alemanha, então no mínimo o Supremo Tribunal terá que dizer que até o STJ o réu pode apelar com efeito suspensivo. No mínimo. Se o Supremo Tribunal assim decidir, pode ser um avanço, mormente se levarmos em conta o estado da arte da discussão e a complexidade das consequências para a liberdade. Mas, de qualquer modo, teria que fazer uma mutilação no e do artigo 283. Mas, melhor isso do que cortar no coração da Constituição Federal.
Portanto, não se diga que a legislação comparada (ou o direito estrangeiro — que, informe-se, ainda não vale por aqui) proíbe liberdade depois da condenação em segundo grau. E não usemos de argumentos tipo morais e políticos como “impunidade”, “isso é bom”, “isso é ruim”, “isso é atrasado”, “isso beneficia os ricos” — este último argumento já se demonstrou que é falso.
O que quero dizer é que os juristas — e especialmente o STF — tem de entender que a grande batalha do século XIX para cá é “o que fazer com a moral (principalmente com ela). Ela é tentadora. No caso da presunção da inocência, são nitidamente argumentos morais que querem corrigir o direito posto. A conquista do Constitucionalismo Contemporâneo foi o de que o direito deve estar protegido contra paixões e desejos eventuais. Por isso a Constituição é um remédio contra maiorias. Ulisses salvou a sua vida ao determinar que os seus grumetes lhe amarrassem ao mastro. Porque ele não resistiria ao canto das sereias. Elas são terríveis. Elas não gostam do direito. As maiorias gostam dos inimigos do direito: a moral, a politica e a economia. E o direito deve se blindar contra eles. Eis o busílis.
O Supremo Tribunal no julgamento das ADCs 43 e 44 está nessa encruzilhada. Quem vencerá? A moral vencerá o direito? Se sim, quem, na sequência, segurará a moral? Lembremos que o direito se abebera da moral… antes. Depois de estabelecermos a lei, a democracia não convive bem com correções desse jaez.
A propósito, para quem gosta de argumentos pragmáticos, vamos a alguns deles, só que diferentes do que o establishment jurídico-midiático em divulgando:
a) Em um país em que todos os tribunais estaduais — de onde vem a maior parte da clientela de recursos ao STJ e STF — ainda invertem, em crimes como furto e tráfico de entorpecentes, o ônus da prova;
b) Em um país em que há poucos dias a ministra Cármen Lúcia teve que dar uma cautelar em habeas corpus para resolver o problema de uma condenação em ação penal de Minas Gerais em que um patuleu fora condenado por estar portando um cordão no pescoço contendo um projétil;
c) Em um país em que uma desembargadora do Tribunal de Justiça de Santa Catarina disse que jamais concedeu liminar em habeas corpus;
d) Em um país em que existem órgãos fracionários conhecidos como câmaras de gás…;
e) Em um país em que, como nos contam Thais Lima e Rafael Muneratti, nos habeas corpus com liminares indeferidas, que respondem por cerca de 80% do total (5.187), o tempo para um julgamento favorável de mérito — no STJ — pode levar em média 219 dias, ou seja, mais de 7 meses (para quem pensa que isso é coisa de réu rico, de notar que em 2015 a Defensoria Pública de SP obteve êxito, total ou parcial, em cerca de 48% dos habeas corpus impetrados no STJ, o que correspondeu a 3.181 processos);
f) Em um país em que a polícia, por falta de delegados, começa a fazer flagrantes online (no século XIII, exigia-se em HC que o corpo fosse trazido à presença…!);
g) Em um país em que, em São Paulo, um patuleu ingressou com habeas e saiu preso de ofício…;
h) Em um país em que o Ministério Público — que deveria ser o guardião contra o uso da prova ilícita — quer relativizar o seu uso, quando obtida “de boa fé”.
Em um país como o nosso — e, como não quero chegar à letra “z” — interrompo e pergunto: queremos negar que o condenado em segundo grau não tenha direito a efeito suspensivo em seu recurso? Que preço estamos dispostos a pagar? Eis o busílis.
Numa palavra final: Um barco tem características próprias. Ele não tem asas, não tem as turbinas que tem o avião e ele anda na água. Mesmo a mais radical imputação nos impede de dizer que um barco é um avião. Por isso, a questão é: que nome o STF dará à presunção da inocência?
O que está ocorrendo é que parcela da comunidade jurídica e do próprio STF vêm olhando para o barco e dizendo… que é um avião.
Fonte: www.conjur.com.br