A crise do direito e a resistência dos criminalistas: esses velhos ultrapassados – Por Jader Marques
Por Jader Marques – 26/09/2016
Ninguém, em sã consciência, quer ficar velho.
Tenho mania de dizer que ninguém tem, verdadeiramente, noção da idade cronológica, aquela que está lá na certidão de nascimento, a idade dos ossos. O sujeito sempre pensa que ainda aguenta, que ainda pode, que não vai sentir dores ou ressaca no dia seguinte. A Marta Echenique (minha terapeuta favorita) gosta de dizer que uma pessoa para ser velha, deve ter vinte anos a mais do que a gente, ou seja, se eu tenho quarenta, uma pessoa com sessenta é idosa; mas se eu tenho sessenta, será idosa uma pessoa acima dos oitenta e assim vai.
Ninguém quer ficar ultrapassado.
Todos querem estar por dentro das novas tendências, do último grito, seguindo aquilo que dizem as pessoas encarregadas de dizer o que deve ser seguido (na, verdade, confesso que eu nunca soube quem são esses seres e não sei se existem), mas, enfim, todos querem estar fazendo o que todos estão fazendo, usando o que todos estão usando, adquirindo o que todos estão adquirindo. É óbvio que isso tem relação com consumismo, mas não apenas no sentido da compra de coisas e sim como modo-de-ser-no-mundo (Bauman, Dufour, etc). Ficar de fora das tendências do mundo globalizado (essa palavra é da moda), significa ser ultrapassado, o que pode ser um indício de que você está ficando velho. E você não quer ficar velho. Então, o que você pode fazer? Adaptar-se. Ou você se adapta aos novos tempos ou você fica velho e ultrapassado. E você sabe o que acontece com os velhos ultrapassados: eles são esquecidos e ultrajados pelo pessoal das novas tendências.
Quem se lembra de grandes feitos e grandes personalidades do passado são os saudosistas (e os professores de história).
Acontece que a segunda característica do velho ultrapassado é o saudosismo. Os velhos são, inegavelmente, saudosistas. No meu tempo é que era bom. Eu sou de um tempo em que tudo era melhor. Não há sinal mais evidente de velhice do que uma frase deste tipo, relembrando de duas ou três décadas, quando as coisas eram bem diferentes, geralmente, melhores, mais organizadas, mais justas, mais adequadas. Os velhos de cada geração, geralmente, entendem que viveram sua juventude num mundo muito melhor e, por isso, agora, assistem, aterrorizados, o modo como vivem os jovens do tempo presente, o que conduz a uma certeza absoluta: se continuar assim, isso não vai dar boa coisa, não vai acabar bem.
Caso você não se tenha adaptado às novas tendências, poderá ser considerado velho, ultrapassado, saudosista e alarmista.
O que isso tem a ver com a morte do direito?
Pois bem. Fiz essa preliminar como introdução ao tema dos contornos atuais da crise do direito no país, notadamente diante das quebras de paradigmas provocadas pela Lava-jato e seus efeitos no âmbito do direito constitucional e processual penal, querendo destacar o verdadeiro levante da advocacia criminal[1], com o apoio de alguns pouquíssimos juízes, contra aquilo que Lenio Streck está descrevendo como a “vitória da moral sobre o direito”. A “moral predou o direito” e as quebras paradigmáticas provocadas no âmbito dos processos ligados à operação Lava-Jato representam a desconstrução daquilo que a história institucional do direito levou mais de dois séculos para erguer, com muito suor, sangue e lágrimas.
O mais incrível disso tudo, é que os advogados criminalistas do país inteiro estão unidos em busca do retorno ao processo penal de 1941, aquele inspirado no Código fascista de Rocco, mas que foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Sim, como velhos, ultrapassados e saudosistas, os criminalistas consideram bons, aqueles tempos em que não havia prêmio para a delação, em que não havia prisão para delação, em que os suspeitos não eram conduzidos coercitivamente para prestarem depoimento, em que a prisão antes da sentença não era a regra, em que as decisões não estavam prontas antes das alegações. Bons tempos. Velhos tempos.
Num nível um pouco mais profundo, mas ainda na superfície, podemos dizer que os penalistas sempre discutiram a questão da vagueza na construção dos tipos penais e das disposições relativas ao processo penal. Sempre houve uma espécie de obsessão do penalista pela diminuição/eliminação dos espaços de interpretação.[2]
A dogmática dos manuais de direito penal reproduz aquilo que está plantado no senso comum teórico dos juristas a respeito desta aposta na necessidade de precisão e clareza das palavras.[3]Sem perceber a abertura interpretativa decorrente da porosidade dos dispositivos legais, enquanto regra, a discussão sempre ficou centrada, quase que exclusivamente, na questão da vagueza e ambiguidade, como se tudo estivesse ligado à qualidade da redação do preceito legal, como se a escolha da melhor redação das leis fosse capaz de afastar a necessidade de interpretação. Isso quer dizer que, mesmo diante da evidência de que a melhor construção legislativa não resolve o problema da interpretação, não segura todas as hipóteses de aplicação, não elimina a necessidade de controle da decisão, a maioria dos penalistas sempre apostou as suas fichas na busca incansável da melhor semântica típica.[4]
A visão tradicional da teoria do direito, na maioria das vezes, ignora que o direito é um fenômeno interpretativo ou, quando aceita esta situação, entende que o intérprete decide fazendo uma escolha. Até agora, pois, a luta era pela superação do vetusto positivismo exegético (no qual não há necessidade/possibilidade de interpretação) e do positivismo normativo (no qual o juiz é chamado a resolver subjetivamente os “casos difíceis”), buscando, a partir da hermenêutica e do constitucionalismo contemporâneo, a construção de uma teoria da decisão que atuasse sobre a discricionariedade interpretativa.
Lenio Streck está certo: a moral predou o direito e ele está agonizando.
Atualmente, vivemos um novo período (catastrófico) da crise do direito, no qual os intérpretes perderam o último resto de comprometimento, que era o respeito aos limites semânticos do texto (legal). Até aqui, o decisionismo sempre foi uma luta travada no âmbito das discussões sobre o positivismo (exegético ou normativo). Os tempos mudaram e ser positivista, nos dias de hoje, é totalmente velho e ultrapassado. Está absolutamente fora das atuais tendências ditadas pela “terceira onda”: a moral matou o direito e não há mais textos legais. Sintaxe e semânticas são quimeras, coisas do passado. O direito perdeu para a moral e, assim, a Lava-jato não precisa seguir o disposto na Constituição e no Código de Processo Penal, desde que siga cumprindo com sua função moralizadora da sociedade.
A advocacia criminal, formada por “ultrapassados positivistas”[5], pede que as palavras da lei sejam respeitadas, que a expressão depois do trânsito em julgado, não seja desconsiderada, que a ampla defesa e contraditório não sejam tidos como obstáculos à justiça e causas de impunidade, que a prisão não seja transformada em instrumento de tortura para obter delação, enfim, que a lei seja respeitada (sintaxe e semântica).
Se retrocedermos ao momento em que ser positivista era o problema, teremos retomado, ainda dentro da crise, o caminho de uma discussão complexa, mas no seio da qual o direito é vivo e tem importância. A crise atual mostra um caminho extremamente perigoso, em que a falta de fundamentação das decisões não é mais o problema central, pois, com a vitória da moral sobre o direito, o juiz torna-se o salvador e sua palavra basta, pois ela é a própria norma.
Fora do direito, resta-nos o discurso dos moralistas em homenagem ao novo messias e sua horda de seguidores. Resta saber quem nos protegerá da bondade dos bons.
Oremos.
Mais não digo.
Notas e Referências:
[1] Por incrível que pareça, há imbecis que sustentam, do alto da sua ignorância, que os criminalistas estão indignados com a República de Curitiba, porque perdem dinheiro com a atuação de juízes mais severos. Ora, o punitivismo é o paraíso da advocacia criminal. O endurecimento da legislação penal é o que movimenta as bancas de advogados, sendo uma estupidez falar que os criminalistas estão fazendo a defesa de questões financeiras, quando lutam pela observância da Constituição. Quanto mais prisões, mais ilegalidades e mais arbitrariedades, maiores serão os honorários. Portanto, os advogados lutam por uma sociedade mais justa e por algo melhor que o direito penal. Não há ganância nesse debate.
[2] Mesmo o setor da dogmática que superou o exegetismo mostrou-se impermeável aos efeitos do giro linguístico e à superação da metafísica da tradição, o que provoca ainda hoje a crença na metódica moderna da subsunção de algo a algo, tomada a linguagem como terceira coisa e não como condição de possibilidade. Por todos: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 67.
[3] Luiz Alberto Warat, ao falar do positivismo de Augusto Comte, destaca a sua importância para a compreensão do pensamento contemporâneo e para um melhor entendimento de alguns discursos elaborados, especialmente nas faculdades de direito, mas com ampla aplicação a todas as áreas do direito. A visão cientificista do Direito está ligada ao legado positivista de sua filosofia, já que a tradição positivista considera a ciência como o único tipo de conhecimento válido, que só admite os chamados conhecimentos objetivos, num conceito de racionalidade dominante na modernidade. Sendo essa uma racionalidade cientifica, normalmente orientada para a realização de fins; racionalidade tomada como “cálculo”, “calculabilidade”, sendo que os princípios de organização do conhecimento permitem calcular os fins a serem atingidos através de uma causalidade própria dos meios. WARAT, Luiz Alberto. Epistemologia e Ensino do Direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2004. p. 496.
[4] É óbvio que se deve exigir uma redação adequada dos textos legais, situação bastante prejudicada no atual contexto de expansão do estado penal, no qual se acredita que as casas legislativas possam tudo em matéria de edição de novas incriminações. Sem dúvida, é evidente a necessidade de uma adequada redação da lei. Entretanto, deve-se ter claro que esta questão não constitui, por certo, um problema hermenêutico.
[5] Antônio Carlos de Almeida Castro, Claudio Lamachia, Lenio Streck, Juliano Breda, André Karam Trindade, Rafael Munerati, Thais dos Santos Lima, Thiago Bottino, Leonardo Sica, Fábio Tofic Simantob, José Horácio Ribeiro, Elias Mattar Assad, Vanessa Palomanes e Técio Lins e Silva, advogados que atuam nos autos das ADCs 43 e 44, estes em nome da advocacia criminal de todo o País.
Jader Marques – Presidente da ABRACRIM-RS
Fonte: http://emporiododireito.com.br/