Limitar violência penal é única resposta possível à sanha punitiva
Por Leonardo Marcondes Machado
“Isso é tudo que você pode fazer por mim?”. Essas foram as palavras de uma “vítima” de injúria depois de cientificada a respeito de todo o procedimento burocrático — investigatório e processual — que deveria ser adotado na espécie em conformidade com as previsões legais. A possibilidade de um termo circunstanciado para a apuração prévia dos fatos e o oferecimento de queixa crime para análise da responsabilidade penal do sujeito que a teria ofendido verbalmente em uma discussão no trânsito não eram suficientes para ela. Esperava muito mais do sistema penal.
Aliás, assim como essa senhora, que nenhuma formação jurídica possuía, outras tantas pessoas estão a esperar respostas idealizadas do aparato criminal. Algumas por ingenuidade, outras por cinismo. Fato bastante comum inclusive na seara do direito. Há quem ainda sustente a finalidade preventiva ou o poder ressocializante da pena. Mesmo com todos os dados empíricos — inclusive de reincidência — que apontam na direção contrária.
Em que pese a retumbante história de fracasso do binômio crime/punição como instância democrática de efetivo controle social sob o viés ético-humanitário, a fé do senso comum (midiático) nas estratégias de criminalização parece inabalável. E, pior, o sistema brasileiro encontra-se em franca expansão punitiva. As reformas – mesmo aquelas batizadas de “alternativas ao encarceramento” – apenas produziram um incremento do controle penal. A Lei 12.403/2011 pode servir de exemplo. Ao invés de diminuir o número de presos provisórios, promoveu considerável aumento da restrição penal. Serviu como alternativa limitadora da liberdade, e não do cárcere.
Um dado extremamente curioso nessa lógica de hipercriminalização é o reforço de sua ineficácia quanto às finalidades declaradas ou oficiais. Nenhum sistema mostrou-se eficazmente igualitário no sentido da apuração de todos os crimes praticados por todas as pessoas. Nunca houve uma “repressão homogênea das condutas criminalizadas”;[1] o modelo sempre foi seletivo. Por óbvio, o aumento do aparato penal não produziria efeito diverso.
O resultado disso tudo é bastante conhecido: a maior punição da criminalidade visível, ou seja, de fatos insignificantes (contravenções penais e infrações de bagatela) ou de pessoas irrelevantes às esferas do capital (excluídas socialmente). Por aqui tudo é mais fácil. Desde as previsões normativas (com os mais de 1,6 mil tipos penais em vigor no país) até a operatividade das agências do sistema (Polícia, Ministério Público, Judiciário etc), tudo vem a colaborar com essa lógica discriminatória.
E, claro, para encobrir essa (antiga) realidade, tem-se agora uma (nem tão) nova propaganda penal: a “democracia punitiva”. Sob o discurso de “punição igualitária” (o que não existe!), despontam operações, também seletivas, contra a “criminalidade organizada” de alguns membros do alto escalão social, principalmente do campo político e econômico. Apesar de todo o alarde não há um efetivo giro de criminalização; nem de longe uma distribuição homogênea da intervenção penal. Os dados sobre o perfil da população prisional permanecem inalterados. Resta apenas o velho jogo de cena do poder punitivo com seus efeitos reais, deletérios e estigmatizantes, no tocante a certos destinatários penais.
Nils Christie tinha absoluta razão ao afirmar que os sistemas penais veiculam significados profundos sobre os aspectos centrais dos Estados. Das suas práticas policiais ao caminho percorrido entre os tribunais e as prisões, em seus casos concretos, podemos identificar e classificar (de fato) os entes estatais.[2] Quando as medidas de exceção tornam-se regra, o Estado não pode mais ser tido como normalmente anunciado: democrático e de Direito.
Nesses momentos é preciso resgatar o óbvio: a função instrumental do sistema penal e processual penal, de índole constitucional e convencional, em uma sociedade democrática, para a contenção do poder punitivo (sempre tendente ao abuso) e a importância da pesquisa criminológica para o constrangimento das estruturas dogmáticas (pilares teóricos dessa prática abusiva).
Por evidente, como afirma Maurício Dieter, inexiste “explicação” fácil ou rasteira para as questões criminais. Não à toa que a(s) criminologia(s), com suas diferentes leituras, desde o movimento positivista até a vertente crítica radical, se ocupa do estudo das determinações não determinantes dos crimes. Do homem delinquente aos processos de criminalização, a discussão nunca foi simplificada.
Em que pese a complexidade do problema, Nils Christie aponta um caminho que, sem dúvida, deve ser levado em consideração: “reduzamos as condições que criam comportamentos inaceitáveis; da mesma forma, limitemos o tamanho do aparato penal e, particularmente, façamos o máximo para reduzir o volume de inflição de dor”.[3] Isso, definitivamente, é o que podemos (e devemos) fazer!
[2] CHRISTIE, Nils. Uma Razoável Quantidade de Crimes. Trad. André Nascimento. Coleção Pensamento Criminológico – 17. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2011, p. 155.
[3] CHRISTIE, Nils. Uma Razoável Quantidade de Crimes. Trad. André Nascimento. Coleção Pensamento Criminológico – 17. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2011, p. 159.
Fonte: www.conjur.com.br