Juízes não são donos da lei
Igor Natusch e Juliano Tatsch
Pós-doutor em Direito, professor titular da Unisinos (RS) e da Universidade Estácio de Sá (RJ) e ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul, Lenio Streck é uma voz destacada na crítica dos movimentos jurídicos que envolvem a Operação Lava Jato da Polícia Federal. Ao ponto de provocar alguns confrontos de ideias com o próprio juiz Sérgio Moro, responsável pela investigação – o mais recente deles no final de setembro, em uma postagem de Facebook que viralizou nas redes sociais.
Na visão do jurista, o moralismo está atuando como um predador sobre o Direito brasileiro, gerando inconstitucionalidades e distorções. Em entrevista ao Jornal da Lei, Streck critica o que considera um excesso de subjetividade dos juízes brasileiros, além de expor restrições a movimentos jurídicos que supostamente combatem a corrupção no Brasil – como a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de exigir cumprimento de pena a partir da condenação em segunda instância e as medidas anticorrupção propostas pelo Ministério Público ao Congresso Nacional.
Jornal da Lei – Recentemente, uma postagem sua no Facebook gerou repercussão nacional ao ser respondida pelo juiz Sérgio Moro. Nela, o senhor fala que o “solipsismo judicial acabará com o Direito” e alerta que “o Estado Democrático de Direito está em risco”, tudo em nome de “argumentos finalísticos”. O senhor credita esse quadro a quê?
Lenio Streck – O Direito no Brasil fez uma opção equivocada pelo protagonismo judicial. Aqui, vale o que, em outro contexto, disse, há mais de 100 anos, o juiz Holmes, nos EUA: o direito é o que o Judiciário diz que é. Isso fragiliza a democracia. E fragiliza as garantias. Nossos direitos passam a depender da opinião pessoal dos juízes. Dependemos de sua concepção moral. E quando essa concepção moral se contrapõe à lei e à Constituição, os juízes – e Moro é um exemplo privilegiado desse modelo – optam por sua moral pessoal. O pior disso é que parcela enorme da comunidade jurídica virou torcedora.
JL – Nesse sentido, o senhor também já se manifestou dizendo que a “moral predou o Direito”. Quais os riscos envolvidos em transformar o combate à corrupção em uma bandeira moral?
Streck – O Direito possui vários predadores. O pior predador é a moral e o moralismo. Juízes e membros do Ministério Público querem corrigir o Direito. Ora, juiz aplica o Direito. Não constrói direito. Claro que o juiz não é o escravo da lei. Juiz tem subjetividade. Qualquer um sabe disso. Mas essa subjetividade não deve se sobrepor à lei e à Constituição. Portanto, se ele não é escravo da lei, também não é dono da lei. Não vamos ao Judiciário para saber a opinião pessoal do juiz sobre um assunto. Queremos saber o que a lei diz. E ele deve ler a lei. Mas não fazer uma nova, segundo o seu pensamento individual.
JL – O senhor tem apontado críticas fortes ao instrumento da delação premiada. Quais seriam suas principais restrições ao modo como ela vem sendo empregada no País?
Streck – Delação não é ruim em si. É como um remédio que, mal empregado, mata o cliente. Delação com réu preso não devia ser permitida. Isso viola as garantias. Alguém dirá: lá vem o Lenio Streck defendendo malfeitores. “Esses caras não merecem garantias.” Essa conversa de que bandido bom é bandido morto, réu não precisa de direitos, os fins justificam os meios, é uma coisa moralista, que é dita por convicções político-morais e não leva em conta a Constituição. Eu falo como constitucionalista, e não como torcedor.
JL – O senhor fez críticas ao modo como o juiz Sérgio Moro divulgou escutas envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, envolvendo inclusive a então presidente Dilma Rousseff. Como o senhor recebeu a entrevista coletiva do Ministério Público Federal (MPF), na qual Lula foi denunciado por lavagem de dinheiro e chamado de “comandante máximo” da corrupção na Petrobras?
Streck – Primeiro, quero dizer que tenho uma boa relação com o juiz Sérgio Moro. Com ele já fiz um grande debate em São Paulo no ano passado. Respeitamo-nos mutuamente. Ele é um homem de bem. O fato de não concordar com seu modo de ver o Direito não nos torna inimigos. Ao contrário. Penso que nos admiramos mutuamente, porque temos coragem de assumir posições. Fui o primeiro a criticar a divulgação das escutas em março de 2016. Dei entrevistas para rádios e jornais do mundo todo. E também fiz um artigo no site Conjur que bateu recorde de acessos, em que disse que membros do MPF não devem fazer apreciações morais nas suas denúncias. De novo, sempre a moral querendo predar o Direito. Ainda pagaremos caro por isso. Aquele PowerPoint foi simplesmente performático. Não dizia nada. Não acrescentava nada. Mas foi um espetáculo, pois não? Na contramão, penso que o MPF e a magistratura devem ser discretos. Como dizia Paulo Brossard: juiz fala nos autos. Promotor também. E, no meu tempo de promotor, quem queria arquivar um inquérito, não fazia mais de dez páginas. E quem queria denunciar, não fazia sumário e introdução na denúncia. Uma denúncia sempre foi uma coisa técnica. No meu tempo, simplesmente se denunciava. De forma técnica. Seca. Sem adjetivações. Sem moralismos.
JL – A recente decisão do STF, que permite a prisão em segunda instância, antes do trânsito em julgado, foi duramente criticada por diversos juristas como um ato contrário à Constituição. Como o senhor vê essa decisão?
Streck – Veja: o Ministério Público e a magistratura gostaram da decisão da presunção da inocência. Mas ela foi contra a Constituição. Só que pau que bate em Chico, bate em Francisco. Agora vem a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 241 e bate nas instituições. E o ministro Luis Roberto Barroso, festejado por sua decisão no caso da presunção da inocência, agora é criticado por ter dado uma decisão desfavorável a PEC do Teto de Gastos. Por isso, sou um ortodoxo. A favor ou contra meus desejos, critico quando o STF ou juízes descumprem as leis. A Constituição é clara como água limpa. Você pode achar ruim, mas ela diz o que diz. O Supremo julgou mal. Aliás, tecnicamente nem poderia fazer interpretação conforme em ação que visa a declarar a constitucionalidade de um artigo do Código de Processo Penal. Como falei, sou um conservador. Sou do tempo em que onde estava escrito X, lia-se X. E não Y.
JL – O MPF está liderando uma campanha chamada “10 Medidas Contra a Corrupção”, que está sendo analisada por uma comissão especial no Congresso Nacional. Qual a sua opinião sobre o proposto no texto?
Streck – Fui convocado pela Câmara dos Deputados para dar minha opinião sobre esse pacote. Ele está equivocado. Fazer teste de integridade é um absurdo. Isso parece pegadinha. Ele servirá também para juízes e promotores? Para delegados? Para ministros? Ou somente para a parte do andar de baixo do funcionalismo? Outro erro: querer inverter o ônus da prova. Isso é inconstitucional. Mas a parte mais feia do projeto é a admissão de prova ilícita de “boa-fé”. Essa foi forte. Nelson Jobim, por exemplo, fez uma crítica até mais forte que a minha. Trata-se de uma flagrante inconstitucionalidade. Outra coisa é quererem aumentar as penas astronomicamente. Ora, no século XIX, na Inglaterra, transformaram a bateção de carteira em pena de morte. No dia em que enforcaram os primeiros punguistas, fizeram-no em praça pública. A população foi em peso para vibrar. Todos olhavam para os punguistas se estrebuchando. E, por trás, foram furtados. Foi o dia em que mais se bateu carteiras em Londres. O que combate a impunidade é a certeza de que haverá punição. Respeitado o processo. E a pena deve ser cumprida. Em 4/5 do total. A pena não deve ser muito alta. Mas deve ser cumprida. Hoje, isso é um simulacro. Um sexto da pena é uma piada. Porque ninguém quer investir em presídios. Além disso, os presídios são masmorras. Quem disse isso foi o ex-presidente do STF. Simples assim.