Presa há quase uma década, condenada a 34 anos por receptação vai ao Supremo
Uma mulher foi condenada a 34 anos e 10 meses de prisão e está há quase uma década presa pelo crime de receptação de aparelhos.
Segundo consta no processo, a mulher, cujo nome será preservado,comercializava aparelhos de reprodução de CD’s resultantes de crime junto a um homem, em uma loja em Indaiatuba, interior de São Paulo. Em dezembro de 2014, a polícia foi à residência dela e apreendeu tais objetos. Informações preliminares dão conta de que tal apreensão é resultado de investigação por parte da polícia.
A denúncia do Ministério Público afirma que R.P.S e F.A.N. adquiriram, ocultaram e tinham em depósito, “em proveito próprio, no exercício da atividade comercial, diversos aparelhos de som CD’s player”. No entanto, das 10 execuções pelas quais a mulher cumpre pena, 9 são referentes ao mesmo crime – para cada aparelho apreendido, foi aberto um processo.
A contradição se dá também na condenação da presa, haja vista o art. 180, parágrafo 1º, referente à receptação qualificada, que ao “adquirir, receber, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime”, a pena seria de reclusão, de três a oito anos, e multa.
Para o defensor público Thiago Pagliuca, que assina o pedido de liminar, tal caso representa uma das mais injustas, desproporcionais e ilegais situações que já analisou em sua carreira, uma vez que há “existência de crime único, não hediondo, que sequer envolve violência ou grave ameaça. Ou na pior das hipóteses, de crime continuado, e não de 9 crimes, como foi denunciado”, disse.
Para se ter ideia da desproporcionalidade, Pagliuca utiliza como exemplo “desmanches de carros”. “Lá, sabidamente, existem diversas peças automobilísticas com origens criminosas distintas. Dizer que há 50 crimes (em concurso material) de receptação qualificada quando a polícia chega em um desmanche e constata que há 50 escapamentos furtados, por exemplo, é um exagero”, explica.
O defensor ingressou com um pedido de Habeas Corpus com pedido de liminar para que sejam suspensas as execuções criminais contra a mulher até o julgamento definitivo, além da expedição do alvará de soltura. A ação foi distribuída ao ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF).
O processo
Em 2012, foi feito o primeiro pedido de unificação de penas, indeferido pela doutora Nidea Coltro Sorci, juíza da vara de execuções criminais, com a fundamentação de que tratava-se, “nitidamente, de reiteração criminosa, com desígnios autônomos e não de continuação delitiva”.
A Defensoria Pública interviu, então, com agravo em execução, ou seja, considerou que tal decisão prejudicaria o direito da parte principal envolvida no processo. Como resposta, o Ministério Público manifestou-se favoravelmente à unificação das penas. No entanto, em 2013, a 5ª Câmara de Direito Criminal, por meio dos Desembargadores Damião Cogan, Juvenal Duarte e Sérgio Ribas – este último era o relator –, desproveu o recurso. A fundamentação foi parecida com a da decisão de primeira instância.
Em 2013, o ministro Jorge Mussi, por sua vez, negou o seguimento ao habeas corpus (272.143) afirmando que, como a acusada “escolheu o crime como meio de vida”, a conexão entre os casos para julgamento era inviável.
Entenda como o sistema penal consegue produzir 34 anos para venda de um toca CD
Ações com condenações grotescas como essa ocorrem muito quando Delegados e Promotores dividem crimes continuados – aquela forma de crime que é reiterada e parecida nas circuntâncias, como o exemplo do ferro velho que detém material proveniente de crime – em diversos crimes. Nesse caso, por exemplo, uma atividade foi dividida em 10 crimes sobre o mesmo fato, acarretando numa condenação de mais de três décadas, superior a crimes como homicídio, latrocínio e estupro.
Na maioria dos casos, essa manobra da acusação é barrada, mas, por vezes, aberrações jurídicas como essa ganham vida e levam alguém ao presídio por quase uma década.
Como explica Leonardo Marcondes Machado, Delegado de Polícia e Professor de Direito Penal e Processual Penal na Academia de Polícia Civil de Santa Catarina, casos como esse surgem do desvirtuamento de regras que servem justamente para impedir que situações como essa aconteçam – “As regras sobre concurso de crimes devem ser lidas e aplicadas a partir da ideia fundamental de intervenção mínima, e não como ampliadores das dores próprias do sistema penal”.
Para Maíra Zapater, Professora de Processo Penal e Pesquisadora na Fundação Getúlio Vargas, “essa condenação, nos moldes em que está, é insustentável. Do ponto de vista jurídico e dogmático, não há qualquer justificativa para que não se reconheça a continuidade delitiva”.
Zapater vai além e questiona o sentido dessa condenação na política crimal –“Qual o sentido de se encarcerar alguém por 34 anos por receptação? Prevenirá que outros receptadores se dediquem à atividade? Ou a ideia é apenas punir o ato com uma reprimenda mais severa do que aquela prevista em abstrato para um latrocínio, o que denota a absoluta desproporcionalidade da condenação”.