MP abraçou punitivismo para ganhos de classe e entrou em túnel sem saída
Por Fernando Martines
O ex-procurador de Justiça Roberto Tardelli considerava-se um outsider no Ministério Público de São Paulo. Pode parecer paradoxal, já que foi um dos rostos mais conhecidos do MP, fama adquirida ao cuidar da acusação de Suzane Von Richthofen e dos irmãos Cravinhos. A sensação de ovelha negra vem do posicionamento contra o punitivismo — visão que ele garante ser dominante na instituição.
Nesta entrevista à ConJur, concedida no final de janeiro em seu escritório, que ocupa a cobertura de um prédio no bairro de Higienópolis, Tardelli argumenta que os partidos políticos, o MP, as polícias e outras instituições não conseguiram ocupar o vazio político deixado após o fim da ditadura.
Ao fim da tarde de uma sexta-feira, com o escritório vazio, ainda de terno, Tardelli relembra que a Constituição de 1988 deu força sem paralelos no mundo ao MP brasileiro. O sonho dele e de sua turma era que promotores usassem esse poder para serem os ombudsmans da sociedade. Mas a ala punitivista prevaleceu.
O ex-procurador, que saiu do MP com uma carta que caiu feito bomba no mundo jurídico, afirma que quase toda sociedade deseja a punição como regra e que apenas comunidades muito desenvolvidas conseguem superar esse desejo de sangue.
As praças de Paris são largas, os largos, eles vêm exatamente do ajuntamento gigantesco de pessoas que havia para ver gente com o pescoço cortado. Era o programa da família. Essa sede de sangue é própria do ser humano.
Crítico ao ultimato dado por Deltan Dallagnol e outros procuradores e promotores da “lava jato” — que ameaçaram deixar a operação por discordarem de mudanças feitas em projetos de lei —, Tardelli diagnostica que o MP passou a atender os anseios punitivistas da população e, com isso, ganhou força junto a sociedade. Essa força impulsionou ganhos para a classe. Nesse momento se formou um ciclo difícil de desmontar: quanto mais punição, mais a classe ganha e mais ela precisa manter essa dinâmica.
O atual advogado criminalista raciocina que essa consciência de aplicar punições em troca de ganhos para a classe está solidificada. Hoje, diz ele, a grande maioria do MP acredita que punir é o caminho e o encarceramento é solução.
No momento atual, o Ministério Público acredita, sinceramente, que eles são os soldados do bem contra outros cavaleiros do mal.
Tardelli se diz de esquerda e faz uma autocrítica. Lembra que a gritaria feita contra a tortura de jornalistas, intelectuais e artistas na ditadura militar foi absolutamente maior que os protestos contra a tortura que é diariamente feita contra pobres e negros.
Tardelli clama aos novos promotores que não vejam o processo como um jogo de “nós contra eles” e lembrem que não existe bola dividida: se há dúvida razoável, não há culpado.
O pessoal aprendeu as técnicas [de tortura] lá [na época da ditadura militar] e foi passando. É fácil ensinar a torturar. Amarrar um cara na cadeira, algemar e encher de tapa. Nem precisa de curso para isso.
Durante a entrevista, Roberto Tardelli se arrepiou ao lembrar de uma cena do julgamento do caso Richthofen que fez todo júri chorar, quando uma das testemunhas abraçou Daniel Cravinhos.
Leia a entrevista:
ConJur — O senhor concorda que os membros do Ministério Público têm, em sua maioria, uma filosofia punitivista? Acha que é vocação ou uma busca para atender a anseios da população e ganhar musculatura como classe?
Roberto Tardelli — Isso não vem de agora, isso começou quase que imperceptivelmente com a história da guerra contra o crime. A guerra contra o crime foi a grande cilada em que todos os órgãos da Justiça criminal – vamos dizer assim –, inclusive o Ministério Público, caíram. Falaram que existe uma guerra contra o crime… Até que se torna verdade. E para a guerra existir, tem que arrumar um inimigo. Não existe guerra sem inimigo. O problema é que o inimigo que foram arrumar é o que mora na periferia, é o pequeno traficante. Eles começaram a eleger o traficante como o grande solapador das bases da família brasileira. Depois, foi o ladrão, o sequestrador. As coisas foram andando de tal forma, assim, sempre crescendo, buscando ódios. Não que o pequeno traficante tenha deixado de ser odiado. Ele ganhou a companhia de outros. E agora a gente vive uma verdadeira obsessão pela punição à corrupção. Coisas óbvias, como dizer “eu não aceito a corrupção”. Como se pudesse haver um contraponto disso, como se alguém fundar o “Instituto Eu Aceito Corrupção”. É claro que ninguém aceita a corrupção, é evidente, ninguém aceita o crime, a violência, esse estado de coisas. Acontece que, nesse momento histórico, houve um vazio político no Brasil. As forças políticas que deveriam ter se posicionado não se posicionaram.
ConJur — Quais seriam essas forças?
Roberto Tardelli — São as forças mesmo representativas do poder político. Estou falando do Parlamento, do Poder Executivo como um todo, da legitimação de políticas públicas afirmativas de verdade, com uma objetiva vontade nacional de romper barreiras de racismo, romper barreiras de periferia, romper barreiras econômicas. Nesse momento, em que esse vazio político se estabelece, alguém ocupa esse lugar. A Polícia Civil desgastada da ditadura militar não conseguiu se reerguer. Lição que o Ministério Público não aprendeu.
ConJur — Então veio a Constituição de 1988 e deu força ao MP…
Roberto Tardelli — Sim. Eu entrei antes disso, em 1984. O que se queria na época da Constituição, e veio do Direito escandinavo, era figura do ombudsman. Nós nos encantamos quando descobrimos o ombudsman. A gente brigou por isso como se briga por um prato de comida. A gente acreditava que havia a necessidade de uma instituição que se contrapusesse ao Estado, porque havia um Estado fraco que saia da ditadura. A ditadura sai, o Estado não se substitui, a gente sendo carcomido por uma hiperinflação histórica, uma coisa dessas para se contar para os netos. Nesse momento, a instituição que estava à mão era o MP. A força do MP brasileiro não se compara a nenhum outro em qualquer parte do planeta. Porque não era mais somente o titular da ação penal, era agora defensor dos direitos indisponíveis à sociedade, os direitos constitucionais dos quais sequer pudessem dispor.
Conjur — O que aconteceu de errado?
Roberto Tardelli — A história deu um “passa moleque” na gente. A formação pessoal do promotor, saído das elites, é exatamente aquela contra a qual a gente teria que lutar. Então se criou um vácuo dentro do Ministério Público. Nós não sabíamos o que fazer com as atribuições que tínhamos. O que é, por exemplo, o controle externo da Polícia Judiciária? O que é, por exemplo, atividade judicial no presídio? A gente começa a ter uma relação meio esquizoide internamente, até que vai prevalecendo, essa história da luta “contra o crime”, do “vamos passar o Brasil a limpo”, “vamos combater a corrupção”. O Ministério Público embarca nessa onda punitivista, percebe que essa onda punitivista leva ele para a janelinha do ônibus.
ConJur — A sociedade pede a punição?
Roberto Tardelli — Toda a sociedade quer punição. Precisa estar em um patamar muito elevado de desenvolvimento social para uma sociedade não querer punição. Essa sede de sangue é própria do ser humano. Nós somos destrutivos. Quando ele [MP] embarca, se fortalece perante a sociedade. A sociedade passa a idealizar o Ministério Público, cria um modelo ideal que, para poder continuar sendo idealizado pela sociedade, tem que se tornar cada vez mais punitivista. Então é como se ele descobrisse uma saída que não é uma saída, não é um túnel, é um buraco. Esse buraco não tem fundo. Os promotores da “lava jato” se sentem em uma missão fervorosa. Eles estão substituindo, pelo menos na forma como eu vejo, as Cruzadas. Porque para eles existe a guerra. Na guerra, ou eles eliminam ou eles convertem. Matam ou vão ser mortos. Não há terceira via nesse pensamento. Quando se está tratando de inimigo – e essa é a cilada, esse é o veneno escondido – não se reconhece direitos. Para o adversário reconhecemos direitos, para o inimigo, não. O inimigo é aquele que você pretende destruir. Você não pode destruir pensando em regras.
ConJur — Esse processo todo está privilegiando a acusação no Judiciário?
Roberto Tardelli — Não é privilegiando, é hipertrofiando a acusação de tal forma que anula completamente o indivíduo que se contrapuser às forças do Estado. Ele tem a chance de se conformar com a força do Estado. Porque, na verdade, o que houve foi um apoderamento da verdade. “Eu sou a verdade e a fé”, é uma coisa religiosa. Quando começamos a acreditar muito piamente em uma única solução, deixamos de ser racionais.
ConJur — A sensação agora é que o Ministério Público passou a ir atrás também de ricos e poderosos. Isso acontece na prática?
Roberto Tardelli — Estão indo atrás dos poderosos, não há dúvida. Mas o número de pretos presos aumentou absurdamente. Por quê? Porque para justificar a prisão do poderoso, tem que justificar um princípio jurídico que, para pegar um peixe grande, pega milhares de peixes pequenos. Hoje, a população carcerária brasileira é de pequeníssimos traficantes, pequenos ladrões, recrutadores.
ConJur — A guerra às drogas é apontada como caminho?
Roberto Tardelli — Existe uma ilusão de que a droga é combatida com o aprisionamento. Só que o problema não é esse. O problema é muito maior. Quem é o traficante? Como se caracteriza o crime de tráfico? Se eu for pego com 20 gramas de cocaína, tenho que ser muito azarado para ser considerado traficante. “Advogado, ex-procurador de Justiça… Que triste. Já é tiozão e caiu nessa de usar cocaína”, diriam. As mesmas 20 gramas de cocaína com o office boy, negro, magrinho em um ponto de ônibus, vira tráfico. Bastam dois soldados para acabar com a sua vida, já que a prova policial é aceita sem discussão.
ConJur — Qual é a força do depoimento do policial no processo?
Roberto Tardelli — É devastador. A ponto de o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ter sumulado que depoimento de policiais militares é suficiente para condenação. Claro que isso confere um superpoder ao policial. Se não houver um limite para esse poder, ele se atropela. Por que nós estamos assistindo à violência policial hoje? A gente aceita agressões policiais. No caso do Carandiru, por exemplo, era preciso acreditar que 111 presos tinham seringas hipodérmicas contaminadas de sangue com AIDS, e o sangue não deteriorou, estava em perfeitas condições, com o acondicionamento certo e pronto para usar. Era essa teoria para justificar uma chacina que durou 20 minutos. Entraram, mataram 111 e saíram em 20 minutos. Se alguém te contar isso no exterior, você vai achar que é uma lenda. Mas nós aceitamos.
ConJur — Como surge esse perfil punitivista dentro do MP?
Roberto Tardelli — O problema todo está na estrutura das cadeiras, que elas cooptam aquele que entra. Eu sempre acreditei, na verdade, que o exame oral, nessas carreiras todas, não tem caráter de reprovação, mas de aceitação. É um ritual inicial, todos se lembram do exame oral, minuto a minuto. A banca se coloca num lugar acima e o candidato fica abaixo. É como se estivéssemos falando com autoridades divinatórias. Tanto assim que as bancas são gratas aos candidatos. É tão sutil que o mérito de ter passado passa a ser de quem aprovou. Acho que daremos um grande passo no dia em que o exame oral for suprimido. O que é impensável, é inimaginável. A conversa oficial é que precisa ter contato direto com o candidato.
ConJur — O senhor fazia essas críticas internamente, quando era do MP?
Roberto Tardelli — Eu cheguei a dizer: “Olha, nós estamos adquirindo uma metástase, cuidado. Esse punitivismo ainda vai acabar conosco e vai nos colocar em um beco sem saída. Não tem volta”. Não é possível reafirmar que a super lotação carcerária não tem nada a ver com a atuação do MP. Ninguém quer ser responsável por esse caos que está aí. Só que é preciso lembrar o seguinte: só se vai preso no Brasil por ordem escrita da autoridade judicial competente. Nenhuma dessas pessoas que estão presas delas está sem mandado de prisão. Todas elas estão presas porque houve um pedido formal nesse sentido, houve uma decisão formal nesse sentido. Nenhum Poder Executivo no planeta conseguiria construir cadeias com a velocidade com que nós aumentamos o punitivismo.
ConJur — O que achou de o MPF em promover as chamadas “dez medidas contra a corrupção”?
Roberto Tardelli — Não se pode dizer que a prova ilícita pode ser aceita desde que esteja de boa fé. Isso não vai servir para o corrupto que estão querendo prender. Isso vai servir para o preto que mora lá na favela. A polícia vai se hipertrofiar de novo.
ConJur — O risco é um crescimento da tortura?
Roberto Tardelli — Sim, até porque é um problema que não conseguimos eliminar. Um dos grandes erros foi achar que a tortura iria ficar historicamente confinada à ditadura. Não é verdade. Não é verdade até porque houve uma atitude racista da própria esquerda. A esquerda é um mundo. Quando a tortura começou a ir para os pretos, nós não gritamos como deveríamos ter gritado, como gritamos quando a tortura era com jornalistas, estudantes, intelectuais. Esse grito diminuiu. E as técnicas de tortura foram passando adiante. É fácil ensinar a torturar: amarrar um cara na cadeira, algemar e encher de tapa. Não precisa de curso para isso.
ConJur — Os criminalistas dizem que o Habeas Corpus perdeu força no Brasil. O senhor sente isso?
Roberto Tardelli — Outro dia consegui um HC no Rio Grande do Sul e fiquei espantando, pensando, “aqui eles ainda dão HC”. Não tem discussão de prova no HC, mas isso é negar a jurisdição. Como é que se discute que a prisão é uma loucura? “Eu estava sentado na praça, vieram dois caras lá e me tacaram na cadeia.” E criam-se esse bordões. Criam-se verdades axiomáticas. Se não se discute prova em HC, o preso vai ficar preso até quando então? Isso é discussão de mérito. Para prender alguém, é preciso que o juiz se convença de indícios de autoria e prova material de existência do crime. Isso é matéria de prova. Há uma cautelaridade. Então tem que haver a contracautela. Se não estaremos negando a jurisdição. Outro dia eu falei isso em uma câmara: Não cabe discutir o mérito, mas cabe o quê? Eu tenho que esperar a câmara reunir e decidir sobre o mérito?
ConJur — O MP se vê como inimigo do acusado?
Roberto Tardelli — Sim. Mas não pode ser “nós contra eles”. Se o promotor acha que a bola está dividida, ela não é do MP, ela é do réu. Se há uma dúvida razoável, ela resolve o jogo. É assim que vamos melhorar a investigação, não aceitando qualquer porcaria.
ConJur — Ser promovido a procurador mudou sua visão do MP?
Roberto Tardelli — Piorou, aprofundou o que eu já via. Porque passei a ter uma visão panorâmica e minha visão antipunitivista estava definitivamente assentada. Não adianta pensar uma coisa e agir de outra forma no trabalho. A primeira coisa que eu achei muito estranha era a quantidade de recursos da defesa. Só tinha recurso da defesa. É muito raro um recurso do Ministério Público. Só tinha condenação. Tem comarca onde todo mundo é condenado. A cada enxadada é uma minhoca.
ConJur — O que mais chamou a atenção quando o senhor foi sorteado para o caso Suzane Von Richthofen?
Roberto Tardelli — Essa denúncia foi objeto de muita crítica, porque queriam que eu denunciasse um crime mais grave. Logo após a morte [dos pais de Suzane], o Cristian [Cravinhos] apanhou o dinheiro que estava no armário, indicado pela Suzane. Queriam que eu transformasse isso em um latrocínio. Mas não é. Eu não queria brigar no julgamento para depois chegar e ter que reduzir a pena.
ConJur — O senhor sentiu que o caso estava ganho para a acusação, por conta da pressão social, do trial by media?
Roberto Tardelli — Júri é uma aventura muito louca. A porta é trancada. Os jurados ficam sem o celular, trancados. Não podem falar com ninguém, conversar com outro jurado sobre o júri. Aí é o “mergulho” de cada um. Cada um vai para dentro de si.
ConJur — O sentimento não era de que já estava garantida a condenação?
Roberto Tardelli — Não, de jeito nenhum. Porque, primeiro, era uma situação inédita. Como é que uma menina dessas, bonita e rica, mata pai e mãe? Alguma coisa aconteceu. Quem são esses dois [irmãos Cravinhos]? O Daniel é desenhado no julgamento como uma pessoa francamente espetacular. Esse menino não falava palavrão, nunca bebeu na vida. Ele era o quarto aeromodelista do mundo. Nesse mundo, quem toma uma cerveja na quinta-feira não compete no domingo. É alguém que tem que ter a destreza em milésimo de milímetro. É um atleta mundial. O Daniel é um dos raríssimos aeromodelistas projetistas. Ele faz o próprio avião. Se ele não tivesse entrado nessa, iria morar no Estados Unidos, ia ficar milionário.
ConJur — Isso pesa, não é?
Roberto Tardelli — E como não pesa? As pessoas estão falando que aquele é um cara sério. Explosões emocionais. As testemunhas ficaram quatro, cinco dias confinadas também. Cada uma que foi, explodiu. Foi uma instrução muito emocional, muito eletrizante. De tal forma que eu não sabia o que iria virar. Num dos momentos, o juiz mostrou que até ele estava espantado. Exclamou: “meu Deus do céu”.
ConJur — O que mais te marcou naquele julgamento?
Roberto Tardelli — Teve um momento eu nunca vou esquecer. Um senhor, absolutamente respeitável, presidente então da Federação de Aeromobilismo foi perguntado: “Onde o senhor conheceu o Daniel?”. “Eu conheci o Daniel no berçário. Eu vi o parto do Daniel”. Ele foi amigo do pai do Daniel desde que tinha quatro anos de idade. Foi uma amizade de 66 anos. E ele disse: “Não há um dia na minha vida em que eu não tenha falado com o Cravinhos. Eu não me lembro de ter. Ele é muito mais que um irmão, cresceu na minha casa, cresceu comigo. Tinha senha bancária, tinha tudo. Eu estou em um pesadelo. Eu sei disso. Eu tive um sonho horroroso.” Então esse homem levanta e abraça o Daniel. Os dois explodem em choro. Todos os jurados chorando. Eu chorei. Os advogados também.
ConJur — Como o caso mudou o senhor?
Roberto Tardelli — Quando acabou aquilo, eu estava absolutamente desplugado da ideia de punitivismo. Eu olhava para o traficante e não conseguia mais ver gravidade na atividade dele. O que pode ser mais grave do que matar pai e mãe? Qual é o limite disso?
Fonte: www.conjur.com.br