Repressão do Estado não diminuiu uso nem comércio de drogas mundo afora
Por Sérgio Rodas
Há mais de um século o mundo vem tentando erradicar os entorpecentes — com resultados pífios. A chamada guerra às drogas aumentou os lucros de traficantes, a violência e o número de presos, sem, contudo, reduzir o consumo dessas substâncias.
O conceito de “droga” é amplo: engloba qualquer produto ou substância que provoque alterações no normal funcionamento da mente e corpo humanos. Dessa forma, também são drogas tabaco, álcool, açúcar, café, chás e remédios. Na história da humanidade, os entorpecentes representaram diversos papéis, de acordo com Henrique Soares Carneiro, professor de História Moderna da Universidade de São Paulo e pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos desta instituição. Entre eles, os de aliviar dores físicas e espirituais, de ajudar no sono, de promover experiências religiosas, e de fornecer energia para caçadas e combates.
“A questão do uso de drogas não se constitui, assim, apenas como um ‘problema’, mas faz parte da cultura humana há milhares de anos como um instrumento de estímulo, consolo, diversão, devoção e intensificação do convívio social”, afirma o historiador em artigo publicado na revista Diálogos, da Universidade Estadual de Maringá (PR).
Salvo uma ou outra experiência isolada, o uso de drogas era legalizado em todo o mundo até o início do século XX. As Guerras do Ópio (1839-1842 e 1856-1860), por exemplo, foram iniciadas pela Inglaterra após a China proibir a importação de ópio — produto monopolizado pela Companhia Britânica das Índias Orientais.
Na virada dos anos 1800 para os 1900, o panorama começou a mudar, impulsionado pelos EUA, e teve início a onda de proibição das drogas. Diferentemente do que se poderia imaginar, as bases da vedação não foram científicas ou médicas, mas sim sociais, econômicas, morais e religiosas, como aponta a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Luciana Boiteux em sua tese de doutorado na USP.
Os dois primeiros motivos estão no preconceito contra imigrantes e seus descendentes, que começavam a competir pelos empregos norte-americanos. Assim, entorpecentes como ópio (associado aos chineses), maconha (mexicanos), cocaína (negros) e mesmo álcool (irlandeses) foram considerados produtos consumidos por “vagabundos” e “criminosos”. Além disso, havia a pressão da crescente indústria farmacêutica, que defendia a proibição das drogas que não produzia.
Havia ainda a força da ética protestante, que pregava uma vida livre de vícios e práticas hedonistas, focada no trabalho duro, que levaria à salvação por Deus. O criminalista Rogério Taffarello, também em sua tese de doutorado na USP, destaca a importância da Anti-Saloon League nesse contexto. Criada em 1895, a associação lutava contra os saloons, bares típicos da região centro-oeste dos EUA. Segundo a entidade, o uso de álcool (e outras drogas) atentava contra o moralismo puritano da classe média norte-americana. O grupo atingiu milhares de associados. Por isso, políticos passarem a ter medo de desafiar a exigência deles por uma “América limpa”.
E um religioso foi o grande incentivador do início da proibição às drogas: o bispo missionário anglicano Charles Brent, como conta o juiz da Vara de Execução Penal de Manaus, Luís Carlos Valois, em seu livro O direito penal da guerra às drogas (D’Plácido). O norte-americano Brent viajou por diversos países asiáticos pregando contra o uso de ópio — algo que ele considerava “imoral”.
Após conseguir a vedação a essa droga nas Filipinas, ele representou os EUA na Conferência de Xangai, em 1909, onde advogou pelo combate à substância extraída de sementes de papoula. Devido à ascensão dos EUA, outros países concordaram com a tese do missionário. A reunião definiu as bases para a Convenção Internacional do Ópio, tratado celebrado por 12 nações três anos depois, e que foi a primeira norma internacional sobre controle de entorpecentes.
Em 1914, foi promulgada nos EUA o Harrison Act, primeira lei federal a controlar o uso de drogas — no caso, ópio e cocaína. Conforme essa norma, tais substâncias só poderiam ser compradas mediante receita médica. Contudo, logo os médicos passaram a ser perseguidos pelos fiscais, que os acusavam de estarem autorizando indevidamente a aquisição de entorpecentes. Até que a Suprema Corte, em 1919, decidiu que prescrever essas drogas não era atividade própria de médicos.
Foi o passo inicial para se instituir um paradigma punitivista. No ano seguinte, o álcool seria proibido nos EUA, e assim ficou por 13 anos. Com o passar do tempo, novas convenções e tratados internacionais foram aumentando o rol de drogas proibidas e intensificando o combate a elas. E a guinada repressiva ganhou ainda mais impulso quando Richard Nixon assumiu a presidência dos EUA em 1969. O republicano logo declarou “guerra às drogas”, que seria travada pela erradicação do uso e do tráfico por meio de prisões em massa. Para isso, ele criou a Drug Enforcement Administration (DEA), órgão do governo federal que passou combater os entorpecentes dentro e fora do país.
Nessa luta, valia até ligar o consumo de drogas aos comunistas — os EUA então travavam a Guerra Fria contra a União Soviética. Nesse cenário moralizador, exportado pelos norte-americanos a outras nações, aqueles que questionavam o combate aos narcóticos eram logo tachados de drogados, destaca Valois em sua obra. Dessa maneira, o debate público sobre essa questão ficou interditado.
Brasil surfa a onda
O Brasil, é claro, não escapou da política proibicionista. Seguindo a tendência mundial, Getúlio Vargas editou no começo de seu primeiro governo o Decreto 20.930/1932, que criminalizou a venda e a posse de maconha, cocaína e ópio. Já no Estado Novo, Vargas endureceu a repressão com o Decreto-lei 891/1938, que estabeleceu pena de 5 anos para o uso de entorpecentes e proibiu a sursis e o livramento condicional para delitos relacionados a drogas.
A matéria foi incluída no Código Penal de 1940. Sem estabelecer quais eram as substâncias proibidas e usando “fórmulas genéricas e termos imprecisos”, a norma ampliou seu significado, sustenta Luciana Boiteux em sua tese.