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Melhor forma de combater facções é cumprir as leis no sistema penitenciário

Por Sérgio Rodas
*Este é o quarto texto da série produzida pelaConJur sobre a relação entre a guerra às drogas e a superlotação dos presídios. Para ler os outros textos, clique aqui.
As olheiras, barba por fazer e resfriado não disfarçam: o deputado estadual do Rio de Janeiro Marcelo Freixo (Psol) está cansado. Cansado pela corrida à Prefeitura da capital, a qual perdeu no segundo turno para Marcello Crivella (PRB). Cansado por ter ignorado o recesso de fim de ano da Assembleia Legislativa do Rio e continuado com a agenda cheia em dezembro e janeiro, quando recebeu a ConJur. Porém, principalmente, segundo ele próprio, cansado de assistir à sociedade, governantes, parlamentares e magistrados proporem as mesmas medidas ineficazes de sempre para combater as facções criminosas e a crise carcerária.
 /></em>“O sentimento da sociedade hoje, que, de alguma maneira, influencia o Judiciário, é que precisamos de penas mais duras, mais gente presa. Se prisão resolvesse, já estávamos como a Suécia. Mas, na verdade, as pessoas conhecem muito pouco do sistema penitenciário, que só é notícia quando tem rebelião ou fuga. A prisão não vai ser compreendida no grito das rebeliões, a prisão tem que ser compreendida no silêncio do dia a dia. Isso o Poder Público não entendeu ainda”.<br />
Segundo Freixo, os únicos objetivos das penitenciárias hoje em dia são evitar fugas e rebeliões. Mas ele cobra espaço na agenda do Estado para a instrução daqueles que cometeram um crime e a garantia de que eles não percam seus vínculos familiares. A partir daí critica as medidas anunciadas pelo presidente Michel Temer (PDMB) para debelar a crise do sistema prisional, como usar militares para fazer revistas nesses estabelecimentos.<br />
Para melhorar as cadeias, bastaria cumprir a legislação penal, ressalta o deputado. Ou seja: aplicar penas alternativas, respeitar as progressões de regime e evitar o prolongamento das detenções temporárias. Dessa forma, prisão seria reservada apenas para os casos mais graves. Também não há, de acordo com Freixo, como resolver a crise carcerária sem discutir a regulamentação das drogas. Afinal, a proibição não acaba com a demanda por entorpecentes, mas lota as penitenciárias — 28% da população prisional foi condenada por tráfico.<br />
“O consumo só aumenta, os problemas sociais só aumentam. Não há políticas de saúde para as drogas, porque é preciso ter políticas de segurança pública. É muito simples: o debate não é se as pessoas vão ou não usar drogas, pois elas vão usar. O debate é quem vai controlar esse uso. Vai ser o Estado, por meio de políticas públicas? Ou vai ser a lógica do mercado, essa que conhecemos, que gera morte, guerra, prisão?”, questiona.<br />
A ironia ácida e as perguntas retóricas são algumas das armas de Marcelo Freixo em sua batalha para tentar convencer políticos e o povo da importância do debate sem preconceito sobre as drogas, do direito de defesa e dos direitos humanos. Ele também ataca a ideia de que facções criminosas são as grandes responsáveis pelo tráfico de drogas no Brasil e pelos problemas que dele advêm.<br />
“Certamente o que fica na mão do Primeiro Comando da Capital é uma parte menor do que a que fica na mão de quem controla internacionalmente esse tráfico. Por que não se investiga o dinheiro [do tráfico]? Talvez porque você chegue a lugares onde não se pode chegar, né?”, provoca — segundo a Polícia Civil e Ministério Público de São Paulo, 80% do faturamento anual (estimado em R$ 240 milhões) da facção paulista vem do tráfico de drogas.<br />
Ironias à parte, Freixo alerta que a eleição de Donald Trump nos EUA mostrou que “a barbárie não pode ser considerada uma piada”. A seu ver, é preciso proteger a democracia dos discursos de ódio sobre segurança pública e prisões, que se alimenta do medo das pessoas. Até porque, diz Freixo, há clãs políticos no Brasil que surfam nessa onda — referência ao deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e seus filhos.<br />
Assim como as propostas que defende, suas respostas também não são fáceis nem têm atalhos — próprias de quem diagnostica a realidade a partir de uma perspectiva histórica. Freixo é professor de História e deu aulas em presídio. “Sei o quanto a educação pode transformar aquela realidade para o bem da sociedade”.<br />
Seu gabinete na Alerj (onde preside a Comissão de Direitos Humanos), no Centro do Rio, é decorado por quadros de revolucionários como Che Guevara, Rosa Luxemburgo e Carlos Marighella. Além disso, possui enfeites africanos e do Flamengo, seu time do coração. No dia da entrevista, o deputado estadual recebeu uma moldura contendo uma camiseta do time com seu nome e o número 50, o mesmo de seu partido.<br />
À <strong>ConJur</strong>, Freixo contou como é negociar uma rebelião, defendeu investigações sobre o tráfico de armas e criticou a postura messiânica do Judiciário. Ele ainda afirmou que irá se candidatar a deputado federal ou senador em 2018.<br />
<strong>Leia a entrevista:</strong><br />
<strong>ConJur</strong><strong> — O Brasil vem assistindo a diversas rebeliões em presídios no começo de 2017. Na mais violenta delas, em Manaus, vimos o juiz Luís Carlos</strong> <strong>Valois</strong><strong> entrar na penitenciária para negociar com os presos. O senhor tem experiência em negociar com detentos. Como se comportar num momento desses?</strong><br />
<strong><strong>Marcelo Freixo</strong></strong> — Eu acho que o juiz Valois estava correto de tentar conversar, de tentar negociar, porque a custódia do Estado envolve o Judiciário, o Executivo e o Legislativo, não só a secretaria responsável pela detenção. Eu não o conheço pessoalmente, mas sei que ele recebeu críticas, que claramente foram feitas por quem não conhece o sistema. Talvez seja um dos poucos juízes que conhecem o cheiro da cadeia. Eu já participei de muitas negociações de rebelião no Rio de Janeiro. A última que tivemos aqui foi em 2004. O mais importante não é nem o que se faz na hora, mas o que é feito antes, para evitar. Nossa sociedade não conseguiu se libertar da lógica escravocrata, em que Justiça se confunde com vingança — e o Judiciário não está imune a isso. O sentimento da sociedade hoje, que, de alguma maneira, influencia o Judiciário, é que precisamos de penas mais duras, mais gente presa. Mas, na verdade, as pessoas conhecem muito pouco do sistema penitenciário, que só é notícia quando tem rebelião ou fuga. A prisão não vai ser compreendida no grito das rebeliões, a prisão tem que ser compreendida no silêncio do dia a dia. Isso o Poder Público não entendeu ainda. Num momento de rebelião não tem mais jeito: o que tem que fazer é evitar mortes. O que se negocia numa hora dessas? Você tenta liberar reféns e evitar mortes. Todas as rebeliões que eu negociei foram bem- sucedidas. Todas. Resgatamos todos os reféns, e nunca teve um massacre.<br />
<strong>ConJur</strong><strong> — Qual dessas rebeliões foi a mais tensa?</strong><br />
<strong>Marcelo Freixo</strong> — Eu passei por algumas. Teve uma em Bangu 3, em 2003, na qual um agente penitenciário tinha morrido na tentativa de fuga dos detentos. Essa foi difícil, porque os agentes estavam muito tensos. Então, havia a possibilidade de um enorme conflito. Os presos estavam muito armados do lado de dentro, tinham mais de 50 reféns. Foram dois dias e meio de negociação na rebelião. Mas nós conseguimos com que os presos entregassem as armas e todos os reféns. A de Bangu, 1 que ficou famosa, originalmente foi um conflito entre presos que gerou a morte de um preso conhecido no Rio de Janeiro, o Uê. Porém, também teve tentativa de fuga. O Brasil inteiro estava olhando para aquela rebelião, a qual mexeu com toda a cidade. Mesmo assim, conseguimos fazer com que todos os reféns saíssem e não tivesse mais nenhuma morte depois que a negociação começou. A rebelião de Benfica em 2004 teve muitas mortes, foi muito violenta, semelhante às que estamos assistindo agora em Manaus e outras cidades. Isso porque tinha mais de uma facção na unidade, que era muito frágil, um prédio adaptado para ser presídio. Quando nós chegamos para negociar, a violência já tinha acontecido. Depois conseguimos controlar a situação, mas foi uma das mais difíceis pelo grau de violência. Cada rebelião tem uma circunstância distinta, porque os presídios têm realidades diferentes.<br />
<strong>ConJur</strong><strong> — Na hora de negociar uma rebelião, que estratégias o senhor usa? Como manter a calma nesse momento tenso?</strong><br />
<strong>Marcelo Freixo</strong> — Primeiro queria falar por que eu sou chamado para negociar rebeliões. Eu não tenho essa função — aliás, eu não era deputado quando negociei essas rebeliões. Depois que fui eleito, não teve mais rebelião, graças a Deus. Eu sempre fui professor, comecei a trabalhar nas prisões com 21 anos, hoje eu tenho 50. Eu comecei alfabetizando preso, dando aula de história. Sempre entendi que educação é um processo muito importante dentro das prisões, que nunca foi levado a sério. Eu era chamado porque os presos me conheciam, e sabiam que comigo não tinha nenhum acordo. Eu nunca fiz parte de nada, sempre entrei e fiz meu trabalho ali dentro. Depois trabalhei no conselho da comunidade, fiscalizava as prisões, elaborava relatório, fazia uma série de propostas. E eu conhecia os presos. Eu sempre negociei as rebeliões do lado dos negociadores do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), que são muito bem treinados. Eu sempre atendi a esses pedidos, embora não tivesse nenhuma obrigação de fazer isso – afinal, não era funcionário público nem recebia por essas negociações. Mas o Bope me levava para eu dizer aos presos que era para eles confiarem nos policiais, que não haveria massacre como ocorreu no Carandiru, e que seria preciso que eles entregassem os reféns e as armas para. Eu criava uma relação de confiança na hora tensa dessa negociação. Claro, tem todo um procedimento combinado com os negociadores do Bope, que eram tecnicamente muito corretos. Mas nós estudávamos antes a situação do presídio para sabermos o que poderíamos propor. É preciso ter credibilidade, diálogo. E é preciso ter palavra, isso era uma coisa que nós combinávamos com o Bope.<br />
<strong>ConJur – Qual é peso das facções nas rebeliões?<br />
Marcelo Freixo —</strong> Cada estado tem uma realidade muito diferente da dos outros, mas uma prisão que tem duas facções já está completamente errada. Tem um problema anterior, que é como surgem as facções. Elas não se organizam nas ruas e dominam as prisões, é o contrário. É o universo prisional nas suas contradições. Não ter política pública é a política pública do sistema prisional. Além disso, o Estado não cumpre a legislação de execução penal. A melhor maneira de combater as facções é cumprir as leis dentro do sistema penitenciário. Qual é o grande objetivo da cadeia hoje? Não ter rebelião e não ter fuga — e não que maioria dos presos passe a trabalhar, tenha um curso profissionalizante ou conclua seus estudos. Se o objetivo é não ter fuga e rebelião, é preciso organizar o caos, o que fazem dividindo as facções, que são tão poderosas que o próprio sistema se baseia na lógica delas. Isso acaba fortalecendo-as, o que vai gerar grandes rebeliões e grandes fugas. Quanto mais o sistema penitenciário entrega essa lógica, mais violento fica o país. Quando se classifica o preso por sua facção, fica a mensagem de que ele tem que ter uma facção para sobreviver no sistema penitenciário. E eu te garanto que a maioria esmagadora desses presos não tem vínculo organizado com o crime do lado de fora. Passa a ter lá dentro.<br />
<strong>ConJur</strong><strong> — E daí eles saem da prisão vinculados com as facções.</strong><br />
<strong>Marcelo Freixo</strong> — Não tenha dúvida disso. E a prisão fica mais violenta porque ela fica subordinada a uma lógica de um grupo criminoso, e não à lógica da lei, a uma perspectiva do Estado de ter alguma outra coisa diferente da violência. A violência dita a norma penitenciária a partir do próprio Estado. O Poder Judiciário não tem nenhuma responsabilidade sobre isso? Claro que tem. Ele fiscaliza as prisões? Cobra políticas públicas? Há reuniões sistemáticas de planejamento do que se pretende do sistema judiciário? Há superlotação, há uma quantidade gigantesca de presos provisórios que, depois de julgados, não pegam pena de prisão. Por que ficaram presos então? As audiências de custódia não são encaradas como políticas prioritárias. Portanto, tem o que fazer. Agora, o que fazer nas rebeliões depende de cada uma. Eu não posso falar de rebeliões de outros estados, mas, no Rio de Janeiro, todas as rebeliões que eu negociei foram tentativas de fuga frustradas que geraram revolta. O Rio não teve nenhuma rebelião de protesto por condições carcerárias, embora depois elas acabem por também reivindicar isso. Aliás, boa parte das reinvindicações são pertinentes, mas elas não nascem por isso.<br />
<strong>ConJur</strong><strong> — Em resposta às rebeliões do início do ano, o governo federal anunciou algumas medidas para combater a crise carcerária, como a construção de cinco novos presídios federais, repasses para a construção de uma penitenciária em cada estado, instalação de aparelhos que bloqueiam o sinal de celulares e uso de militares para fazer vistoria nos presídios. O que o senhor pensa dessas medidas?</strong><br />
<strong><strong>Marcelo Freixo</strong></strong> — Bom, primeiro que colocar militar para fazer vistoria em presídio é a coisa mais estapafúrdia que eu já ouvi na minha vida. Era mais fácil investir nos agentes penitenciários, que precisam de mais treinamento, de mais investimento. Invista nessa categoria, que hoje está massacrada. Invista na área de saúde — não há política de saúde no sistema penitenciário. Os presídios do Rio de Janeiro, por exemplo, são foco de tuberculose — um retrocesso de alguns séculos. E pensar que é o Exército que precisamos dentro da cadeia? Não é. Vai construir mais presídios? Eu não tenho dúvidas que tem que construir mais presídios, só que junto com isso, poderiam estar investindo nas cadeias de custódia. Com isso, talvez seria possível diminuir uma população carcerária que não tem necessidade de estar presa, afinal, 40% dos presos são provisórios. Além disso, poderia perfeitamente ter mais audiências de custódia, ter os chamados mutirões junto da Defensoria Pública e do Tribunal de Justiça, aumentar o número de defensores públicos para o atendimento jurídico ser mais ágil. Outro problema: a administração prisional é estadual, e a legislação é federal, a verba é federal. A verba do fundo penitenciário tem sido usada para outras coisas que não o sistema prisional. O Psol entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal questionando isso. Fora que o governo federal não tem os dados atualizados dos presos dos estados. Precisa de um censo para gerar políticas públicas eficazes. Se não há diagnóstico, você não sabe o que fazer, e sai propondo um monte de medidas de eficácia muito pequena.<br />
<strong>ConJur</strong><strong> — Como incentivar o trabalho nos presídios? Por meio da celebração de mais convênios com empresas? Seria uma boa ideia dar isenções fiscais para as companhias que empregassem detentos?</strong><br />
<strong>Marcelo Freixo</strong> — Sim, ao contrário das isenções fiscais que geralmente são concedidas. Isso é outra coisa importante — as prisões brasileiras são prisões de ociosidade máxima, não de segurança máxima. Quando uma pessoa é condenada a 10 anos, é preciso pensar em como esse tempo será gasto. Será um tempo ocioso ou um tempo gasto cumprindo a lei? O Judiciário deve ter responsabilidade por isso também. Senão, estará produzindo monstros. Há um processo de coisificação, de “monstrificação” nas prisões. Aí é muito importante um debate mais filosófico. Por que os direitos humanos são associados a bandidos? Porque o bandido é a forma, a expressão que se achou para chamar alguém que não é pessoa. O sistema sócio-educativo transforma o moleque em um número, e despersonifica-o. Esse processo de despersonificação também ocorre por meio de gírias, termos como “vagabundo”, “elemento”. Aí vão criando os “matáveis” na sociedade. Prisão é para os “matáveis”. É isso que pretendemos para a sociedade? É isso que a filosofia de Vitor Hugo já dizia: se quiser conhecer uma sociedade, conheça as suas prisões. Não é proteção de bandido, é proteção de um marco civilizatório mínimo para a sociedade.<br />
<strong>ConJur</strong><strong> — O que o senhor pensa de presídios administrados por entidades privadas?</strong><br />
<strong><strong>Marcelo Freixo</strong></strong> — Temos a experiência concreta dos EUA. Os EUA estão revendo seu modelo de privatização porque ele gerou uma indústria do encarceramento — há mais de 2,2 milhões de presos hoje no país. Eles entenderam que esse modelo não funcionou. Preso não é mercadoria. Há um equívoco de princípio no debate da privatização de penitenciárias — na verdade, isso encarece o custo do sistema, porque é caro manter pessoas encarceradas. Não venha me dizer que o Estado economiza com a privatização de presídios, porque isso não é real. O Estado paga muito mais por um preso numa unidade privada do que ele paga numa unidade pública, e isso não resolveu nada. Fora que essa ideia parte de um outro princípio, que é o de que o que público é ruim, algo que eu não aceito. O que é público pode ser bom. Depende do grau de transparência, das pessoas que são colocadas para administrar os serviços públicos.<br />
<strong>ConJur</strong><strong> — O senhor pensa que o sistema penal brasileiro é muito rígido? Há crime punidos com prisão que poderiam ter penas alternativas?</strong><br />
<strong>Marcelo Freixo</strong> — As penas alternativas já estão previstas nas leis, o problema é que o Judiciário não acredita nelas. Se um garoto aqui na rua São José [no Centro do Rio] roubar um celular e sair correndo, a chance de ele ser pego, espancado e amarrado num poste lembrando um pelourinho é muito grande aqui. O Judiciário não está muito diferente dessa lógica do feitor. As penas alternativas são muito mais eficazes em diversos casos, porque a pena de prisão é cara e ineficaz. As penas alternativas não são um avanço para os presos, são um avanço para a sociedade.<br />
<strong>ConJur</strong><strong> — 28% dos presos cometeram tráfico de drogas. A regulamentação das drogas ajudaria a aliviar o sistema carcerário?</strong><br />
<strong><strong>Marcelo Freixo</strong></strong> — Esse é outro debate essencial. No Rio de Janeiro, o perfil dos presos por tráfico de drogas é muito semelhante ao perfil dos presos por furto, por roubo: jovem, pobre, com baixíssima escolaridade, de sandália e com poucos dentes. Esse é o perfil do traficante — morador de favela, negro. Daí vem a pergunta: qual é o perfil do preso por furto? É o mesmo. Do roubo? É o mesmo. Tem alguma coisa errada nisso. Quais são as grandes investigações que levam a essas prisões? Só se prende por flagrante. Esse é outro ponto curioso. Entre em uma unidade prisional e pergunte quem foi preso em flagrante. Você prende quem você vigia. Você prende quem você controla. Você não combate o crime, você combate os territórios que você quer combater, e os crimes desses territórios. Isso nós temos que olhar. O sistema penitenciário não é um instrumento de enfrentamento ao crime, ele é um instrumento de domínio de relações de poder na sociedade. Então, o sistema prisional tem muito mais vínculos com o domínio de territórios e de determinados setores sociais do que com crime. Qual foi o último grande traficante de armas que foi preso no Brasil? Como essas armas chegam às favelas? E as munições, que são quase todas elas produzidas no Brasil? Eu gostaria que os Tribunais de Justiça me respondessem. É eficaz isso que estamos fazendo?<br />
<strong>ConJur</strong><strong> — E isso se relaciona com as leis antidrogas?</strong><br />
<strong>Marcelo Freixo</strong> –— Muitos países, como EUA e Uruguai, estão avançando nessa área. Não podemos continuar prendendo quem quisermos fiscalizar, quem quisermos controlar, dos territórios que quisermos controlar. E isso usando uma legislação para drogas que nada tem a ver com o combate ao tráfico, com a redução do consumo. O consumo só aumenta, os problemas sociais só aumentam. Não há políticas de saúde para as drogas, porque é preciso ter políticas de segurança pública, então não é possível desenvolver aquelas medidas. Prende-se cada vez mais jovens pobres, com o mesmo perfil e do mesmo eixo social. Não se resolve o problema da segurança pública, não se resolve o problema da saúde pública, e tem-se um sistema penitenciário que explode. A guerra às drogas não é inteligente.<br />
<strong>ConJur</strong><strong> — Que modelo o senhor defende em relação às drogas? A descriminalização do uso, a legalização só da maconha ou outro formato?</strong><br />
<strong><strong>Marcelo Freixo</strong></strong> — Tem que legalizar. A nossa legislação não diferencia o usuário do traficante só pela quantidade, mas também pelo perfil da pessoa. Então, se a minha filha for pega com droga, a Justiça vai olhar de uma maneira. Se um jovem da mesma idade que ela, mas de uma cor diferente, for pego com a mesma quantidade de, a Justiça vai olhar de outra maneira. Isso não pode continuar assim. O debate de legalização é fundamental para que você desenvolva políticas de saúde pública sobre drogas. Isso não vai aumentar o consumo — qualquer pessoa que queira consumir drogas hoje consome, onde quer que seja. Há, por certo, demanda e mercado. As drogas já estão aí. Álcool é uma droga extremamente danosa em termos de saúde pública. Nós vimos o que aconteceu em Chicago nas décadas de 1920 e 1930 [quando o álcool foi proibido nos EUA]. Alguém em sã consciência sugere hoje a proibição do álcool para reduzir os danos das bebidas? Isso está em pauta? Por que não? Porque não tem o menor sentido. Tem havido redução do uso do cigarro. Por quê? Porque há políticas públicas para isso — há propaganda, há tratamentos da rede de saúde pública. Por que isso não pode acontecer com outras drogas, para que se tenha o controle sobre elas? É muito simples: o debate não é se as pessoas vão ou não usar drogas, pois elas vão usar. O debate é quem vai controlar esse uso. Vai ser o Estado, por meio de políticas públicas? Ou vai ser a lógica do mercado, essa que conhecemos, que gera morte, guerra, prisão? O debate não é se vai ter ou não vai ter droga. Para com isso, é claro que vai ter.<br />
<strong>ConJur</strong><strong> — Então o senhor defende a regulamentação de todas as drogas?</strong><br />
<strong><strong>Marcelo Freixo</strong></strong> — De todas as drogas.<br />
<strong>ConJur</strong><strong> —A proibição das drogas fortalece as facções criminosas?</strong><br />
<strong><strong>Marcelo Freixo</strong></strong> — Sim, além de outros grupos que não conhecemos porque não são presos e identificados. O que fica na mão do PCC, por exemplo, é uma parte menor do que a que fica na mão de quem controla internacionalmente esse tráfico. As drogas vêm de fora, as armas vêm de fora. Se eu te levar a um presídio e te apresentar os traficantes que estão presos no Rio de Janeiro, os caras não sabem para que lado fica a Bolívia. Eles nunca saíram do Rio de Janeiro, alguns nunca saíram de sua favela. E imaginar que aquele cara é responsável pelo tráfico internacional de armas e de drogas? Tem alguma coisa errada nisso. Se fica um bom dinheiro ali, muito mais fica em algum outro lugar, e eu não sei onde. Talvez no mercado financeiro. Ou será que existe um mercado paralelo de dinheiro? Mercado paralelo de droga tem. De dinheiro tem? Lógico que não. Por onde circula o dinheiro do tráfico de drogas e do tráfico de armas? No mesmo circuito de onde circulam as grandes fortunas — no sistema bancário, no sistema financeiro, no sistema imobiliário. Ou o dinheiro do tráfico de drogas está no colchão? Estamos dispostos a mexer nisso? Deveríamos. Se quisermos falar de tráfico e de grandes riquezas, por que não vamos atrás do percurso do dinheiro? Por que só vamos atrás do percurso do crime? Por que não vamos atrás do lucro, só da pessoa? Por que não muda nada? Por que não se investiga o dinheiro? Talvez porque você chegue a lugares onde não se pode chegar, né?<br />
<strong>ConJur</strong><strong> — Então o senhor pensa que essas facções têm algum tipo de acordo com os reais traficantes?</strong><br />
<strong><strong>Marcelo Freixo</strong></strong> — Essas facções são violentas. Não dá para ter nenhum romantismo: elas precisam ser enfrentadas. Afinal, são perversas, pensam no dinheiro e não tem nenhum pudor em matar. Não tem Robin Hood nessa história. Agora, elas não representam o grande crime organizado, porque elas não representam um grande projeto de poder econômico e controle financeiro de tudo. As facções são muito mais resultado do caos público. Eu costumo dizer o seguinte: mais do que crime organizado, nós temos um Estado desorganizado em relação às prisões. O crime é organizado nas prisões. Só existe porque existe um Estado desorganizado das prisões.<br />
<strong>ConJur</strong><strong> — Aqueles contrários à regulamentação das drogas afirmam que, sem o tráfico, os traficantes passariam a cometer crimes mais violentos, como roubo e sequestro. O que o senhor pensa desse argumento?</strong><br />
<strong><strong>Marcelo Freixo</strong></strong> — É baseado em quê? As manchas criminais se deslocam? Sim, se deslocam. Vimos isso aqui no Rio de Janeiro na experiência das UPPs. Com a falta completa de planejamento, houve deslocamento das manchas criminais, região metropolitana do Rio de Janeiro ficou muito mais violenta. Era previsível. É preciso planejar, mas parte-se de um princípio de que a massa que está no tráfico não vai para lugar nenhum, vai para outro crime. Talvez seja hora de olhar que massa é essa.<br />
<strong>ConJur</strong><strong> — Por outro lado, a regulamentação das drogas não poderia abrir oportunidades de trabalho no mercado legal delas?</strong><br />
<strong><strong>Marcelo Freixo</strong></strong> — Claro que sim. O tabaco e o álcool não empregam ninguém? Isso não é estímulo ao consumo de drogas, o senso comum precisa ser quebrado. A droga precisa ser pensada enquanto saúde pública, enquanto problema social. É preciso acabar com a hipocrisia de que a droga ilegal não é consumida. Isso não é verdade.<br />
<strong>ConJur</strong><strong> — Um <a href=levantamento do CNJ mostra que 24,4% dos condenados voltam a cometer crimes em até cinco anos. Como diminuir essa taxa de reincidência?
Marcelo Freixo — Em alguns lugares esse percentual é muito maior. Este número está sendo otimista. No Rio de Janeiro, o último percentual que eu tive era de 75%. Um cara é preso por 10 anos. Esse cara perde a família, porque as mulheres não aceitam passar por revista vexatória. Esse cara não estudou, não trabalhou. Ele sai da prisão sem receber documento. Vai para a rua depois de cumprir pena de 10 anos e, teoricamente, ele tem que arrumar um emprego para seguir a vida. O que você acha que vai acontecer? A taxa de reincidência reflete o que se faz no tempo da prisão. Tem uma questão central nisso que é o mito da ressocialização. Isso vem da sociologia norte-americana, que parte do princípio que a sociedade é ótima, equilibrada. Quando o sujeito erra, ele é encarcerado, a prisão o conserta e depois ele é devolvido para a sociedade. Não é assim. Se você tranca uma pessoa e a isola da sociedade, ela vai voltar pior. Ela voltar melhor é um milagre. Precisamos mudar as regras das prisões, mudar o cotidiano delas, construir políticas públicas eficazes para que esse resultado seja diferente. Eu tenho essa experiência de perto, afinal, trabalhei com educação na prisão durante muitos anos na minha vida. O grau de reincidência entre os presos que trabalhavam na escola conosco era mínimo. O grau de reincidência nas penas alternativas é muito menor, todas as pesquisas mostram isso.
ConJur — A cada novo crime de grande repercussão ou onda de crimes aparece a mesma sugestão de sempre: aumentar penas. Afinal, aumentar penas reduz a criminalidade?
Marcelo Freixo — Se fosse assim, se prisão resolvesse, já estávamos como a Suécia. E não estamos. Temos a polícia que mais mata e mais morre, temos a maior taxa de crescimento carcerário. E isso resolveu a criminalidade? Pronto. Os números mostram isso. Tem que haver prisão? Tem. Mas tem que haver prisão para casos muito específicos. A prisão não pode ser um espaço de detenção de quem sobrou numa sociedade de mercado. E não estou dizendo com isso que possa existir uma sociedade que não tenha mercado, antes que me acusem de esquerdopata.
ConJur — O Brasil tem quase 60 mil homicídios por ano. Como diminuir esse número?
Marcelo Freixo — Quem são esses mortos? Jovens e negros são a maioria esmagadora deles. E muitos homicídios também são cometidos por jovens e negros. É uma tragédia social. É pobre matando pobre.
ConJur — O que poderia ser feito?
Marcelo Freixo — Aí tem diversas questões, mas é preciso, mais uma vez, falar sobre o tráfico de drogas. A guerra às drogas é em territórios pobres. Se você está em guerra, seu objetivo é matar o inimigo. Não estamos precisando de guerra, né? Além disso, boa parte dos homicídios no Brasil é causado por armas de fogo. Tem um estudo interessante que aponta que mais de 80% desses homicídios acontecem por armas de pequeno porte produzidas no Brasil. Então existe esse problema das fronteiras que tanto falam? Existe, mas os homicídios ocorrem, em sua grande maioria, por armas produzidas aqui, por munição produzida aqui, sobre as quais não temos nenhum controle. Assim, ter uma política de controle das armas que circulam na sociedade é fundamental para a redução de homicídios.
ConJur — E diminuir o número de mortes de policiais, que também é o maior do mundo?
Marcelo Freixo — Temos a polícia que mais mata e a que mais morre. Por quê? Porque há uma lógica de guerra. Uma lógica dos “matáveis”. Você pode atirar à vontade. Acabou de acontecer uma tragédia no Rio de Janeiro: um menino de dois anos tomou um tiro em um parquinho porque estava tendo uma perseguição com tiro. Isso ocorre porque aquele perseguido é um “matável”, daí pode atirar nele, em qualquer lugar. Essa lógica não traz nenhum benefício para a sociedade. Nós temos vários casos como esse. E não é o aumento da circulação de armas que vai resolver esse problema. A polícia precisa ser mais bem treinada, mais preparada. A polícia tem que sair da lógica da guerra. A desmilitarização da polícia segue o modelo do mundo inteiro. O atual formato da Polícia Militar é oriundo da ditadura. E desmilitarizar a polícia não é desarmá-la, como algumas pessoas entendem. É mudar a lógica de funcionamento da polícia. É um modelo mais eficaz, mais próximo de uma democracia.
ConJur — Esse cenário de aumento constante da criminalidade, cumulado com a espetacularização da operação “lava jato”, faz com que os brasileiros passem a desprezar ainda mais o direito de defesa e os direitos humanos?
Marcelo Freixo — Se quisermos ter uma democracia, é fundamental que repensemos os direitos humanos. Tem uma camada da sociedade que é “sobrante”. O [sociólogo polonês] Zygmunt Bauman, que acabamos de perder, falava que eles são os “supérfluos”, os “sobrantes” dessa sociedade líquida. Na Europa, essa despersonificação ocorre com os imigrantes. Aqui, com os imigrantes das cidades, aqueles que estão fora dos centros. Se não conseguirmos mudar o paradigma de defesa dos direitos humanos, se não superarmos essa lógica de que “direitos humanos é proteção de bandido”, não avançaremos na democracia. E qual é o papel do Judiciário nisso? Como disse [o poeta alemão] Bertolt Brecht, “infeliz é o povo que precisa de heróis”. Tem juízes que precisam se lembrar disso. A salvação da democracia não está no Judiciário, assim como não está no Legislativo ou no Executivo. Eu não acho que o Judiciário seja um Poder menos corrupto ou mais corrupto, mas é um Poder que também tem suas contradições, como o Legislativo e o Executivo. O fato é que o Judiciário tem muito pouco controle, e sobre ele temos muito pouco conhecimento. A sociedade sabe quem são os deputados, sabe quem são os governadores, mas não sabe quem são os desembargadores, não sabe quem são os juízes. O Judiciário não é transparente. E o Judiciário é o único Poder cujos integrantes não são eleitos por voto. É muito perigosa uma sociedade que coloca quem não tem voto acima de todos. Nós superamos a Constituição de 1824, não existe mais Poder Moderador. Mas há juízes que acham que estão no Poder Moderador do Império. O Judiciário é muito importante para a democracia brasileira. Tenho profunda admiração pelo trabalho de alguns juízes. Mas os magistrados precisam entender que fazem parte de um sistema que não se limita às suas canetas.
Fonte: www.conjur.com.br

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