Melhor forma de combater facções é cumprir as leis no sistema penitenciário
Por Sérgio Rodas
*Este é o quarto texto da série produzida pelaConJur sobre a relação entre a guerra às drogas e a superlotação dos presídios. Para ler os outros textos, clique aqui.
As olheiras, barba por fazer e resfriado não disfarçam: o deputado estadual do Rio de Janeiro Marcelo Freixo (Psol) está cansado. Cansado pela corrida à Prefeitura da capital, a qual perdeu no segundo turno para Marcello Crivella (PRB). Cansado por ter ignorado o recesso de fim de ano da Assembleia Legislativa do Rio e continuado com a agenda cheia em dezembro e janeiro, quando recebeu a ConJur. Porém, principalmente, segundo ele próprio, cansado de assistir à sociedade, governantes, parlamentares e magistrados proporem as mesmas medidas ineficazes de sempre para combater as facções criminosas e a crise carcerária.
levantamento do CNJ mostra que 24,4% dos condenados voltam a cometer crimes em até cinco anos. Como diminuir essa taxa de reincidência?
Marcelo Freixo — Em alguns lugares esse percentual é muito maior. Este número está sendo otimista. No Rio de Janeiro, o último percentual que eu tive era de 75%. Um cara é preso por 10 anos. Esse cara perde a família, porque as mulheres não aceitam passar por revista vexatória. Esse cara não estudou, não trabalhou. Ele sai da prisão sem receber documento. Vai para a rua depois de cumprir pena de 10 anos e, teoricamente, ele tem que arrumar um emprego para seguir a vida. O que você acha que vai acontecer? A taxa de reincidência reflete o que se faz no tempo da prisão. Tem uma questão central nisso que é o mito da ressocialização. Isso vem da sociologia norte-americana, que parte do princípio que a sociedade é ótima, equilibrada. Quando o sujeito erra, ele é encarcerado, a prisão o conserta e depois ele é devolvido para a sociedade. Não é assim. Se você tranca uma pessoa e a isola da sociedade, ela vai voltar pior. Ela voltar melhor é um milagre. Precisamos mudar as regras das prisões, mudar o cotidiano delas, construir políticas públicas eficazes para que esse resultado seja diferente. Eu tenho essa experiência de perto, afinal, trabalhei com educação na prisão durante muitos anos na minha vida. O grau de reincidência entre os presos que trabalhavam na escola conosco era mínimo. O grau de reincidência nas penas alternativas é muito menor, todas as pesquisas mostram isso.
ConJur — A cada novo crime de grande repercussão ou onda de crimes aparece a mesma sugestão de sempre: aumentar penas. Afinal, aumentar penas reduz a criminalidade?
Marcelo Freixo — Se fosse assim, se prisão resolvesse, já estávamos como a Suécia. E não estamos. Temos a polícia que mais mata e mais morre, temos a maior taxa de crescimento carcerário. E isso resolveu a criminalidade? Pronto. Os números mostram isso. Tem que haver prisão? Tem. Mas tem que haver prisão para casos muito específicos. A prisão não pode ser um espaço de detenção de quem sobrou numa sociedade de mercado. E não estou dizendo com isso que possa existir uma sociedade que não tenha mercado, antes que me acusem de esquerdopata.
ConJur — O Brasil tem quase 60 mil homicídios por ano. Como diminuir esse número?
Marcelo Freixo — Quem são esses mortos? Jovens e negros são a maioria esmagadora deles. E muitos homicídios também são cometidos por jovens e negros. É uma tragédia social. É pobre matando pobre.
ConJur — O que poderia ser feito?
Marcelo Freixo — Aí tem diversas questões, mas é preciso, mais uma vez, falar sobre o tráfico de drogas. A guerra às drogas é em territórios pobres. Se você está em guerra, seu objetivo é matar o inimigo. Não estamos precisando de guerra, né? Além disso, boa parte dos homicídios no Brasil é causado por armas de fogo. Tem um estudo interessante que aponta que mais de 80% desses homicídios acontecem por armas de pequeno porte produzidas no Brasil. Então existe esse problema das fronteiras que tanto falam? Existe, mas os homicídios ocorrem, em sua grande maioria, por armas produzidas aqui, por munição produzida aqui, sobre as quais não temos nenhum controle. Assim, ter uma política de controle das armas que circulam na sociedade é fundamental para a redução de homicídios.
ConJur — E diminuir o número de mortes de policiais, que também é o maior do mundo?
Marcelo Freixo — Temos a polícia que mais mata e a que mais morre. Por quê? Porque há uma lógica de guerra. Uma lógica dos “matáveis”. Você pode atirar à vontade. Acabou de acontecer uma tragédia no Rio de Janeiro: um menino de dois anos tomou um tiro em um parquinho porque estava tendo uma perseguição com tiro. Isso ocorre porque aquele perseguido é um “matável”, daí pode atirar nele, em qualquer lugar. Essa lógica não traz nenhum benefício para a sociedade. Nós temos vários casos como esse. E não é o aumento da circulação de armas que vai resolver esse problema. A polícia precisa ser mais bem treinada, mais preparada. A polícia tem que sair da lógica da guerra. A desmilitarização da polícia segue o modelo do mundo inteiro. O atual formato da Polícia Militar é oriundo da ditadura. E desmilitarizar a polícia não é desarmá-la, como algumas pessoas entendem. É mudar a lógica de funcionamento da polícia. É um modelo mais eficaz, mais próximo de uma democracia.
ConJur — Esse cenário de aumento constante da criminalidade, cumulado com a espetacularização da operação “lava jato”, faz com que os brasileiros passem a desprezar ainda mais o direito de defesa e os direitos humanos?
Marcelo Freixo — Se quisermos ter uma democracia, é fundamental que repensemos os direitos humanos. Tem uma camada da sociedade que é “sobrante”. O [sociólogo polonês] Zygmunt Bauman, que acabamos de perder, falava que eles são os “supérfluos”, os “sobrantes” dessa sociedade líquida. Na Europa, essa despersonificação ocorre com os imigrantes. Aqui, com os imigrantes das cidades, aqueles que estão fora dos centros. Se não conseguirmos mudar o paradigma de defesa dos direitos humanos, se não superarmos essa lógica de que “direitos humanos é proteção de bandido”, não avançaremos na democracia. E qual é o papel do Judiciário nisso? Como disse [o poeta alemão] Bertolt Brecht, “infeliz é o povo que precisa de heróis”. Tem juízes que precisam se lembrar disso. A salvação da democracia não está no Judiciário, assim como não está no Legislativo ou no Executivo. Eu não acho que o Judiciário seja um Poder menos corrupto ou mais corrupto, mas é um Poder que também tem suas contradições, como o Legislativo e o Executivo. O fato é que o Judiciário tem muito pouco controle, e sobre ele temos muito pouco conhecimento. A sociedade sabe quem são os deputados, sabe quem são os governadores, mas não sabe quem são os desembargadores, não sabe quem são os juízes. O Judiciário não é transparente. E o Judiciário é o único Poder cujos integrantes não são eleitos por voto. É muito perigosa uma sociedade que coloca quem não tem voto acima de todos. Nós superamos a Constituição de 1824, não existe mais Poder Moderador. Mas há juízes que acham que estão no Poder Moderador do Império. O Judiciário é muito importante para a democracia brasileira. Tenho profunda admiração pelo trabalho de alguns juízes. Mas os magistrados precisam entender que fazem parte de um sistema que não se limita às suas canetas.
Fonte: www.conjur.com.br