Violência doméstica é desafio constante aos paradigmas
Por Ricardo Prado Pires de Campos
Interior de São Paulo, anos atrás, uma mulher procura a polícia e relata que foi agredida pelo marido. O delegado instaura o inquérito, e ela é submetida a exame de corpo de delito. Resultado: hematoma na região orbital. Ela tomara um soco no rosto, e o laudo pericial atestava isso.
Ofereci a denúncia, e o processo foi instaurado. Na audiência, em juízo, no entanto, a mulher, que já se reconciliara com o agressor, disse que havia caído e batido o rosto no canto da mesa. Pedi a condenação, mas o juiz absolveu porque não havia testemunha do fato, e a vítima havia se retratado.
Recorri. O advogado sustentou que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”; e o tribunal manteve a absolvição.
De lá para cá, muita coisa mudou. A sociedade tem sofrido mudanças numa velocidade inimaginável, mas, ainda assim, certas ideias, certos conceitos, de tão enraizados, são difíceis de mudar.
Passados 30 anos, a sociedade dá alguns sinais de mudança, mas a resistência é muito forte.
Foi preciso chegar a uma condenação internacional do país para que a Lei 11.340, de 2006, fosse editada. Levou o nome de Maria da Penha, em homenagem à vítima da violência doméstica que se tornou o símbolo da luta contra essa crueldade institucionalizada.
A primeira grande mudança de paradigma foi feita pela própria Maria da Penha ao convencer o governo, através da condenação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que o Estado tinha de intervir nessa realidade: a agressão, mesmo dentro do lar, não poderia ser tolerada, tinha de ser combatida. Em briga de marido e mulher, era preciso meter a colher sempre que a briga descambasse para atos de violência.
Essa luta foi vencida com a edição da Lei 11.340, de 2006.
O segundo grande desafio era convencer os órgãos do Estado de que essa lei deveria ser aplicada de forma efetiva, e, para isso, o Supremo Tribunal Federal teve de mudar a própria lei.
Embora a lei trouxesse muitos avanços, ela mantinha um sistema de sabotagem ao estabelecer que a ação penal seria pública, condicionada à representação (artigo 16). Ao prever que a vítima poderia se retratar, em audiência judicial prévia, o sistema criava um obstáculo intransponível na maioria dos casos.
Precisou a intervenção do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a ação penal como pública incondicionada, nos casos de violência doméstica, para poder dar efetividade aos mandamentos da nova lei.
Ementa – AÇÃO PENAL – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER – LESÃO CORPORAL – NATUREZA. A ação penal relativa a lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada – considerações (STF – ADI 4.424/DF – relator min. Marco Aurélio – Tribunal Pleno – j. 9/2/2012).
Estabelecida a premissa maior, outros fatores, ainda, continuam a impedir a incidência da lei, criando obstáculos à sua eficácia em muitos casos. Vejamos alguns.
Primeiro obstáculo: exigência de inquérito policial para concessão das medidas protetivas de urgência. Essa exigência não tem fundamento na legislação vigente. As hipóteses de violência doméstica são bastante amplas e incluem violência psicológica, sexual, patrimonial, moral, e não apenas física (artigo 7º). As medidas podem ser concedidas através de mero “expediente” (artigos 12, III, e 18), em geral, representado pelo pedido de concessão das medidas, acompanhado das declarações da ofendida ou do boletim de ocorrência (TJ-SP – MS 2.245.931-52.2016.8.26.0000 – rel. des. Cardoso Perpétuo – j. 26/1/2017).
Necessário ressaltar que a Lei Maria da Penha, nesse aspecto, rompe outro paradigma da Justiça: a separação tradicional entre juízo civil e criminal. A lei tem disposições sobre ambos os temas e os atribui ao mesmo juízo (artigos 14 e 33). De maneira que os juízes criminais precisam estar atentos. As regras e os princípios que se aplicam às demais matérias criminais nem sempre podem ser aplicados na interpretação da Lei Maria da Penha.
Segundo obstáculo: exigência de testemunhas. A violência doméstica, em geral, é cometida entre quatro paredes, não costuma possuir testemunhas. Isso, todavia, não impede a ação da Justiça, seja concedendo as medidas protetivas, seja instaurando ações penais contra os agressores. Na maioria das vezes, o acusado acaba admitindo a agressão ao tentar justificar sua conduta; e os laudos de exame de corpo de delito, se bem interpretados, são ótimas testemunhas. “O corpo fala, se soubermos ouvir”, dizia um dos maiores médicos legistas desse país.
Terceiro obstáculo: interpretação da dúvida. In dubio pro reo, costuma repetir a praxe forense. No momento da sentença, está correto; mas na hora da concessão das medidas protetivas de urgência, não. Aqui, na dúvida é preciso agir.
Mandado de segurança – Injúria no âmbito de violência doméstica e familiar contra a mulher – Impetrante, assistida pela Defensoria Pública, que se insurge contra o indeferimento de pedido de concessão de medidas protetivas – Impetrante que tem sua rotina controlada pelo companheiro, inclusive horários de trabalho, […] – Companheiro que humilha a Impetrante em público com piadas pejorativas e que a injuriou com palavras de baixo calão, […] – Decisão impetrada que negou a concessão de medidas protetivas por entender que houve demora entre os fatos que configuraram a injúria e a ida da impetrante à Delegacia da Mulher, além de ter considerado a questão ‘matéria de Direito de Família’ – […] Impetrante em situação de violência psicológica e moral, nos termos do art.7º, incisos II e V, da Lei nº 11.340/06, com direito à tutela – Parecer da douta Procuradoria Geral de Justiça no mesmo sentido, adotado também como razões de decidir – Segurança concedida para fixar as medidas protetivas tal como pleiteadas, intimando-se […] (TJ-SP – MS 2224843-55.2016.8.26.0000 – 8ª C.D.Crim – relª desª ELY AMIOKA – j. 15/12/2016).
As medidas protetivas de urgência são uma das maiores inovações da Lei Maria da Penha. Instrumento poderoso para evitar a manutenção do ciclo de violência e, por vezes, que o conflito se transforme em tragédia.
Não há nenhuma razão que justifique indeferir o pedido de afastamento do agressor em relação à ofendida e de que ele seja proibido de se comunicar diretamente com ela (artigo 22, III). Quando a mulher fala em separação, e o homem não aceita, o que se segue, muitas vezes, são cenas de humilhação, xingamentos, ameaças e agressões. A criação de um muro de proteção, entre as partes, é extremamente salutar nesses casos.
Portanto, quando a mulher vai até um órgão público pedindo proteção contra alguém que ela conhece razoavelmente bem, cumpre atendê-la, sob pena de comprometer a eficácia do sistema de proteção criado pela lei de combate à violência doméstica.
Um parêntesis necessário: claro que há algumas mulheres que querem se aproveitar da legislação protetiva, para finalidades não nobres, mas, além de serem escassa minoria, é possível perceber seus movimentos, em geral, na busca de vantagens patrimoniais.
A maioria das vítimas é constituída de pessoas simples e desprotegidas, e isso é muito fácil de identificar.
Além do que, todas têm o direito de não serem incomodadas por alguém cuja convivência não mais se pretende (artigo 5º, II, CF). No caso da existência de filhos menores, a situação cria um complicador, mas, mesmo aqui, é possível manter o distanciamento do casal, bastando que se imponha um terceiro para os momentos de transferência da guarda.
Por fim, também, no uso da prisão preventiva, é preciso romper paradigmas (artigo 20). Os crimes praticados no âmbito doméstico, em geral, possuem penas diminutas: lesão leve, ameaça, constrangimento ilegal, violação de domicílio (quando já separados), o que poderia impedir a prisão antes da condenação.
O princípio da presunção de inocência, o provável regime aberto para cumprimento da pena, associados a uma eventual desproporcionalidade, seriam impedimentos para decretar a preventiva nessas hipóteses.
Não foi sem razão, todavia, que o legislador permitiu a custódia cautelar, se descumprida a medida protetiva (CPP, artigo 313, III). Muitas vezes, a criação de um muro legal, psicológico, e as obrigações de distanciamento não são suficientes para conter o ímpeto do agressor. Alguns, nem todos, ficam extremamente violentos quando contrariados em sua vontade, que entendem soberana. Nessas hipóteses, quando há o transbordamento da agressividade para atos de violência ou risco de tragédia, a contenção se faz necessária. E aí o muro de contenção deve ser físico, intransponível.
O tempo de duração da preventiva deve ser avaliado cuidadosamente pelo juiz, e depende, em verdade, do próprio agressor. Quando o agente percebe que a separação é inevitável, que ele perdeu aquela mulher definitivamente, que não há retorno, então, ele terá condições de retomar sua vida. Enquanto não aceita a separação, ele se constitui em risco potencial para a mulher.
É preciso entender essa lógica: a prisão nos casos da Lei Maria da Penha não é necessária para punir o agressor (condenação após sentença), mas é imprescindível para impedir que ele continue agredindo a vítima (preventiva) e chegue ao feminicídio. Outro paradigma a desconstruir.
Ementa – HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER. AMEAÇA COM ARMA BRANCA. PRISÃO EM FLAGRANTE CONVERTIDA EM PREVENTIVA. GRAVIDADE CONCRETA DAS CONDUTAS. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. MODUS OPERANDI. ASSEGURAMENTO DA SEGURANÇA FÍSICA E PSÍQUICA DA VÍTIMA. RISCO CONCRETO. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. PREDICADOS PESSOAIS FAVORÁVEIS. IRRELEVÂNCIA. MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS. INSUFICIÊNCIA (STJ – HC 389.022/RJ – 6ª Turma – relator min. Antonio Saldanha Palheiro – j. 4/4/2017).
Fonte: www.conjur.com.br