Em novo livro, Lenio Streck mostra que Direito não é somente estratégia
Por Georges Abboud, Clarissa Tassinari e Ziel Ferreira Lopes
O quanto podemos aprender através de uma entrevista? Muito. Chega-se rápido a essa conclusão depois da leitura do livro recém-lançado Hermenêutica e Jurisdição: diálogos com Lenio Streck (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017), no qual o professor é entrevistado por um qualificado time de juristas.
A proposta é trazer uma conversa franca sobre a crítica hermenêutica do Direito, apresentando-a de uma maneira coloquial, acessível ao grande público, mas com elementos de profundidade teórica sempre que necessário, sem evitar polêmicas ou pontos espinhosos.
Para quem deseja se aventurar nessa leitura, o livro se divide em quatro importantes partes: 1) sobre a crise do ensino jurídico; 2) sobre a crítica hermenêutica do Direito; 3) sobre a decisão judicial e a realidade brasileira; e 4) sobre o processo judicial.
Para dar voz a diferentes preocupações, formam a equipe dos entrevistadores: Bianor Arruda Bezerra Neto, juiz federal, mestre e doutor em Direito (PUC-SP); Daniel Ortiz Matos, mestre e doutorando em Direito (Unisinos), bolsista Capes; Rafael Giorgio Dalla Barba, mestrando em Direito (Unisinos) e bolsista Capes; e Diego Ribeiro, editor do blog Tribuna do Jurista, mestrando em Direito na UFF e bolsista Capes.
É interessante perceber o quanto a biografia do entrevistado faz parte da construção da resposta a inúmeros questionamentos. Streck falará ao leitor de sua trajetória: seu ingresso na faculdade, a luta pela democratização, a Constituição de 1988 (pela qual foi “recepcionado”, como ele mesmo brinca), a pós-graduação, seus estudos sobre analítica e semiologia e a crítica ao pensamento jurídico tradicional com Luis Alberto Warat e Leonel Severo Rocha.
Nesse sentido, um dos principais pontos de partida é a descoberta de Heidegger e Gadamer, e a amizade providencial com o filósofo Ernildo Stein. Com estes autores, Streck esboçaria as primeiras tentativas de pensar a ciência jurídica no Brasil a partir do paradigma hermenêutico.
Ocorre-lhe que “A partir da hermenêutica, não há mais espaço para qualquer tipo de raciocínios que levam à discricionariedade judicial, justamente pelo fato de ter superado o problema filosófico que aí se instaura, o solipsismo” (p. 109-110).
Não há mais espaço para o “decido-conforme a-minha-consciência”, a atribuição arbitrária de sentidos, quando nos reconhecemos pertencentes a uma comunidade interpretativa. Podemos dizer com o poeta Hölderlin, num verso muito apreciado por Heidegger: “Desde que somos Palabra-en-diálogo/Y podemos Ias unos oír a Ias otros”.
Em torno disso, Streck desenvolve um quadro referencial próprio, com sua Teoria da Decisão, da Norma e da Constituição. Em 1999, surge, então, a sua “obra de base”, o Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, hoje na sua 11ª edição. Neste período, Lenio se torna professor no PPGD da Unisinos e funda o Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.
Com o desenvolvimento de seus projetos, à base hermenêutica se incorporam, também, elementos da teoria de Ronald Dworkin, sobretudo no que se refere às críticas ao decisionismo judicial. O grande ponto de encontro entre Gadamer e Dworkin estaria na defesa de verdades na interpretação, possibilitando uma iluminação recíproca de seus pensamentos.
A partir disso, a CHD trava debates com adeptos da Teoria Discursiva do Direito, que dão origem à obra mais complexa de Streck: Verdade e Consenso. O clássico embate entre procedimentalismo e substancialismo é revivido aqui, com grande sensibilidade de ambas as partes para os nossos problemas locais.
Aqui reside um dos pontos altos da teoria de Lenio, uma vez que ela não se limita a importar conceitos teóricos de Gadamer, Dworkin e demais pensadores, ele efetua verdadeiro abrasileiramento-hermenêutico dessas teorias para conforma-las à realidade brasileira.
Aos poucos, a CHD se consolida com suas teses fundamentais, tornando-se matriz teórica para pensar o fenômeno jurídico – influenciando pesquisas em diversos PPGD’s e, até mesmo, processos legislativos, como é o caso da recente modificação legislativa que o Brasil vivenciou no processo civil. Contudo, este até parece ser, mas não é o fim da história. A solidez da proposta não simboliza um fechamento – mas abertura para novas reflexões.
Aliás, é a situação da CHD, com que se chega a novos temas, problemas e interlocutores. E isso tudo aparece bem no livro, em que, por sinal, Streck critica qualquer sonho de “teoria jurídica insuperável”: […] “na realidade eu diria até que isto é anti-hermenêutico, diante de nossa finitude e de estarmos lançados na facticidade em que sempre algo nos escapa” (p. 123).
A chegada deste livro é alvissareira: esclarece, aprofunda e acrescenta a abordagem inédita sobre alguns temas. Pela receptividade dos alunos, pode ser considerado uma iniciação à hermenêutica, pois permite que, através da dinâmica de perguntas e respostas, assuntos complicados sejam diluídos numa conversa com bom humor.
Assim, o livro proporciona um “ir direto ao ponto”, em que o autor firma seu pressuposto teórico diante de velhas confusões que permeiam algumas críticas à CHD, como as acusações de que seria contra os juízes, de que aplicar a lei seria positivismo, de que heideggerianiza/gadamerianiza o direito, além de tocar em pontos sensíveis, como a resposta sobre em que consiste a antropofagia que a CHD realiza quanto a Dworkin e sobre qual a relação entre direito e moral.
Por fim, a obra traz várias novidades, tanto nas frentes prático-dogmáticas como teóricas (mostrando sempre suas relações), como por exemplo: o debate com os novos positivismos e seus talentosos defensores locais; a processualística pós-novo CPC, sobretudo no que se refere a um sistema brasileiro de provimentos judiciais vinculantes; casos emblemáticos do direito brasileiro; algumas notas exploratórias sobre metaética (o que é e como esta disciplina vem impactando o debate jurídico) etc.
Trata-se de uma contribuição importante para estabelecer um debate produtivo entre os juristas brasileiros, propondo uma agenda comum: o aprofundamento do Estado Democrático de Direito. Isto aparece na CHD como controle interpretativo nas decisões públicas, guiando reformas da nossa estrutura institucional, mas, sobretudo, da nossa estrutura de pensamento.
Em outras palavras: para além de discutir quem decide, muitas vezes apenas deslocando o voluntarismo de lugar, precisamos discutir como decide e o que decide. Se não fizermos isso, o Direito perderá sua autonomia, se esvaziando em puros jogos de poder.
Assim, se fôssemos resumir a um ponto a importância do livro, poderíamos dizer que ele trata da questão fulcral para o Direito contemporâneo: ele coloca a pergunta acerca de qual o lugar e a função da teoria do Direito.
Ao longo da obra, Lenio fornece diversas sendas pelas quais a teoria do Direito pode ser descoberta como elemento muito mais do que descritivo, e sim normativo. Portanto, a teoria do Direito não apenas faria a fotografia, mas apontaria os equívocos do Direito contemporâneo, bem como ofereceria caminhos para a compreensão e aplicação do Direito.
Em suma, o livro é tão contemporâneo que dialoga até mesmo com Markus Gabriel e sua ontologia transcendental. A CHD e o novo realismo de M. Gabriel têm diversos pontos em comum: a aposta na hermenêutica, o adeus à filosofia como teoria do conhecimento — afinal, filosofia é ontologia, o que significa que os sentidos não dependem dos sujeitos.
Por essa razão, nossa conclusão de certo modo, parafraseia Markus Gabriel, que combate o construtivismo com a finalidade de demonstrar ser equivocada a ideia de que não podemos determinar um fato em si, uma vez que todos os fatos são construídos por nós. Gabriel demonstra que o simples fato de registrarmos algo de formas diferentes não significa que nós o geramos.
É o filósofo contemporâneo destruindo o relativismo; na CHD, Lenio combate esse mesmo relativismo fazendo filosofia no Direito, demonstrando que não podemos dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa, que a tradição nos antecede e, assim, que o Direito não pode ser apenas estratégia e produto de subjetivismos.
A partir da CHD, compreendemos o porquê da necessidade de existirem respostas jurídicas melhores (constitucionalmente adequadas) do que outras.
Fonte: www.conjur.com.br