LIMITE PENAL – Quando se fala de verdade no processo penal, do que se fala?
“Os nomes são palavras vãs, e nos ordenamentos dos Estados se verifica em demasia a cínica sentença de TALLEYRAND, de que Deus dotou o homem com a palavra para esconder a verdade. Em sentido absoluto, esta proposição é uma blasfêmia, e eu não a aceito. Mas TALLEYRAND considerava os estatutos políticos, e nesse ponto de vista a sua sentença é, frequentemente, uma tristíssima verdade. De nomes abusaram frequentemente os governantes para mistificar o povo, apresentando-lhe uma instituição odiosa sob color de palavra atraente. E o povo iludido aceitou, reconhecendo o engano somente quando a opressão dos fatos lhe fez sentir a realidade escondida sob aquela palavra“
A inspiração para o presente texto, que vai um tanto em forma de brainstorming, veio daquele brilhante e coerente apresentado na Coluna Limite Penal, nesta ConJur, em 19/6, pelas colegas Janaina Matida, Marcella Mascarenhas Nardelli e Rachel Herdy, sob o título “No processo penal, a verdade dos fatos é garantia”. A questão não é simples e merece reflexões sérias de quem aceita pensar sobre o tema, embora sempre dentro de suas limitações; e mostra por que a dogmática do processo penal não pode ser ensimesmada, autorreflexiva e acrítica.
Por isso — e talvez antes de tudo —, é salutar entender que quem deseja falar de Direito Processual Penal (e isso é sempre possível ainda mais agora que está em voga) precisa ter uma certa precisão teórica e seus fundamentos; e os fundamentos dos fundamentos; e isso implica dialogar com a base teórica e filosófica dele, assim como com o cotidiano do foro, além de tudo o mais como o ambiente etc.
Como sabem todos, o objetivo daqueles que defendem a Verdade/verdade no processo penal é, aparentemente, o mesmo, qual seja, ter-se uma justiça melhor. A divergência que aparece desde logo, porém, diz respeito à concreta possibilidade de se alcançar tal objetivo; e mostra que o referido aparentemente não é em vão, pois, desde logo, percebe-se que há algo escondido no discurso da Verdade/verdade de alguns, transformando-os em lobos em peles de cordeiros.
As autoras — claro — não estão nesse grupo, embora — tudo indica — acreditem na Verdade/verdade, o que se pode ver pela assertiva do título: “a verdade dos fatos é garantia”. Restaria saber de que Verdade/verdade se trata, dado se poder ter presente que o escopo delas liga-se aos anseios democráticos do processo penal — junto com todos que pensam assim — quando almejam a “garantia”; logo, contrapondo-se aos antigarantistas. Elas (que trabalham seriamente com a epistemologia), contudo, não param aí e, para surpresa de muitos processualistas penais, afirmam “que a busca pela verdade está a serviço do direito de defesa, em toda a sua amplitude”. Alguns, mais críticos, não gostaram, dado que entendem ter um longo caminho a ser percorrido para se poder concluir de tal modo, se é que é possível; e ele gira em torno da discussão da Verdade/verdade no processo penal. Afinal, quem sofre na carne a força do chicote não acredita que basta mudar o couro do açoite.
Para tentar entender a situação, pareceu precisa a manifestação de Gustavo Badaró em uma rede social: “É difícil para os processualistas penais aceitarem a importância da verdade como uma ideia regulativa do sistema, mesmo que o seu conhecimento pleno seja inatingível”. A frase do Titular da USP (que também trabalha com a epistemologia) por si só já basta para colocar em xeque o fundamento do fundamento do texto, ou seja, a questão da Verdade/verdade conforme trazida, para o processo penal, a partir da epistemologia. Gustavo Badaró, como sói acontecer, foi honesto, razão por que, dentre outras, é respeitado por todos.
Veja-se.
De que Verdade se trata e o discurso da Verdade/verdade
“É difícil para os processualistas penais aceitarem a importância da verdade como uma ideia regulativa do sistema”, disse o estimado professor. E não aceitam mesmo — de modo geral, diga-se — porque há quase 100 anos isso já está, no processo penal, de certa forma superado, salvo pelos que seguiram fazendo dele um mero ramo da Teoria Geral do Processo, da qual Aury Lopes Jr. tanto fala, com razão, inclusive por conta do presente tema.
Ora, começou em 1924 — repita-se: 1924! — a famosa polêmica Florian v. Carnelutti sobre a Verdade/verdade no processo penal. E todos deveriam conhecê-la. Foi em 1924, 1925 e 1926. Sem ela você não entende, por exemplo, a razão da disputa verdade material v. verdade formal.
Era um Carnelutti — vencedor, diga-se de passagem — que ainda acreditava na verdade, na forma do discurso que sempre se fez. E desde lá a questão ganhou novos contornos, salvo para quem, mesmo trabalhando com processo penal, não foi atrás e ficou ligado à TGP, muito confortavelmente centrada numa verdade formal ou algo assim. Taruffo que o diga.
Verdade formal ou seus aparentados (dentre elas a endoprocessual, como queria Hassemer, tão só para situar uma posição mais atual no processo penal) servem pouco para fundar algo mais realista, inclusive aos acusados, como querem os que acreditam na Verdade/verdade. Ao contrário, é justo ele (o discurso da Verdade/verdade) que dá lastro para essa gente dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa (Streck); e por isso se apresenta, sempre, como vago; e serve de esteio para qualquer leitura, sendo usado ideologicamente.
Então, aparentemente, com esse discurso, as pessoas pensam ser contra os antigarantistas, mas, no fundo, jogam no mesmo time deles, não só porque fazem o mesmo discurso como, por outro lado, justificam ou legitimam o que pregam ou fazem. O STF, por exemplo, diz o que é a verdade do processo; erra ou pode errar por último (como disse o ex-ministro Eros Grau, com honestidade); e quem pensa assim erra junto porque não tem argumento para dizer que a verdade dele não serve, a não ser que construa outra meia-verdade ou não-verdade ou inverdade. Só que, quem sabe, um pouco mais próxima do que deveria ser o conhecimento que se pode ter sobre o fato da vida.
Se assim é, há de se voltar para o ponto de partida, desde o lugar de quem vive o processo penal e não brinca com o resultado dele: tem algo lá (o crime, por exemplo), mas não se tem palavras para dizê-lo como um todo. O que tem lá só vem, pela linguagem, em partes; e elas não são o todo, logo, só são — pretensamente — o todo da parte; e o pretenso todo da parte não é senão o todo da parte e não o todo. Isso está, de certa forma, em um texto imprescindível de Carnelutti (já não mais o de 1925), no qual usa Heidegger: Verità, dubbio e certeza, de 1965, ao qual se pode anotar e onde está o original traduzido: (MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Glosas ao “Verdade, dúvida e certeza”, de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito. In Observações sobre a propedêutica processual penal. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2019, pp. 159-188).
Carnelutti é preciso: “Alguma coisa disso comecei a entender com a meditação sobre o conceito de parte, que constitui uma das bases do meu modo de pensar. E quem me ajudou, de um primeiro modo, ainda que fosse muito distante da meta obtida no escrito, que recordei há pouco, foi o filósofo Heidegger com aquela que foi, e deveria ser, a sua sinfonia incompleta: o “Sein und Zeit”, onde fala da Weltlichkeit der Sache, que me tocou profundamente e que traduzi, nas primeiras páginas dos Dialoghi con Francesco con universalità della cosa. Justamente porque a coisa é uma parte; ela é e não é; pode ser comparada a uma moeda sobre cuja cara está gravada o seu ser e, sobre a sua coroa, o seu não-ser. Mas para conhecer a verdade da coisa, ou digamos, precisamente, da parte, necessita-se conhecer, tanto a sua cara, quanto a sua coroa: uma rosa é uma rosa, ensinava a Francesco, porque não é alguma outra flor; queria dizer que para conhecer verdadeiramente a rosa, isto é, para chegar à verdade, é necessário conhecer não somente aquilo que a rosa é, mas também aquilo que ela não é. Por isso, a verdade de uma coisa nos foge até que nós não possamos conhecer todas as outras coisas e, assim, não podemos conseguir senão um conhecimento parcial dessa coisa. E quando digo uma coisa, refiro-me, também, a um homem. Em síntese, a verdade está no todo, não na parte; e o todo é demais para nós.”
Enfim, não se pode nominar a Verdade, mesmo porque se iria ao infinito. Mas para quem acredita no discurso da verdade, ela é — sim — possível; mesmo que não seja. E isso alcança garantistas e antigarantistas. Todos juntos, falando a mesma linguagem. Simples assim. Logo, se opostos se encontram de maneira tão substancial, algo está errado, fora da ordem; e o problema está em outro lugar.
Epistemologia e Verdade/verdade
A frase precitada, do professor Gustavo Badaró, tem uma segunda parte: “mesmo que o seu [da Verdade] conhecimento pleno seja inatingível.”
Ora, até quem defende a Verdade/verdade (como ele), fazendo o seu discurso, reconhece — ou há de reconhecer se for honesto — que o conhecimento pleno é inatingível; logo, todo o conhecimento. Mas, como se sabe, conhecimento é epistemologia, tratada por muitos como gnoseologia. Se a Verdade está no todo, e epistemologicamente não se consegue atingir esse todo, quando dela se fala não é dela que se trata. Simples assim, de novo.
Tenta-se — é possível perceber — conhecer pela parte (aquela que se pretende possível como verdade; e que não é a Verdade), mas isso se faz, pelo menos no texto das autoras, pela busca: “A busca pela verdade pode ser resumida…”. Mas seria mesmo “busca”? Enfim, isso é método! E Verdade/verdade não se discute com o verbo “buscar” e sim com o verbo “ser”: Veritas est… Sem isso não se define ou tenta definir como deve ser. Alivia-se (no texto) o peso da posição, fazendo-a aparecer como uma tentativa. Isso, porém, diz pouco, pois, o que importa, é se é ou não é. Se é uma tentativa pode não ser; e aí naufraga tudo. Ora, sempre pode naufragar, de fato, tudo, se se fala de algo que não daquilo que se não apresenta. A linguagem, contudo, falseia o objeto tão só até certo ponto, justo porque os significantes deslizam e não dão conta dos significados. Saussure, Jakobson e Lacan teriam muito a dizer neste ponto.
Em suma, fala-se da Verdade/verdade mas não se diz claramente o que ela é. Sabe-se, todavia, que seguindo os epistemólogos, estão falando de correlação; ou tentando: “A busca pela verdade pode ser resumida como a tentativa de fazer corresponder a premissa fática do raciocínio judicial com os fatos como efetivamente ocorreram”. Ocorre que a própria correlação deveria ser explicitada, pelo menos para se poder saber de qual se trata. Se for Aristóteles, por exemplo, já complica. Mas se não é, então é Platão? Agostinho? São Tomás? Não? Então é Tarski?
Mas ele (Tarski) não parece ser bem assim, do que é possível lembrar; e exige que o enunciado (a base é sempre analítica, ao que parece) deve ser satisfeito por todos os objetos, do contrário será falso. Logo, ele não se presta para mostrar o que se passa no processo penal, a não ser para se ter que reconhecer que nunca todos os objetos avalizam o conhecimento que nele entra. Afinal, qualquer um sabe que pela prova vem sempre produzida uma parcialidade (eis a resistência dos processualistas penais antes referidos) e, assim, tem-se, quando muito, algo para se fazer um discurso (de todo falso) sobre uma verdade formal ou endoprocessual que o intérprete (preponderante o que tem poder) diz qual é; e tudo segue como sempre em face desse discurso solto de um fio desencapado. E todos os defensores disso, juntos.
Enfim, aquela “busca pela verdade que pode ser resumida” não é feliz. Não é de busca que se deveria tratar e para o fim almejado, a correlação parece não servir; por sinal, no próprio Aristóteles se pode ver isso; da mesma forma como se pode ver pelo lugar que ele (Aristóteles) dá aos sofistas e à dialética a partir de outra leitura deles, como mostra Dussel de forma primorosa no capítulo primeiro da Filosofia da Libertação. Em suma, se no texto vale a posição de Tarski — com seu esforço na direção do “a neve branca” —, logo tal postura, pelo menos no processo penal, parece perder força.
Por sinal, o jogo lógico da afirmação dele pararia no Orhan Pamuk, o Nobel de Literatura de 2006. Nele, a neve é verdade, mesmo que não seja branca. Mas há de se deixar Tarski para se ir a alguém mais pesado — quem sabe — e que vai no coração do problema sem brincar com a linguagem, quando fala da morte: Heidegger. Ora, como sabem todos, no parágrafo 52 do Ser e Tempo vem afirmada a possibilidade da impossibilidade de todo existir, em face do fim do Dasein com a morte. É matéria, por evidente, para se ir adiante. Mas aqui o que interessa é que isso, quem sabe, pode ser lido no lugar da “parte”, na alternativa todo/parte — que seguramente é… durante a vida — e, para desmentir a possibilidade, veja-se o que diz a letra de uma música do saudoso Belchior chamada, salvo engano, “Sujeito de sorte”. Como dizia Freud (mais ou menos assim): os poetas não sabem o que dizem, mas sempre dizem antes. Ou algo assim. O estribilho de tal música diz:
“Tenho sangrado demais,
Tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri
Mas esse ano eu não morro.”
Ora, é uma brincadeira. Como em Tarski, há um falso problema que serve para a beleza da música mas, sobretudo, para mostrar a força construtiva da linguagem. Fazer correlação ali seria piada. Por sinal, é porque se faz que o absurdo se apresenta, como se vê em Camus, Sartre e outros. O Estrangeiro é, quem sabe, o mais notável exemplo de que a lógica rígida de uma “ciência jurídica” caolha, que acredita na verdade, produz: um réu (Meursault) é condenado porque não chorou no enterro da mãe; ou por conta do brilho do raio do sol refletido na faca do árabe, dado como causa do crime no interrogatório.
Enfim, a verdade do processo penal nunca é a Verdade; e nem a verdade, se vista como uma parte; uma parcialidade. E sobre ela todos se debatem todos os dias vendo as pessoas serem julgadas, condenadas e morrerem… sempre em nome da tal Verdade/verdade. E mais: os que condenam — é bom não esquecer — fazem isso em nome dela, ainda que a não tenham, algo que, de certa forma, absolve-os, dado que julgam em cima do que dispõem: a parcialidade. De qualquer forma, ao discurso da Verdade/verdade dessa gente, em definitivo, não é possível dar guarida. E ainda que se não “ciência” que dê conta deles.
O discurso sobre a Verdade/verdade, por outro lado, é eficaz, e seduz as pessoas que buscam nele o arrimo necessário para sua segurança. Não é pouca coisa e há de se respeitar. Não se pode, porém, fazer de conta que tal discurso não trata de outra coisa, inominável. Para essa (outra coisa) vale a crença; e aí se entende (como lembrou Carnelutti) por que Cristo disse: “Eu sou a Verdade”.
No fundo, a parcialidade que o conhecimento traz ao processo penal permite — isso sim — que se trate daquilo que está enunciado nele, com as limitações que impõe, mormente porque se agregam elementos objetivos e subjetivos que se não eliminam. Desde este ponto de vista, tudo deve ser pensado de modo a que se tenha, no escopo do processo, um menor número de erros; e isso não é simples. Mas há que se tentar, por exemplo, com a refundação e um novo processo ancorado no sistema acusatório. O discurso sobre a Verdade/verdade, aqui, ajuda nada; antes, atrapalha.
Se disso não se derem conta, talvez seja melhor prestar atenção ao alerta de Carrara, que vai na epígrafe.
[1] CARRARA, Francesco. Programa do curso de direito criminal. Trad. de José Luiz V. de A. Franceschini. São Paulo: Saraiva, 1957, Vol. II, pp. 318-9
Dedico este texto à memória do grande e querido amigo José Calvo González, Catedrático de Filosofia do Direito da Universidad de Málaga, falecido em 23.06.20. Pepe Calvo tinha um ampla bibliografia, mas o tema do presente texto é também influenciado por um texto dele apresentado no Painel inaugural do Primer Congreso Iberoamericano de Filosofía Jurídica y Social/XXVIII Jornadas Argentinas de Filosofía Jurídica y Social (La decisión y el rol de los tribunales en el Estado de Derecho), em Buenos Aires, 15.10.14, com o título: Decidir la verdade de los hechos: Narrativismo y verdade judicial constitucionalizada. Vai fazer muita falta e estará sempre na recordação dos amigos.
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é advogado e professor titular de Processual Penal na Universidade Federal do Paraná (UFPR), da pós-graduação em Ciências Criminais da PUCRS e do mestrado em Direito da Faculdade Damas. Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Università degli Studi di Roma, mestre em Direito pela UFPR e especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Membro da Rede de Direito Público Brasil-Itália-Espanha (REDBRITES) e pesquisador e presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória.
Artigo publicado no Conjur, 26/06/2020.