A Agonia da Tipicidade: A arriscada construção do Judiciário
“Se fosse resolver, queria te dizer, foi minha agonia.
Se eu tentasse entender, por mais que eu me esforçasse, eu não conseguiria.”
(Agonia, Oswaldo Montenegro)
Em uma conhecida passagem d”O Conde de Montecristo”, Edmond Dantès, que futuramente se tornaria o autoproclamado nobre que dá nome ao livro, declina ao Senhor de Villefort o nome do destinatário da carta remetida por Napoleão. É a sua sentença de prisão perpétua! Não havia crime; não havia processo; não havia pena cominada! Só havia a vontade do julgador.
Costa Gravas, o mágico grego do cinema, muito tempo depois concebeu o filme “Section Speciale”. A película imortalizou a crítica ao absurdo de um julgamento acerca de fato passado vir a ser feito com base em lei posterior e punir alguém por um acontecido não previsto como crime ao seu tempo. As penas, no roteiro cinematográfico, também foram criadas às vésperas do julgamento. Falava-se de um hiato na modernidade que se referia ao negro tempo do nazismo.
A Constituição Federal – consolidando alcances da modernidade – especifica os princípios da irretroatividade e da tipicidade, proibindo que qualquer um seja processado, condenado e encarcerado sem lei anterior que defina o crime e sem prévia existência de punição escrita em texto de lei.
Tipicidade e irretroatividade não se confundem, mas se completam.
Mas o que faz com que Alexandre Dumas, Oswaldo Montenegro e Costa Gravas convirjam para um mesmo contexto e precisem ser lembrados num domingo de carnaval?
De logo a agonia e o medo de que crimes possam, a partir de agora, virem a ser criados não por uma lei própria, mas por aplicação de outra lei acaso existente para cuidar de outro caso e tratando de outro objeto.
Não se cuida nem mesmo da advertência do cineasta grego porque nem mesmo lei haveria: nem anterior e nem posterior. Só a vontade do juiz.
Agonia por perceber os riscos de permitir-se que o Judiciário crie a norma incriminadora pelo artifício da analogia, perdendo-se nos riscos sibilinos da similitude de situações.
Um preso perpétuo em Chateau d’If pode sair da literatura e caminhar pelas penitenciárias de Pedrinhas ou Bangú pela só razão de um juiz ter entendido que a lei que cuida criminalmente de um fato pode ser aplicada a outro.
E se a tipicidade – ou estrita legalidade – pode ser tergiversada por qual razão não a anterioridade?
Um comunista de Paris no tempo da resistência à ocupação e rejeição ao governo de Vichy poderia correr o risco de ser fuzilado na França e também fugir das telas dos cinemas e ser preso no Brasil, por uma Seção Especial de Justiça que resolvesse aplicar o delito de tráfico de drogas ao consumo de absinto! E haveria artifício retórico a sustentar que 78% de teor alcoólico é pior que alguns gramas de maconha.
Nada de agonia, diriam alguns, já que é extremamente justificada a aplicação da lei que define crimes de racismo à homofobia e a comportamentos reativos à liberdade sexual.
Vive-se o extremo risco de enxergar apenas uma árvore e não a floresta.
Nada mais abjeto do que agredir e reagir à liberdade de quem quer que seja levar sua vida íntima como bem o desejar. Com quem uma cidadã ou um cidadão dorme, como se veste ou como se define não podem ser questões públicas, pois dizem respeito a aspecto tão íntimo de cada um que não deve haver sobre isso pretensão regulatória de terceiros. A não ser, por óbvio, se envolver incapazes.
Ofender a liberdade de ser quem desejar merece ser crime; deve ser crime; convém ser crime.
Discutir publicamente a questão deixando claro como a modernidade entende por equivocadas as reações e as fobias à essa dimensão do agir humano é necessário nos tempos que correm, tem seu valor e deve ser feito.
O problema que se põe é de outra ordem. E a argumentação produz outras duas questões necessárias.
A primeira é: quem numa democracia moderna define o que é crime? Obviamente o legislador.
Crime é matéria de reserva legal e portanto cada conduta típica deve ser definida através de um ato formal votado no Parlamento.
Isto possui uma razão de ser: a consideração de que algo é criminoso deve ser fruto da compreensão negativa que a sociedade tem daquele fato. Em teoria quem representa o povo é o Poder Legislativo e, logo, a ele cabe o estabelecimento do ato abstratamente considerado como algo criminoso.
Pensar no Judiciário ou no Executivo como Poderes definidores de crimes rompe com a divisão tripartite. Também por esta razão o Supremo Tribunal Federal entendeu que Medida Provisória não pode criar fato típico penal.
Em segundo lugar, além de significar uma postura disruptiva do equilíbrio entre forças numa democracia moderna, a necessidade de lei anterior para definir um crime também tem outra razão: responde negativamente ao casuísmo. O contrário – a permissão de que o Judiciário crie fatos típicos – gera um paradoxo.
Manter o paradoxo vale um desenho de Escher!
Se permito a tipificação de um crime por analogia – por um juiz bom e por um motivo justo – como farei para proibir a criminalização de condutas irrelevantes por ato judicial quando o juiz for mau e o motivo espúrio?
Gradear a toca dos lobos pode ser uma boa medida, mas algumas vezes sói acontecer de ovelhas serem chamadas de lobos para que sejam afastadas do rebanho. Se todas as vezes que alguém nominar algo de lobo, lobo ele se tornar, será um paradoxo defini-lo como ovelha.
A lei restringe. Mas garante.
Pode ser insuficiente, é verdade, mas a sua substituição pela livre vontade do juiz pode trazer muita agonia.
E a ante-sala da agonia pode ser a festa. Festa dos que se sentirão mais protegidos, mas estarão mergulhando num ledo engano.
O risco é que ao final da festa a sociedade se veja, repentinamente, de alma completamente vazia.
“Eu vou pensar que é festa
Vou dançar, cantar
É minha garantia
E vou contagiar diversos corações
Com minha euforia
E a amargura e o tempo
Vão deixar meu corpo
Minha alma vazia”
(Agonia, Oswaldo Montenegro)
Fonte: https://www.conjur.com.br