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A anulação da sentença de Moro pelo STF e os rumos da lava-jato e processos penais similares: o direito ao confronto na justiça penal negocial

Valber Melo

Filipe Maia Broeto

Como sempre se faz questão de pontuar, ao iniciar os textos versando sobre colaboração premiada, trata-se de um tema que possui uma aptidão para gerar “polêmicas” incomparável. Isso porque os processos envolvendo o multifacetado instituto, que trazem um verdadeiro manancial de teses, todos os dias ganham contornos diferentes, à medida em que as análises avançam nas “jurisdições”.

A propósito, como divulgado pelo sítio virtual Consultor Jurídico – Conjur, em 27/08/19, “a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal acatou, nesta terça-feira (27/8), um pedido de Aldemir Bendine, ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobras, para anular a condenação da primeira instância, em razão de ele ter sido obrigado a apresentar seus memoriais ao mesmo tempo que os delatores”.

A discussão, que chegou ao Supremo Tribunal Federal, foi apreciada por ocasião do julgamento do agravo interposto na ordem de habeas corpus n. º 157.627, cujo acórdão ainda pende de publicação. Na ação constitucional, questionou-se a determinação do então juiz federal Sérgio Moro para que delatores e delatados se manifestassem, na fase das alegações finais [art. 403, §3º, do CPP], no mesmo prazo.

Com acerto, sustentou-se que referida imposição violaria indelevelmente os corolários diretos do princípio reitor do devido processo legal, na medida em que os delatados têm o direito, como decorrência inafastável do contraditório [binômio essencial de conhecimento/ciência e manifestação], de se contraporem a todas as cargas acusatórias acumuláveis contra si, inclusive as alegações escritas dos delatores, até mesmo para que consigam exercer efetivamente o direito ao confronto.

Deveras, segundo a posição ainda dominante do Supremo Tribunal Federal, os delatados sequer possuem direito de impugnar os acordos de colaboração premiada, uma vez que “como negócio jurídico personalíssimo, não vincula o delatado e não atinge diretamente sua esfera jurídica”. Na dicção da Corte Suprema:

[…] a homologação do acordo de colaboração, por si só, não produz nenhum efeito na esfera jurídica do delatado, uma vez que não é o acordo propriamente dito que poderá atingi-la, mas sim as imputações constantes dos depoimentos do colaborador ou as medidas restritivas de direitos fundamentais que vierem a ser adotadas com base nesses depoimentos e nas provas por ele indicadas ou apresentadas – o que, aliás, poderia ocorrer antes, ou mesmo independentemente, de um acordo de colaboração.

De ver-se, no entanto, que, se “a homologação do acordo de colaboração, por si só, não produz nenhum efeito na esfera jurídica do delatado”, o mesmo não ocorre com as provas e declarações que o delator junta, em juízo, aos autos processuais, as quais vão servir de base, ao término da lide penal, à condenação ou absolvição dosimputados.

Diante desse contexto, no bojo do RHC n. º68542/SP, de Relatoria da Ministra Maria Thereza De Assis Moura, o Superior Tribunal de Justiça se manifestouno sentido de que:

[…] 1. O acordo de colaboração premiada, negócio jurídico personalíssimo celebrado entre o Ministério Público e o réu colaborador, gera direitos e obrigações apenas para as partes, em nada interferindo na esfera jurídica de terceiros, ainda que referidos no relato da colaboração.2. Assim sendo, supostos coautores ou partícipes do réu colaborador nas infrações desveladas, ainda que venham a ser expressamente nominados no respectivo instrumento no “relato da colaboração e seus possíveis resultados” (art. 6º, I, da Lei n.º 12.850/13), não possuem legitimidade para contestar a validade do acordo.3. Não há direito dos “delatados” a participar da tomada de declarações do réu colaborador, sendo os princípios do contraditório e da ampla defesa garantidos pela possibilidade de confrontar, em juízo, as declarações do colaborador e as provas por ele indicadas, bem como impugnar, a qualquer tempo, as medidas restritivas de direitos fundamentais eventualmente adotadas em seu desfavor.4. Precedentes do STF e do STJ.5. Recurso desprovido.

Em que pese a Corte Cidadã tenha entendido que aos delatados restaria intacto o direito ao confronto, no caso que fez a discussão chegar ao Supremo Tribunal Federal,incursionou no mérito do writ e entendeu que não haveria constrangimento no fato de delatados apresentarem memoriais concomitante com delatores, que inexiste,tanto no Código de Processo Penal ou mesmo na Lei nº 12.850/13,dispositivo que autorizeeventual tratamento diferenciado entre corréus, seja colaborador ou não”.

Ora, não se requer grande esforço intelectual para deduzir que o delatado somente pode exercitar o direito ao confronto, na linha do entendimento dominante, em juízo; por conseguinte, tal manifestação pressupõe, insofismavelmente, que a prova ou alegação apresentada pelo delator tenha sido apresentadaem momento anterior.

Como falar-se em direito ao confronto e, em consequência, em respeito ao contraditório e ampla defesa, se o colaborador apresenta provas ou versões sobre as quais os delatados não puderam se manifestar?Como bem observa Orlando Perri, Desembargador do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, “à defesa haverá de caber, sempre e sempre e em qualquer circunstância, a palavra final, como efeito mágico do verbo”.

Não obstante o artigo precitado se refira à fala da defesa em sustentações orais, fato é que o acerto da argumentação se aplica, in casu, na totalidade, sobretudo porque, de fato, caberá sempre à defesa, em qualquer circunstância, fase ou grau de jurisdição, a palavra final. Assim, também nos casos envolvendo delação premiada, a fim de que se assegure o contraditório e a ampla defesa, deve-se viabilizar que os delatados – que são a parte débil da relação processual – apresentarem alegações finais por último, conquanto inexista disposição legal expressa nesse sentido.

Ao delimitar, com singular acerto, o alcance jurídico do sagrado postulado do contraditório, o Desembargadordo Tribunal de Justiça de Mato Grosso,Orlando Perri,assevera que, “no campo da defesa, o contraditório não se concretiza nem se esgota na atividade probatória, mas também na argumentativa, na capacidade de contrariar a prédica acusatória, em todas as suas vertentes, sejam elas fáticas, sejam jurídicas”.Para o Desembargador:

Esta a razão pela qual, por força e comando do princípio do contraditório, as testemunhas da acusação são ouvidas antes das da defesa; o réu é interrogado após todas as provas orais; as alegações finais da acusação precedem as da defesa, etc. É em atenção ao direito fundamento da liberdade — faceta do primado da dignidade da pessoa humana — que a lei confere ao acusado maior proteção jurídica, concedendo-lhe a última palavra no processo penal.

Encampando predito entendimento, cita-se relevante precedente do Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federalo qual, em caso singular, envolvendo colaboração premiada em processo de competência do júri âmbito pouco comum para utilização do instituto, entendeu que“a atividade estatal principalmente a função jurisdicional deve ser exercida de forma a dar a máxima eficácia às garantias basilares do indivíduo, entre as quais a liberdade de locomoção, o contraditório, a ampla defesa e, por conseguinte, o devido processo legal”.

Na senda do referido Tribunal, “Se o depoimento do corréu aproxima-se da prova obtida em delação premiada, não é adequado que ele seja interrogado após os demais, nem que a defesa se manifeste após as outras, sob pena de ofensa ao princípio do contraditório”.

Nesse contexto, despicienda previsão legal expressa aassegurar aos delatados o direito de apresentar alegações finais por último, notadamente porque a melhor hermenêutica não só autoriza como impõe que direitos e garantias fundamentais sejam potencializados no ato de interpretar.

Não se trata, à evidência, de fornecer tratamento diferente a corréus, justamente porque eles [delatores e delatados], ainda que integrem o mesmo processo, não estão em igual posição, haja vista que o delator, ao se defender, acusa, ao passo que o delatado, que sequer pode impugnar os acordos, apenas (e tão somente) se defende, o que somente pode fazê-lo em juízo, ao exercer o sagrado direito ao confronto.

Destarte, como bem pondera Rogério Tadeu Romano, é mister que seja dada à defesa a última palavra, antes do pronunciamento judicial sobre os fatos e do direito, na sentença, no recurso, não se afigurando correta dar essa última palavra ao colaborador, que, em verdade, está nos autos para dar sustentação à acusação.

Diante desse cenário, forçosa a conclusão de que, sendo o Supremo Tribunal Federal coerente com suas próprias decisões, o destino de todos os processos – oriundos da lava-jato ou de operações similares – em que delatados tiveram de se manifestar concomitantemente com delatores será a nulidade, num verdadeiro “efeito cascata”, haja vista que onde impera a mesma razão deve prevalecer a mesma decisão Ubi eadem legis ratio ibieadem dispositio.

Bibliografia

COELHO, Gabriela. 2ª Turma do STF anula sentença de Moro que condenou Bendine na “lava jato”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-ago-27/turma-stf-anula-sentenca-moro-aldemir-bendine.

Fachin manda ação penal sobre Instituto Lula voltar etapa após decisão do STF. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/08/fachin-manda-acao-penal-sobre-instituto-lula-voltar-etapa-apos-decisao-do-stf.shtml#_=_.

MELO, Valber. A (im)possibilidade de impugnação de acordo de colaboração premiada por terceiros: uma breve distinção entre impugnação e direito ao confronto sob a ótica dos tribunais superiores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5378, 23mar.2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64905.

MELO, Valber; NUNES, Filipe Maia Broeto. Colaboração Premiada: aspectos controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

PERRI, Orlando de Almeida. Havendo sustentação oral, defesa se manifesta sempre em último lugar. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-mai-03/perri-cabe-defesa-ultima-palavra-quando-houver-sustentacao-oral.

ROMANO, Rogério Tadeu. No processo penal, a defesa fala por último. Jusnavigandi. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/76175/no-processo-penal-a-defesa-fala-por-ultimo.

Supremo Tribunal Federal. Negado pedido do prefeito de Cuiabá para rescisão do acordo de colaboração de ex-governador de MT. 2017. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe…>.

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