A correlação da prisão preventiva com o princípio do estado de inocência
A concepção social a respeito da prisão no Brasil assume contornos divergentes diante da diversidade empírica que cada brasileiro carrega em sua história. Muitos defendem tratar-se de um mal necessário, outros a criticam no sentido de que não cumpre suas finalidades essenciais, isto é, as prisões não têm o condão de ressocializar e reeducar o apenado.
Entretanto, quando analisamos juridicamente o instituto da prisão preventiva essa visão se torna ainda mais negativa, tendo em vista tratar-se de uma medida destinada a assegurar o normal desenvolvimento do processo penal, ao passo que a prisão pena consiste numa sanção aflitiva em decorrência de uma sentença penal condenatória. Em suma, aquela visa assegurar o processo; esta, concretiza o direito punitivo.
Diante do princípio da excepcionalidade – que deve(ria) nortear a aplicação das prisões preventivas -, estas são, infelizmente, cada vez mais utilizadas pelo Poder Judiciário sem qualquer fundamentação idônea, desrespeitando, assim, o princípio constitucional do estado de inocência, tendo em vista que a regra do ordenamento jurídico é a liberdade e não sua restrição.
Esse raciocínio mostra-se pertinente pelo fato de que o princípio do estado de inocência encontra-se insculpido no art. 5°, LVII, da CF, consistindo em um direito fundamental do indiciado, do acusado e do condenado de ser considerado inocente até que sobrevenha uma sentença penal condenatória transitada em julgado. Em outros termos, “até prova em contrário, todos os homens, sem distinção, são considerados inocentes para o ordenamento jurídico brasileiro” (Fernandes, 2017, p. 44).
Assim, cumpre-nos indagarmos: como podemos conceber uma prisão sem que o réu tenha sido considerado definitivamente culpado?
Trata-se, como podemos perceber, de uma questão delicada à luz da sistemática processual penal, tendo em vista que o preço a ser pago pela prisão prematura e muitas vezes desnecessária daquele que se presume inocente é altíssimo, ainda mais diante da realidade atual em que o sistema carcerário se encontra.
Nesse contexto, o princípio do estado de inocência impõe um dever de tratamento, na medida em que o réu deve ser tratado como inocente até que sobrevenha uma sentença penal condenatória transitada em julgado.
Referido dever de tratamento – considerado como um desdobramento do princípio em estudo -, se consolida sob três normas, que são: norma de tratamento do acusado; norma de natureza probatória; e norma de garantia do acusado.
No tocante à norma de tratamento do acusado, impõe-se um impedimento na incidência das prisões de natureza cautelar, no sentido de evitar-se a banalização deste instituto.
Por outro giro, a norma de natureza probatória determina que, ao órgão acusador, compete provar a culpabilidade do réu, na medida em que este é considerado inocente até que sobrevenha uma sentença penal condenatória. Ademais, havendo dúvida quanto a autoria delitiva, impera-se o in dubio pro reo.
Por sua vez, a norma de garantia do acusado busca a convalidação das garantias inerentes ao devido processo legal.
Trata-se, na verdade, de um garantismo – nos dizeres de Ferrajoli – em face ao poder punitivo do Estado, tendo vista que a República Federativa do Brasil se constitui em um Estado Democrático de Direito, conforme o art. 1° da Magna Carta de 1988.
Diante disso, as prisões cautelares não devem assumir status de uma pena antecipada, como vem sendo utilizada pelo Poder Judiciário. Muito pelo contrário, sua aplicação deve pressupor uma extrema necessidade e a observância dos seus requisitos legais e, ainda que estes sejam atendidos, deve-se verificar se não cabe, diante do caso concreto, uma das medidas cautelares diversas rotuladas no art. 319 do CPP (Fernandes, 2017, p. 203).
No tocante às prisões preventivas, objeto do presente estudo, para a sua aplicação deve estar devidamente comprovado o fumus comissi delicit e o periculum libertatis, consubstanciados no art. 312 do CPP.
Segundo o dispositivo supramencionado, a prisão preventiva deve ser decretada para a garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal (periculum libertatis), quando houver prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria (fumus comissi delicit).
A crítica que a doutrina faz em relação aos fundamentos da prisão preventiva refere-se à garantia da ordem pública e da ordem econômica, na medida em que seus conceitos são vagos e indeterminados, gerando, por essa razão, possibilidades de ser decretada em razão da gravidade do delito ou da comoção social. Assim, não garantem o normal desenvolvimento do processo, mas assumem contornos de uma medida de segurança, isto é, uma função de polícia do Estado.
Nessa mesma linha, Aury Lopes Jr. (Lopes Jr., 2018, p.p. 652-653), combatendo a ordem pública e a ordem econômica como fundamentos para a decretação da prisão preventiva, aduz que não são cautelares e, por tanto, são substancialmente inconstitucionais, arrematando:
“A prisão para a garantia da ordem pública e da ordem econômica nada tem a ver com os fins puramente cautelares e processuais que marcam e legitimam esses provimentos. ”
Ademais, cumpre destacar que, uma vez desaparecido o suporte fático que legitimou a medida restritiva de liberdade, corporificado no fumus comissi delicit e no periculum libertatis, deve-se impor a imediata cessação da prisão, sob pena de restar configurado o constrangimento ilegal.
Dessa forma, as prisões preventivas decretadas com base na garantia da ordem pública e da ordem econômica devem ser rechaçadas, na medida em que não se prestam a assegurar o normal desenvolvimento do processo. Assim, cabe a nós, advogados, buscarmos sua revogação diante da flagrante violação ao princípio do estado de inocência.
Assim, perante o exposto, podemos concluir que é perfeitamente cabível a aplicação da prisão preventiva sem que seja desrespeitado o princípio do estado de inocência, desde que embasada no princípio da excepcionalidade, sejam descabidas as demais medidas cautelares diversas e que seja respeitado o status de inocente do indivíduo, visando, exclusivamente, o normal desenvolvimento do processo.
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Referências
FERNANDES, Patrícia Vieira dos Santos. Prisão cautelar: à luz do princípio do estado de inocência – Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017.
LOPES Jr. Aury. Direito processual penal. 15. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018.