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A execução prematura da pena e o surgimento de uma modalidade extralegal de prisão

A EXECUÇÃO PREMATURA DA PENA E O SURGIMENTO DE UMA MODALIDADE EXTRALEGAL DE PRISÃO

Muito tem se discutido à cerca da possibilidade da prisão para a execução provisória da pena, isso quando a condenação é confirmada em segundo grau de jurisdição.

Em que pese a extrema divergência de opiniões, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, tem admitido tal modalidade de prisão, desde meados de 2016, ao argumento de que a presunção de inocência se encerra com o esgotamento da análise pelas vias ordinárias. Isso porque, sustenta-se que a análise fático-probatória é feita pelas instancias ordinárias, isso é, pelo primeiro e segundo graus de jurisdição, ficando a cargo do Tribunais Superiores, em caso de recursos a eles direcionados, somente a análise de direito.

Com o devido respeito, é de se dizer que, à luz da ordem legal, referido entendimento constitui uma verdadeira “heresia jurídica”!!!

O próprio texto constitucional traz o marco final para o estado da presunção de inocência, qual seja, o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Isso é, quando a condenação ganha ares de definitiva, ou ainda, granjeia um estado de imutabilidade. Estamos falando do que dispõe o inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal, que assim narra: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. ” [Grifos meus].

Ora, não se tem notícia de que o conceito de “trânsito em julgado” tenha sido alterado.

Embora se denomine essa disposição constitucional de “princípio da presunção de inocência”, em verdade, estamos diante de uma regra, isso porque, da própria leitura do dispositivo não se extrai margem a interpretações paralelas, ou seja, a literalidade do texto se impõe. Ao meu sentir, estamos diante de regra e regra caríssima ao Estado Democrático de Direito, inclusive inserida no seio dos direitos e garantias fundamentais o que faz com seja cláusula pétrea.

Como reflexo dessa regra, o legislador ordinário inseriu no Código de Processo Penal, o art. 283, o qual elenca todas as modalidades de prisão possíveis no sistema penal Brasileiro e, deixou muito claro que, a prisão decorrente de sentença condenatória depende do trânsito em julgado. Isso porque não é razoável que alguém, presumidamente inocente, inicie o cumprimento de uma pena.

Repita-se, a presunção de inocência somente se encerra com a imutabilidade da sentença condenatória.

A redação do art. 283 do Código de Processo Penal, dispõe que: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. ” [Grifos meus].

Podemos aqui citar vários outros artigos legais onde se reafirma que, somente é possível a execução de uma pena após o trânsito em julgado. Vale citar o art. 50 do Código Penal, arts. 105 e 147 da Lei de Execução Penal, todos tratando da execução da pena imposta por sentença criminal e, todos exigindo como condição de início de cumprimento, o trânsito em julgado.

Pois bem, o fato é que o art.283 traz em seu bojo todas as possibilidades de prisão admissíveis no Brasil e, onde está a permissão para que se execute uma pena privativa de liberdade confirmada em segunda instância?

Obviamente, não se desconhece a possibilidade de prisão antes do trânsito em jugado, porém estas são (ou deveriam ser) processuais e devem (ou deveriam) ter caráter cautelar e acessório. A prisão preventiva pode, em qualquer fase do processo ou da investigação criminal, ser decretada pela autoridade judiciária, desde que devidamente fundamentada e observados o “fumus comissi delicti” e o “periculum libertatis”. Noutros termos, a decretação da prisão preventiva exige a existência de requisitos e pressupostos.

Contudo, a prisão-pena, só é possível a partir do trânsito de julgado. O ordenamento jurídico é de clareza solar neste sentido. Vivemos uma discussão que, na verdade, não deveria sequer existir.

Antes de mais nada, o direito penal se presta a limitar o poder estatal, não pode o Poder Judiciário arvorar-se na função legislativa, sob pena de instalar na sociedade um temerário estado de insegurança jurídica.

Com o atual entendimento a respeito do tema, a Suprema Corte, efetivamente assume o papel de legislador, criando uma modalidade extralegal de prisão.

Pior que isso, o descumprimento da dogmática penal à luz da Constituição Federal, vem de quem deveria ter como função precípua, justamente a salvaguarda dos preceitos insculpidos na carta magna.

Revela-se, no mínimo absurdo, a afirmativa de que a permissão de prisão para possibilitar a execução antecipada ou prematura da pena não afronta o princípio, ou melhor, a regra da presunção da inocência. Asseverou-se que o réu que é levado aos mausoléus que compõem o sistema carcerário brasileiro para o cumprimento antecipado de pena continua presumidamente inocente, estando “apenas preso por força de condenação não transitada em julgado”.

Ora, a disposição constitucional se presta justamente a evitar que o acusado seja submetido aos efeitos da condenação antes dela se tornar definitiva.

Com isso, o Supremo, não somente sepultou os preceitos constitucionais e infraconstitucionais, como, odiosamente, assumiu um papel que não lhe pertence para criar uma modalidade de prisão sem que haja previsão legal para tanto.

Novamente pergunta-se: Onde está o permissivo legal que autoriza a execução provisória da pena?

Repita-se, estamos diante de preceitos legais autoaplicáveis, isso é, que não admitem interpretações diversas da literalidade. Ainda que assim não fosse, em matéria penal, quando é possível mais de uma interpretação do texto legal, prevalece aquela que é mais benéfica para o Réu.

Com isso, independentemente de quem seja o Acusado, as garantias fundamentais devem se aplicar a todos os cidadãos. Se, por um lado, ninguém está acima das leis, por outro, ninguém pode ser subtraído de sua proteção.

Como já afirmava Barão de Montesquieu: “A injustiça que se faz a um, é uma ameaça que se faz a todos. ”

Não podemos negar vigência à ordem jurídica para ouvirmos a voz das ruas que tem sede de punição, sem se preocupar com os limites impostos pelos ditames de direito, sem se preocupar com as regras preestabelecidas. Os fins não justificam os meios e os direitos e garantias fundamentais servem para a proteção do ser humano que é um fim em si mesmo.

A liberdade é muito cara para ser banalizada, violentada de forma abusiva, ilegal e inconstitucional.

Devemos lembrar que a opinião pública, quando se sobrepôs aos ditames jurídicos, crucificou Jesus Cristo e libertou Barrabás.

Sobre a liberdade, vale citar o trecho de Dom Quixote, por Miguel de Cervantes: “A liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos, que aos homens deram os céus: não se lhe podem igualar os tesouros que há na terra, nem os que o mar encobre; pela liberdade, da mesma forma que pela honra, se deve arriscar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode acudir aos homens. ”

Alessandro Moreira Cogo é advogado criminalista, associada à ABRACRIM-PR.

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