A história se repete
Por: James Walker
Na quadra histórica denominada idade média, mais precisamente no século XII, tem início a “santa” inquisição, movimento desenvolvido dentro do sistema jurídico da igreja Católica Apostólica Romana, com o objetivo específico de combater o crime de heresia.
Para consecução dos fins almejados, de combate sistemático ao crime de heresia, que, à época, apresentava-se como o mais grave delito a ser enfrentado naquela quadra, estabeleceu-se uma postura de persecução cruel, autoritária e desumana a qualquer um que fosse apontado como herege.
As penas impostas aos supostos hereges variavam desde os castigos corporais, passavam pelas efígies (já mencionei em artigo anterior), que consistia em queimar publicamente um boneco de palha, o qual simbolizava o “herege”, com o objetivo de lhe desmoralizar, alcançando, no mais das vezes, a pena capital, queimando-se o acusado de heresia em fogueiras que ardiam em praças públicas.
Na iminência da fogueira, deferia-se ao acusado, inclusive, o “benefício” da delação, sendo certo que delatar podia “livrar” o herege da fogueira do inferno, porém, jamais da impiedade do inquisidor, uma vez que o delator recebia tratamento de inimigo por parte daquele.
Obtida a prova da heresia (que era crime sem conduta, baseado na (des)crença), pelas mãos de juízes clericais (juízes querendo produzir provas existem desde a idade média), o herege era entregue ao carrasco, para a execução penal.
E assim, esses tribunais se estabeleceram e atuaram, por séculos, superando a idade média, avançando e ampliando sua “jurisdição” através do Renascimento, sobretudo com as inquisições Espanhola e Portuguesa, perdendo força somente no século XIX, sobretudo com a extinção, em 31 de março de 1821, do Tribunal do Santo Ofício, em Portugal, que funcionou por aproximadamente 285 anos.
Quase 200 anos depois, no Brasil, resolvemos acelerar em marcha ré, para reeditar, sistematicamente, uma série de retrocessos que marcaram um período obscuro e cruel da humanidade, determinado pelo exercício de poder autoritário e desumano, sempre em nome da realização da justiça e legitimados pelo combate à criminalidade.
Os clérigos foram substituídos por magistrados, que hoje, tanto quanto na idade média, querem produzir provas, ressuscitando o processo inquisitório.
As efígies nunca foram tão utilizadas quanto hoje, sendo certo que os bonecos de palha foram sofisticadamente superados pela exposição midiática, consagrando-se o processo penal do espetáculo.
O carrasco, desumano e antagonista natural do acusado, deu lugar aos órgãos de acusação, hoje empenhados em levar ao cárcere e condenar a qualquer preço (com exceção de “hereges” demasiadamente ricos, que fazem até mesmo os carrascos aposentarem o capuz para barganharem as suas penitências).
A inquisição, hoje chamada Operação, mantém seu viés de outrora, reeditando a prática de atos desumanos, para alcançar confissões, ou delações, enfim, o apelido é desimportante, sempre em nome do elemento (des)legitimador, ou seja, o combate à heresia contemporânea, aqui chamada de corrupção.
Assim, prender volta a ser, mais de 200 anos após a inquisição, um ato de manejo clerical de obtenção de provas (o clérigo hoje é concursado), impondo-se terror e vulnerabilidade psíquica ao herege (aqui denominado corrupto), forçando-o à negociação da pena com o seu carrasco (historicamente inimigo do acusado), hoje representado cenicamente pelos órgãos de acusação.
Quem não mudou de nome nessa metáfora histórica foi a delação, desde sempre ato conduzido pela vontade viciada.
No passado, o terror de habitar o inferno e arder pela eternidade, somados à violência das torturas, levavam o herege a confessar até mesmo a suposta prática de ato sexual com o satanás.
Hodiernamente, o receio não reside em ir para o inferno, mas em permanecer nele, ou alguém duvida que estar preso no Brasil seja muito diferente de estar no inferno?
A autoridade clerical contemporânea, valendo-se da lógica infernal da inquisição, enxergou que o inferno é sempre um extraordinário argumento de colaboração e, enquanto séculos atrás a ameaça era de mandar o herege para o inferno, hoje a estratégia consiste em mantê-lo no purgatório, até que sua última resistência caia e se alcance o reconhecimento do delito.
No jogo processual o que importa é vencer.
Com as cartas na mesa resta absolutamente claro que estamos diante de uma repetição de padrões, com a reedição de posturas absolutamente inquisitórias, onde o livro das regras (que pode até ser a Bíblia, jamais a Constituição, pois esta jaz diante do novel direito de precedentes brasileiro) estabelece o primado da moral sobre o direito, enquanto a comprovação da conduta delitiva deu lugar à crença.
Algo como não ter prova mas ter convicção, que aproxima as atuações do clérigo e do carrasco, numa jornada extemporânea pela “Santa Operação”, que deixa esfacelado o processo penal (aquele acusatório, hoje morto), e enterra a Bíblia, que nesta versão moderna da Santa Inquisição deveria se chamar Constituição Federal.
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