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A ilegalidade de fishing expedition via mandados genéricos em “favelas”

Por Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa
A lógica é uma só: não tenho certeza, mas tenho convicção de que na região de “favelas” há crime. Com essa certeza pressuposta, em vez de investigar, e depois individualizar os pedidos de busca e apreensão, promove-se uma varredura, a saber, “joga-se a rede” — expediente de pesca ou fishing expedition, numa expedição em busca de provas nas casas dos excluídos socialmente. Interessante como todos sabemos que “dinheiro ilícito se lava no asfalto”, mas nem por isso se cogita de um mandado genérico em um dos luxuosos prédios comerciais da avenida Paulista, por exemplo. Cuida-se de expediente, na definição de Melo e Silva[1], em que o órgão investigador se utiliza dos meios legais, sem objetivo certo ou declarado, genericamente, para “pescar” quaisquer evidências a respeito de crimes futuros, constituindo-se em investigação prévia, ampla e genérica, manipuladora dos pressupostos legais da investigação democrática[2].
Entretanto, a casa é o asilo inviolável de todos. Pobres, ricos, enfim, não se pode fazer distinções em face da condição patrimonial/financeira. A gradação da cidadania, todavia, não pode ser tolerada em face dos resultados. “Favela” é casa de gente como nós[3]: ou você se acha melhor? Infelizmente ainda existe um ranço cultural não assumido, um resquício escravagista, que opera no binário casa grande-senzala. É um elitismo na distribuição de eficácias/ineficácias da Constituição, que vai na mesma linha do “tolerância zero” para eles e tolerância dez para nós e os nossos… Talvez o sonho dessa gente fosse a construção do famoso “muro” nas favelas (lembram do projeto do muro da rocinha, em 2009?), a “guetificação”[4], desde que deixassem um portão para que todos os dias as empregadas domésticas, babás, motoristas, garçons etc. pudessem “sair” para servi-los em seus luxuosos apartamentos e casas na zona sul. Quem sustenta a legitimidade desses mandados de busca e apreensão genéricos em uma favela opera nessa dimensão, ainda que inconscientemente.
A busca e apreensão (CPP, artigo 240) é restrição a direito fundamental (inviolabilidade do domicílio, dignidade da pessoa humana, intimidade e a vida privada, incolumidade física e moral do sujeito) e, como tal, deve ser deferida somente no limite de sua autorização legal, a saber, quando os requisitos legais estiverem cumpridamente demonstrados[5]. Deve ser certa (para local determinado por número, GPS, mapas ou equivalente), não podendo ser deferida para toda a rua X, nem ao bairro Y, sob pena de nulidade[6], por violação expressa ao artigo 243, I e II, do CPP. Os mandados de busca e apreensão genéricos, sem individualização, podem se constituir como modalidades de fishing expedition, tática vedada (STF, HC 106.566)[7]. A espetacularização do processo penal, diante dos direitos fundamentais em jogo, a publicização externa, com acompanhamento da mídia, deve ser considerada como violadora das regras e configurar, no mínimo, abuso de autoridade e/ou improbidade.
O Poder Judiciário deve impedir a instauração de um Estado policialesco, garantindo os direitos fundamentais, razão pela qual destacamos, nesta coluna, o julgado do desembargador Paulo de Oliveira Lanzellotti Baldez, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, cuja ementa é esclarecedora:
“2. O ingresso forçado no domicílio, medida restritiva de direitos fundamentais, possui caráter excepcional, estando, por conta disso, autorizado apenas diante das raríssimas situações previstas no inciso XI do art. 5º da Constituição Republicana, quais sejam, a ocorrência de flagrante delito, desastre, oferecimento de socorro ou mediante a existência prévia de ordem judicial.
3. De fato, a casa constitui a própria extensão da pessoa, o seu refúgio, onde exerce livremente o seu direito fundamental à intimidade e à vida privada, inseridos na própria concepção de dignidade humana, alicerce do Estado Democrático de Direito e objeto de proteção de diversas normas internacionais de caráter supralegal, a citar o artigo 11, 2, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
4. Outrossim, a autorização judicial de busca domiciliar não deve ser proferida ao alvedrio do magistrado, mas encontra seus requisitos e parâmetros expressos, previamente definidos pelo legislador, exigindo-se a demonstração de fundadas razões para autorização da medida, de sua necessidade e adequação ao cumprimento das finalidades previstas no rol do § 1º do art. 240 do Código de Processo Penal, bem como a indicação precisa da casa em que será realizada a diligência e o nome do proprietário ou morador.
5. Forçoso reconhecer que, no caso, o deferimento da medida cautelar de busca domiciliar não se revela idôneo, já que não individualiza minimamente a unidade domiciliar objeto de violação, qual seja, a “casa”, nos moldes definidos pelo inciso I do art. 243 do Código de Processo Penal, que deve ser indicada “o mais precisamente possível”, tampouco informa o “nome do respectivo proprietário ou morador”.
6. Busca domiciliar que possui como característica precípua a referibilidade, não sendo, portanto, um fim em si mesma, estando, ao revés, vinculada ao procedimento investigatório cuja efetividade se procura assegurar. Logo, a medida em questão não pode constituir uma autorização genérica para que se reúna as fundadas razões que deveriam justificá-la, sob pena de subversão total de sua lógica e, ainda, de delegação à autoridade policial não apenas da executoriedade do ato, mas da própria delimitação de seu objeto − a casa −, dos cidadãos que terão os seus direitos fundamentais mitigados e, por conseguinte, do alcance da medida sujeita à cláusula da primazia judiciária.
7. A ponderação de interesses como a segurança pública e a inviolabilidade do domicílio do cidadão e sua intimidade já foi considerada pelo constituinte originário ao determinar as hipóteses excepcionalíssimas que autorizam o ingresso forçado na residência, não podendo ser arguida como escusa para inobservância das regras trazidas no Código de Processo Penal que a justificam e a delimitam.
8. O fundamento de que as áreas em referência seriam “áreas de confronto e de alta incidência de bocas de fumo” não pode amparar o deferimento da medida constritiva nos moldes operados. O ônus decorrente da dificuldade de se apurar a dinâmica da atuação criminosa, com a devida delineação, não pode ser suportado pelos cidadãos titulares dos direitos fundamentais em comento, não submetidos a qualquer investigação, aos quais, portanto, deve ser assegurado o exercício pleno das garantias que decorrem de sua própria condição humana.
9. Logo, a decisão judicial que deferiu a medida cautelar de busca e apreensão não se encontra, nesse particular, revestida de legalidade, ante a inobservância das normas estabelecidas no Código de Processo Penal que disciplinam a questão, estando, nessa parte, eivada de nulidade.
10. É certo que o reconhecimento dessa nulidade poderá alcançar as provas porventura obtidas através desta diligência bem como dos demais elementos delas dependentes, nos moldes do art. 573, §1º do Código de Processo Penal, o que, todavia, não é objeto de exame no presente writ, devendo ser aferido de forma individualizada e no momento processual oportuno pelo juízo competente”.
Nunca é demais, todavia, lembrar com Paulo de Sousa Mendes[8]: “De resto, a proibição de utilização (= valoração) das provas proibidas afigura-se como a melhor maneira de o legislador prevenir a tentação de obtenção das provas a qualquer preço, por parte das instâncias formais de controlo social. É como se o legislador anunciasse aos virtuais prevaricadores: – não sucumbais ao canto de sereia da obtenção das provas a qualquer preço, porquanto isso vos custaria a inutilização absoluta dos meios de prova ilicitamente obtidos, nem sequer se podendo repetir essas provas por outros meios! Por exemplo, se invadistes o domicílio do suspeito sem a devida autorização judicial e nesse local encontrares a arma do crime, então é como se tivésseis destruído essa prova material”.
Só nos resta aplaudir a decisão e acreditar que o Poder Judiciário exerça sua função de garante de todos, pobres ou ricos, moradores da Cidade de Deus ou da Vieira Souto. As regras do jogo contidas na Constituição e na Convenção Americana de Direitos Humanos são para todos, por mais óbvio que possa parecer essa afirmação, mas é cada dia mais necessário lutar pela compreensão do óbvio. O fogoso agente ilegal da lei, no fundo, contribui para a impunidade e, não raro, fica bravo com o juiz que aponta sua postura fraudulenta. Não seria exagero dizer que ele é tão delinquente (ou até mais, pois armado e com “distintivo”) quanto “aqueles criminosos” que pretensamente deveria reprimir. Se iguala na ilicitude, com a agravante da farda, arma e distintivo, ou ainda, da “toga”, nos casos dos mandados judiciais genéricos de busca e apreensão.


[1] MELO E SILVA, Philipe Benoni. Fishing Expedition: a pesca predatória por provas por parte dos órgãos de investigação. http://jota.info/artigos/fishing-expedition-21012017: “Trata-se a fishing expedition de uma investigação especulativa indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado, que ‘lança’ suas redes com a esperança de ‘pescar’ qualquer prova, para subsidiar uma futura acusação. Ou seja, é uma investigação prévia, realizada de maneira muito ampla e genérica para buscar evidências sobre a prática de futuros crimes. Como consequência, não pode ser aceita no ordenamento jurídico brasileiro, sob pena de malferimento das balizas de um processo penal democrático de índole Constitucional”.
[2] PITOMBO, Cleunice Bastos. Da busca e da apreensão no processo penal. São Paulo: RT, 2005, p. 91: “O direito fundamental só pode sofrer diminuição dentro da estrita legalidade. A hipótese de restrição há que estar prevista, modelada, em lei ordinária, consoante a Constituição; ainda, ter fins legítimos e possuir justificativa socialmente relevante. Devem ser considerados, também, os concretos meios, colocados à disposição, da justiça pública, para se atingir o fim desejado”.
[3] TERRA, José Maria; CARVALHO, Thiago Fabres de. Justiça Paralela: criminologia crítica, pluralismo jurídico e (sub)cidadania em uma favela do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.
[4] WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Trad. Nilo Batista. Rio de Janeiro: Revan, 2001; DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2006; GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Trad. André Nascimento. Rio de Janeiro: ICC-Revan, 2008; CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime: o caminho dos GULAGs em estilo ocidental. Trad. Luis Leiria. São Paulo: Forense, 1998; TEIXEIRA, Daniela Felix. Controle penal atuarial e prisão cautelar: o modelo de segurança pública no Município de Florianópolis (2004 a 2008), Florianópolis: UFSC (Dissertação – Direito), 2010.
[5] DUTRA, Luciano. Busca e apreensão penal: da legalidade às ilegalidades cotidianas. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007.
[6] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 731: “Situação absurda, que infelizmente tem se tornado comum, são os mandados de busca e apreensão genéricos, muitas vezes autorizando a diligência em quarteirões inteiros (obviamente na periferia…), conjuntos residenciais ou mesmo nas ‘favelas’ de tal ou qual vila. Claro que os juízes somente expedem tais monstruosidades jurídicas quando se trata de barbarizar os clientes preferenciais do excludente sistema implantado, aqueles para quem a proteção constitucional da casa (e demais direitos fundamentais) é ineficaz, até porque favela e barraco não são casas… e quem lá (sobre)vive não merece nenhuma proteção, pois são os ‘outros’, ou, ainda, a multidão de invisíveis”.
[7] STF, HC 106.566 (min. Gilmar Mendes): “Inviolabilidade de domicílio (art. 5º, IX, CF). Busca e apreensão em estabelecimento empresarial. Estabelecimentos empresariais estão sujeitos à proteção contra o ingresso não consentido. 3. Não verificação das hipóteses que dispensam o consentimento. 4. Mandado de busca e apreensão perfeitamente delimitado. Diligência estendida para endereço ulterior sem nova autorização judicial. Ilicitude do resultado da diligência. 5. Ordem concedida, para determinar a inutilização das provas”.
[8] MENDES, Paulo de Sousa. Lições de Direito Processual Penal. Coimbra: Almedina, 2014, p. 182-183.
Fonte: http://www.conjur.com.br

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