Skip links

A (in)constitucionalidade da imediata prisão pela condenação no tribunal do júri

O Júri popular é o julgamento de crimes dolosos contra a vida, onde os pares são chamados a julgar um processo no qual o juiz togado entendeu haver indícios de materialidade e autoria pelo(s) acusado(s). Assim é o julgamento porque somente há justiça quando o povo julga os seus próprios pares.

A previsão de competência é estabelecida pela matéria (artigo 5º, d, Constituição Federal), e o artigo 74, § 1º, Código de Processo Penal, o qual dispõe que “compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos artigos 121, §§ 1º e 2º, § único, 123, 124, 126 e 127, Código Penal, consumados ou tentados” quais sejam, homicídio, infanticídio, participação em suicídio e aborto.

Contudo, dispõe o artigo 78, I, do CPP que na determinação da competência por conexão ou continência, no concurso entre a competência do júri e a de outro órgão da jurisdição comum, prevalecerá a competência do júri.

Como garantia de um julgamento justo, a Constituição Federal estabeleceu alguns princípios que balizam o procedimento mais democrático.

Não descartando os demais princípios pertinentes a objeto de estudo, pretende-se nessa oportunidade destacar especificamente, por estar mais diretamente ligado ao enfoque do trabalho, a soberania dos vereditos, a qual garante que o mérito das decisões do júri não seja revisado por um juiz togado.

Nas palavras de MARQUES, soberania dos veredictos traduz, mutatis mutandis, a impossibilidade de uma decisão calcada em veredicto dos jurados ser substituída por outra sentença sem esta base (2009, p. 250).

Isso tudo porque o jurado decide após ter acesso aos autos e aos instrumentos do crime, caso solicite ao juiz presidente (art. 480, §3º, do CPP). Julga com imparcialidade, e profere a decisão de acordo com a consciência e os ditames da justiça, salientando nesse ponto que justiça é particular de acordo com a moral do local e época em que o jurado circula.

Em termos práticos, este princípio determina que, em caso de provimento de apelação interposta contra decisão do júri com fundamento no art.593, III, “d”, do CPP, seja realizado novo júri diante da anulação do julgamento anterior. Resumidamente, a apelação provida não tem condão de reformar a decisão.

Sabe-se que o princípio da soberania dos veredictos, assim como nenhum outro, pode ser considerado um absoluto, mas a sua mitigação necessita de razoabilidade com os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.

1.1 Direito ao duplo grau de jurisdição e o princípio da inocência

Mesmo que soberana a sentença da sessão plenária não deixa de abarcar o direito de recurso, pois o duplo grau de jurisdição é a manifestação expressa de insatisfação com uma decisão, valendo referir possíveis arbitrariedades e, inclusive, a falibilidade humana.

O trânsito em julgado ocorre somente quando a sentença se torna irrecorrível, por não decurso de prazo de eventual recurso ou porque todos os previstos já foram julgados. E até que se esgotem todos os recursos está em constante ação o princípio da presunção da inocência, basilar de todas as atividades estatais, sobretudo quando tratamos diretamente com o acusado, pois quando respeitamos o citado princípio, reduzimos as chances de estigmatização prematura do sujeito e uma condenação prévia.

A Declaração dos Direitos do Homem, em seu artigo 9º aponta que “todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa poderá ser severamente reprimido pela lei.

Tal diretriz é considerada um dos norteadores da Constituição Federal e está consagrada, em seu artigo 5°, LVII, estabelecendo que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, isto é, nenhum delito pode se considerar cometido e ninguém pode ser considerado culpado até que haja uma prova contundente sobre a autoria do crime (LOPES JUNIOR, 2008, p. 178), produzida mediante um processo regular.

Nesse sentido, BECCARIA, no final do século XVIII, já enfatizava para o fato de que um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública depois que decidido ter ele violado as condições com as quais tal proteção lhe foi concedida (2008, p. 35).

Permitido, portanto, antecipar, nas palavras de Aury, que não existe prisão obrigatória antes do transito em julgado da sentença penal condenatória (2013, PG. 128). Nenhuma discussão é necessária.

2 MEDIDAS CAUTELARES E PRISÃO PREVENTIVA

Enquanto tramita o processo existem previsões de medidas cautelares para garantir o normal.

Inclui-se nos fundamentos de medidas cautelares ou prisão preventiva como última ratio, o fator perigo criado pela liberdade do investigado ou denunciado, em possível fuga, graves prejuízos ao processo em relação à coleta de prova (ameaça à testemunha ou vítima, por exemplo, ou sua ausência nos atos processuais.

Insta registrar que no processo penal, forma é garantia. Assim, as medidas cautelares só podem ser aplicadas conforme os requisitos das disposições legais.

Compreender as hipóteses do instituto prisão e medidas cautelares em nosso país, é imprescindível para entender na prática a proposta da presente pesquisa sobre a impossibilidade de prisão tão somente por conta da condenação no júri.

Pois bem, inegavelmente mais vantajosa do que qualquer forma de caráter sancionatório do corpo como punição física, existem diversos outros meios para “controlar” o jurisdicionado sob a tutela penal, sendo autorizadas, nos termos taxativos do artigo 319 do CPP, as seguintes medidas cautelares diversas da prisão: comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável e houver risco de reiteração; fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; ou monitoração eletrônica.

Somente se se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares é que deve ser decretada a prisão preventiva, que por sua vez, é admitida para garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria, requisitos esses autorizadores no art. 312 do CPP.

2.1 Obrigatória motivação da decisão prisional sem clamor público como argumento

Aqui, em verdade, reside o busílis da questão.

Por que, por exemplo, importante a pesquisa objeto do trabalho? Por que uma proposta de lei simplesmente ignorou o artigo 312 do CPP ao tornar a cautelaridade da prisão como obrigatória? A resposta guarda relação com o clamor público dos últimos anos no país pela imediata prisão do suspeito numa espécie de vingança coletiva.

É certo que um crime brutal gera sentimento de repulsa em relação ao suspeito do fato criminoso. A sociedade abalada não quer esperar e anseia por uma justiça instantânea, então, brava a favor de uma maior severidade na punição do indivíduo, sempre acreditando que a prisão é a melhor resposta.

O ativismo popular fomentado pela mídia, que explora os fatos de forma exagerada, influencia diretamente na aplicação dos novos preceitos legais, podendo acarretar a inversão dos valores legais e constitucionais. Essa compreensão é evidente na proposta em estudo do pacote anticrime.

Um dado histórico importante no país permitiu essa conclusão, pois com a estrondosa veiculação da operação intitulada lava jato, a população teve conhecimento aberto do quanto a corrupção de bilhões assola uma nação.

Em 2004, o juiz federal Sérgio Fernando Moro, responsável pelo julgamento da alardeada operação publicou artigo acadêmico em que tece Considerações Sobre A Operação Mãos Limpas. Lendo-se o referido artigo, é possível identificar a identidade da estratégia adotada na “Lava Jato”, no modelo de prisão, sua divulgação e, consequentemente, uma maior legitimidade da magistratura. Não à toa os jornais de grande circulação em certos casos fotografavam o exato momento das prisões dos executivos e realmente tinham a informação dos autos antes mesmo dos advogados dos investigados.

Desde então, os estudiosos do direito constitucional e penal percebem uma série de elementos indiciais de que o impacto da mídia cada vez mais acendendo a chama do papel pedagógico da sanção judicial nos noticiários. Quer-se dizer, os magistrados passaram a pautar em suas decisões os anseios da sociedade como justificativa para uma prisão.

O que aqui nos importa é que a pressão social foi fator evidente para chegarmos no dia em que precisamos estar discorrendo sobre o óbvio: prisão antecipada obrigatória vai defronte à presunção de inocência.

Mas talvez estejamos indo pela contramão. Por exemplo, se o recurso é uma etapa do processo, não há trânsito em julgado antes de esgotarem todos os previstos. Mas o STF entendeu diferentemente no HC 126.292, ao permitir a prisão quando a condenação for confirmada no segundo grau. Essa decisão tem estreita relação com a prisão após condenação no júri, pois se o HC referido foi longe, a prisão no júri vai mais além.

Oportuno destacar o voto do ministro Marco Aurélio no acórdão do HC 118.770/SP, parafraseando que a prisão preventiva há de guardar sintonia com o figurino legal, porque, revelando excepcionalidade, inverte a sequência natural do processo-crime. Concluir pela manutenção da medida é autorizar a transmutação do pronunciamento mediante o qual foi implementada, diga-se, ainda não alcançado pela preclusão maior, em execução antecipada da pena, ignorando-se garantia constitucional inafastável da inocência.

Estarmos invertendo a ordem natural abordada nos primeiros capítulos é problema de autoritarismo!

PROJETO DE LEI ANTICRIME E A PROPOSTA DE PRISÃO IMEDIATA EM CASO DE CONDENAÇÃO NO TRIBUNAL DO JÚRI

Como destacado neste enunciado, uma das propostas de alteração do Código de Processo Penal, pelo então Ministro da Justiça Sérgio Moro, através do Projeto de Lei Anticrime é justamente a possibilidade de prisão imediata após a condenação pelo Conselho de Sentença, no Tribunal do Júri.

Seguem os termos da alteração proposta:

CPP: Art. 492………………………………………………..……………………………………………………………….determinará a execução provisória das penas privativas de liberdade, restritivas de direito e pecuniárias, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos;…………………………………………………………………….§ 3o O presidente poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas se houver uma questão substancial cuja resolução pelo Tribunal de Apelação possa plausivelmente levar à revisão da condenação.§ 4o A apelação interposta contra decisão condenatória do Tribunal do Júri não terá efeito suspensivo.§ 5o Excepcionalmente, poderá o Tribunal de Apelação atribuir efeito suspensivo à apelação, quando verificado cumulativamente que o recurso: I – não tem propósito meramente protelatório; II – levanta uma questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento, substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou alteração do regime de cumprimento da pena para o aberto. § 6o O pedido de concessão de efeito suspensivo poderá ser feito incidentemente no recurso ou através de petição em separado dirigida diretamente ao Relator da apelação no Tribunal, e deverá conter cópias da sentença condenatória, do recurso e de suas razões, das contrarrazões da parte contrária, de prova de sua tempestividade, e das demais peças necessárias à compreensão da controvérsia.
O que se evidencia da leitura é que a preocupação maior do proponente consiste na prisão do réu condenado, já em primeira instância, com expedição do mandado de prisão, e em tornar exceção a possibilidade de se recorrer em liberdade.
O feito demonstra falta de concordância com o sistema legislativo vigente, o que é absolutamente preocupante, existe uma expectativa de relativização de princípios e garantias fundamentais que são basilares do sistema processual penal brasileiro, inclusive garantias sedimentadas pela Convenção Americana de Direitos Humanos.
Ab initio, cumpre destacar, como dito previamente, a violação do princípio da presunção de inocência, predisposto no artigo 5º da Constituição Federal, que disserta que “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” e o direito ao duplo grau de jurisdição, previsto no artigo 5º, LV, da Carta Magna e artigo 8.2.h da Convenção Americana de Direitos Humanos, que dispõe os seguintes enunciados, este, “direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior” e aquele, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
A proposta acaba por não considerar que em segunda instância pode haver inclusive a cassação da decisão tomada no julgamento pelo Tribunal do Júri, que como foi visto não viola o princípio da soberania dos vereditos, afinal a cassação não é reforma do veredito, pois no recurso de apelação pode haver uma análise fática do caso.
A cassação pode levar o réu a outro julgamento pelo Tribunal do Júri, diante da anulação daquele viciado, inclusive modificar o apenamento, logo, sendo determinante na fixação do regime de cumprimento da pena.
A relativização dessas garantias é capaz de gerar danos irreparáveis, haveria uma deturpação do que deveria ser uma garantia constitucional em benefício do réu (ser julgado no Tribunal do Júri pelos seus pares) com a injustiça diante de prisões sistematizadas, além do aumento exacerbado do encarceramento de acusados inocentes. Literalmente criaria um abismo do compromisso do Estado frente às garantias do cidadão.
BOSCHI levantou justamente as questões de indignação doutrinária e a chancela da jurisprudência garantista do país, que deveria agir em prol da cidadania e da supremacia dos direitos e das liberdades fundamentais, e concluiu que não há como executar-se a sentença condenatória, ou implementar seu feito principal enquanto pender julgamento do recurso (2010, p. 413).
Como foi dito, a prisão deve ter caráter excepcional e sua fundamentação deve ser idônea, inclusive para que se mantenha a prisão cautelar decretada no decorrer do processo, após encerrada a instrução, deve haver análise do caso concreto e novamente o magistrado deve fundamentar pela sua mantença.
Ou seja, quando estiverem presentes os requisitos para decretação da prisão preventiva, aí sim pode o magistrado mantê-la ou decretá-la (caso o réu esteja solto) em caso de condenação em plenário. É o que dispõe o artigo 492 do CPP, que trata do procedimento do Júri.
É o que foi trabalhado por NASSIF quando relata que embora haja maior comoção social, quando se trata do delito de homicídio, após condenação não pode haver inspiração para permanência da prisão que não seja aquela de natureza processual. Observando-se os requisitos legais (2017, p. 263).
Levando em consideração que a redação atual permite a prisão do réu após condenação em plenário, desde que hajam os requisitos legais preenchidos, é evidente que o projeto de lei anticrime, neste aspecto, não traz nenhuma alternativa útil para melhora procedimental. Baseia-se na reposta rápida ao clamor social pela prisão dos acusados.
É cristalina a preocupação em fornecer uma “reposta rápida” para a sociedade através da prisão, o que de modo algum resolveria os ditos problemas de impunidade, e também, aumentaria a fragilidade de um código que sequer passou por um filtro constitucional e já é precário o suficiente.
A prisão imediata após a condenação no Júri remonta um pensamento de senso comum que muitas vezes também é disseminado na academia. O chamado movimento lei-ordem contempla uma explosiva maioria da população, como dispõe BUENO DE CARVALHO, trata-se de algo como uma pentecostalização da verdade punitivista, que tendo a imprensa como orientadora intelectual, resulta da dramatização da violência (2013, p.41).
O atropelo de garantias constitucionais não se mostra a saída mais eficiente para a resolução de problemas de segurança pública, ou sequer qualquer problema que tenha sido pensado quando da criação da proposta supra, visto que sequer há exposição de motivos para este projeto de Lei.
Há muito era destacado por BATISTA que se tratando de Política Criminal, a mera função punitiva do Estado é uma limitação dentro do que existe de mais moderno neste âmbito, que ao invés de suprimir garantias, deveria haver a humanização e estruturação para transformação social e institucional, visando a construção de igualdade e da democracia (2005, p. 37).
Não é possível que haja maior depreciação do código de processo penal brasileiro, e que a legislação ordinária não tenha o mínimo de adequação ou filtro constitucional, como foi retratado, forma é garantia, e somente há segurança jurídica quando se observam os princípios contemplados pelo texto constitucional.

CONCLUSÃO

Diante do que foi trabalhado, conclui-se que a prisão imediata do réu em caso de condenação pelo conselho de sentença no tribunal do júri é terminantemente ilegal e inconstitucional.
Verificou-se que a legislação ordinária já dispõe de dispositivo que autoriza a prisão após a condenação caso estejam presentes os requisitos. Que o projeto não traz nenhuma novidade processual, senão a excepcionalidade de se recorrer em liberdade.
A relativização de garantias sedimentadas pela constituição não podem gerar outro resultado que não o prejuízo para o cidadão, tendo em vista que o processo penal é um caminho necessário para a aplicação da pena, haveria uma grande quantidade de injustiças em razão da prisão nestes termos.
Infelizmente a própria academia abraça discursos punitivistas, e incorporam em suas capacidades a operação do senso comum, aquele que quer resposta imediata, que vê no curto prazo a prisão como solução, mas que sequer vislumbra o perigo decorrente deste atropelo sem filtro constitucional.
O projeto de lei anticrime no âmbito que refere ao tribunal do júri demonstra total falta de desconexão entre o entendimento do proponente com a realidade da justiça brasileira, não vislumbra sequer projeção por analogia, visto que não existe nenhum estudo sério que demonstre que a pena de prisão pode reduzir a impunidade ou a criminalidade.

X