A insurreição do ministro Gilmar Mendes contra o realismo jurídico
Por André Karam Trindade e Lenio Luiz Streck
Realismo jurídico (especialmente “o realismo à brasileira” rima com juristocracia — sempre indicando o livro Towards juristocracy, de Ran Hirschl). Denunciar esse estado de coisas que vem crescendo, dia após dia, no Brasil, tem seu preço. Lamentavelmente. E ele é ainda mais caro quando a crítica é legítima, necessária e intramuros.
Na última quinta-feira (15/12), os juízes federais dos estados de São Paulo e de Mato Grosso do Sul, por meio de nota subscrita por sua associação de classe (Ajufesp), sugeriram que o ministro Gilmar Mendes renunciasse à toga e se tornasse comentarista, tendo em vista que ele “vem reiteradamente violando as leis da magistratura e os deveres éticos impostos a todos os juízes do país, valendo-se da imprensa para tecer juízos depreciativos sobre decisões tomadas no âmbito da operação ‘lava jato’ e mesmo sobre decisões de colegas seus”.
Isso porque, no dia anterior, em entrevista ao Estado de S. Paulo, o ministro Gilmar Mendes declarou que a decisão (do ministro Luiz Fux) que anulou a tramitação do projeto de lei referente às 10 medidas contra a corrupção era um “AI-5 do Judiciário” e, ainda, que seria “melhor fechar o Congresso e entregar as chaves ao (Deltan) Dallagnol (coordenador da força-tarefa da ‘lava jato’)”.
Qual o problema da manifestação do ministro Gilmar? Depende. Vejamos. Para a Ajufesp, o problema é que o Estatuto da Magistratura aplica-se a todos os juízes do Brasil e, portanto, o ministro está proibido de manifestar “por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério” (artigo 36, III, LC 35/79). Para nós, o problema é que o ministro Gilmar tem razão!
Dito de outro modo, a nota da Ajufesp transforma o problema secundário no principal! Além disso, é curioso como seus posicionamentos são pautados por um juízo de mera conveniência, uma vez que a associação sempre apoiou o magistrado da “República de Curitiba” (sic), especialmente após ele cometer um rosário de ilegalidades (interceptações não autorizadas, provas ilícitas, vazamento de informações sigilosas etc.).
Vejamos outro exemplo envolvendo os mesmos ministros. Durante a penúltima sessão do ano no Tribunal Superior Eleitoral (assista aqui), ao retomar o julgamento do REsp 7.586, de relatoria da ministra Luciana Lóssio, discutiu-se a incidência da jurisprudência do STF sobre a Lei da Ficha Limpa em caso relativo ao município de Abelardo Luz (SC).
Após os ministros Gilmar Mendes, Luciana Lóssio e Napoleão Nunes Maia Filho votarem pelo improvimento do recurso do MPE — e os ministros Rosa Weber e Herman Benjamin divergirem —, houve um caloroso debate acerca da situação absurda que resultaria da simples aplicação da jurisprudência do STF diante da singularidade do caso concreto. Na ocasião, o ministro Luiz Fux revelou sua vertente realista ao afirmar: “O absurdo está chancelado pelo Supremo. E o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é”.
Imediatamente, o ministro Gilmar contestou: “Não, ministro. Isso, não. Aí não. De jeito nenhum. Se o Supremo chancelar absurdos… O Supremo não faz do quadrado um redondo. Data vênia, isso não é conceito que se possa sustentar. Nem o Código Fux sustenta isso. E nós não podemos chancelar. E eu mesmo vou defender a insurreição contra esse tipo de jurisprudência”. O ministro Henrique Neves pediu vista, pondo fim à discussão, enquanto o ministro Luiz Fux esclareceu que, na verdade, estavam em concordância, uma vez que o caso sob exame exigia a realização do devido distinguishing, sob pena de se prolatar uma decisão inconstitucional.
Veja-se: de novo, o ministro Gilmar tem razão. Claro que ele mesmo por vezes se contradiz. Ou se corrige. Por exemplo, no episódio em que o juiz Sergio Moro vazou ilegalmente as conversas telefônicas entre Lula e terceiros, incluindo a presidente Dilma, ele considerou esses vazamentos como regulares. Particularmente, levando em conta a posição de defesa da Constituição do ministro e do professor de Direito Constitucional, estranhamos, à época, sobremodo tal manifestação. Depois, o STF definiu que, de fato, Moro errara ao divulgar as escutas.
Agora, no episódio envolvendo a delação do ex-diretor de Relações Institucionais da Odebrecht, o ministro Gilmar foi enfático ao referir a necessidade de se anular os acordos de colaboração premiada cujo teor foi publicizado à revelia da lei e da Constituição. Está corretíssimo sua excelência! No caso, o ministro Gilmar fez um correto overruling de sua posição anterior. Assim é que tem de ser. Nem o STF nem um ministro em particular têm o direito de errar por último. E tampouco podem dizer que o Direito é o que o STF diz que é. As declarações do ministro Gilmar, na discussão travada no TSE, podem ser um importante começo para o enfrentamento das velhas teses realistas que tanto ainda fazem sucesso no Brasil. Façamos um overruling das teorias de Holmes. E de todos os autores que sustentam esse tipo de tese. Por quê? Porque vivemos — e assim queremos permanecer — numa democracia.
A “coisa” está tão complexa e dicotomizada no Brasil que sempre é difícil falar sobre algo especialmente quando estão envolvidos ministros da suprema corte ou altas autoridades dos Poderes. No caso, pelo “princípio da caridade”, chamamos à colação, a nosso favor, o sétimo aforismo de Wittgenstein (sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar), porém na sua forma invertida: sobre aquilo que não se pode calar, deve-se falar! Eis um dever republicano, cada vez mais raro nos dias de hoje.