A NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE
Autor: Valério Saavedra
Criminalista – Presidente da ABRACRIM/PA
Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas no Estado do Pará
Foi finalmente sancionada a nova Lei de Abuso de Autoridade, tendo sido vetados 38, dentre os 108 dispositivos do novel diploma legal.
A Lei ainda não entrou em vigor, porque submetida a vacatio legis, em período de 120 dias.
Esse novo Estatuto, que recebeu o Nº 13.869/2019, revogou a Lei Nº 4.869/65, o qual, posto de ação pública, ao fim e ao cabo, acabava por proteger abusadores da autoridade, eis que submetida à indispensável e prévia representação, por isso, entre outras inconsistências, desprovida de sincronia, e ainda por incompatibilidade com a nova ordem jurídica, clamava por inovação, sem deixar também de se prestar de anteparo aos atuais avanços persecutórios, levados a termo pelo Estado-Administração.
Diversos são os pontos importantes trazidos pelo novo Diploma Legal, merecendo destacarem-se, em que pese regular condutas graves, olvidou a lei da pena de reclusão, elegendo somente as penas de detenção e de multa, cominando com 6 (seis) meses a 2 ou então, com 1 (um) a 4 anos, e multa, fato que inevitavelmente as insere na categoria dos delitos de menor potencial ofensivo, não esquecendo, ainda, que o legislador de 2019 não alude a qualquer tipo de majorante penal.
Cuida-se, portanto, de uma lei que, em princípio, atropela a própria judicatura, como adiante se verá.
Diz-se isso para a hipótese de procedimento recursal, em que caberia Apelação, mas em vez desta, certamente, preferiria o réu lançar mão da lei do abuso de autoridade, fazendo dessa forma nascer no espírito do julgador penal, uma dúplice expectativa, a partir do jurisdicionado-alvo.
Sabe-se que somente ao juiz togado é conferido a função institucional de proferir sentenças e despachos de natureza criminais; sabe-se, também, que dessas sentenças e despachos, segundo a sistemática de recursos em nosso Direito Processual Penal, estejam eles, ou não, em conformidade com a lei, o destinatário da decisão dispõe de procedimentos específicos para exteriorizar seu inconformismo.
De regra, sucede que, dentre as autoridades brasileiras, dada a própria natureza de seus cargos, estão mais relacionados a autoria desse tipo de infração, em primeiro lugar, em sede de Poder Executivo, as autoridades policiais em geral, (Delegados e Secretários de Segurança); no Poder Judiciário, juízes de primeira instância, desembargadores, ministros.
E quando o autor do abuso, é juiz de direito, ele não vai jurar suspeição? Sucessivamente?, até que o feito vá parar na mão do Corregedor?
Lembremos que o prazo da instrução é implacável.
No dia a dia dos fóruns brasileiros, são deferidas milhares de ordens de habeas corpus, remédio constitucional edificado constitucionalmente, a conceder.
“habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou a abuso de poder” (CF, art 5º, inc. iaLXVIII).
No caso de a decisão deferitória da ordem liberatória, este ato da autoridade judiciária que determinou a detenção do acusado, necessariamente, será passível de reforma, através de recurso.
Como se verifica, a própria existência do recurso, no juízo recursal e no sistema de leis proocessuais do País, corresponde a existência de crime de abuso de autoridade.
Contra esse estado de coisas, é que ilustre Presidente da AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros, Dr. Jaime de Oliveira, entende a questão como sendo uma resposta do mundo político, notadamente, contra a corrupção, em face da famosa operação Lava-Jato, razão pela qual declarou:
“Nítido o propósito de amordaçar a magistratura brasileira, impedindo-a de julgar livremente, de acordo com as leis e a Constituição”.
De acordo com o pensamento da AMB, “Já há notícia de decisões deixando de impor bloqueio judicial de valores ou revogando prisões cautelares, sob o fundamento de que há incerteza jurídica sobre o fato de estarem ou não praticando crime de abuso de autoridade”, diz a Associação.
Mas, como é sabido, o Presidente Jair Bolsonaro vetou diversos artigos da Lei, vários deles atendendo a pedido da própria AMB, vetos estes que, todavia, restaram derrubados pelo Congresso Nacional, em sessão conjunta, no dia 24 de setembro de 2019, reestabelecendo integralmente oito artigos, e, parcialmente, outros dois dispositivos.
A certeza desse fato solidifica no seio da sociedade brasileira a preocupação quanto o propósito de que o Legislativo federal, de fato, estaria pesando em desfavor do Congresso, a acusação de romper com o pacto federativo.
Nesse sentido, observamos que a AMB questiona na Corte Máxima a constitucionalidade dos artigos 9º, parágrafo único, incisos I, II, III, artigos 10, 19, 20, 27 e seu parágrafo único; e artigos 30, 32, 33, 36, e 43, da Lei Nº 13.869/2019, em cujo feito encontra-se sob exame do ministro Celso de Melo.
Nos parece que essa ação resultou de proposta açodada, eis que após ser sancionada, ainda não foi promulgada, e promulgar pressupõe integrar a lei no repositório legal do País, embora a norma já tenha sido publicada, isto é, dado conhecimento geral de seu edito.
De fato, a proposição da ADI da Lei de Abuso de Autoridade de pronto, afronta o enunciado da Súmula 266, do Supremo Tribunal Federal – STF, cujo diploma se qualifica como ato em tese, considerando as leis e seus equivalentes constitucionais, que dispõem sobre situações gerais que tenham alcance genérico, reguladoras de normas em abstrato.
Mas, em que pese a preocupação da classe dos julgadores, o legislador não iria deixá-los ao desamparo, desprovida de proteção jurídica endógena.
Vale questionar o por quê de somente os juízes estarem a questionar a Lei. Por conta de seu ofício, seriam eles os principais agentes ativos de incorrer nessa prática.
Temos no artigo 1º, § 1º, referência chamado dolo específico, ocorrente nas condutas rotuladas como abusivas de autoridade.
Já no § 2º, do mesmo do mesmo dispositivo, verifica-se a manutenção da liberdade, autonomia e soberania na interpretação da norma pelo julgador.
Como visto, necessária a presença da intenção de prejudicar alguém, no agir judicial, de forma que a chamada meta interpretação, ou metanorma dos fatos afasta a incidência da Lei, verbis,
Art. 1º Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.
§ 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
§ 2º A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.
Como se verifica da leitura do texto da Lei, refere um tempo em que o fenômeno jurídico sucede, ou seja, somente quando ficar patenteado que a prática delitiva decorre de finalidade específica tendente a prejudicar interesse de terceiros, ficando o suposto agente com a mais ampla liberdade para interpretar a norma legal a ser aplicada ao caso concreto, considerados, além da liberdade hermenêutica do texto normativo em si, como também a avaliação subjetiva dos fatos e circunstâncias do evento delituoso.
Seguindo essa linha de raciocínio, não merecem, pois, prosperar reclamações e ataques, provindos de classes ou segmentos profissionais diretamente interessados na questão, máxime quando procedidos a destempo e desprovidos de uma avaliação mais aprofundada e criteriosa.
Resta examinar a quantas andam as consequências causadas a partir dos vetos proferidos pelo Presidente da República.
O veto sobre os dezenove dispositivos da Lei considerada projetou, graves e danosas consequências, inclusive, de índole inconstitucional, contrariando vontade do Poder Legislativo.
A nova lei agora editada, estabelece outros contornos à matéria, determinando, por essa razão, a revogação da legislação anterior, a Lei Nº 4.869/65, que regulava o assunto.
Também restou revogado o artigo 350, do Código Penal, cujo dispositivo estabelecia “ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”. A pena era detenção, de um mês a um ano, sendo que a lei nova criou tipo penal mais contundente, estabelecendo regime penal muito mais gravoso, e, em que pese não sancionar o delito com pena de reclusão, forçoso é reconhecer que significa um freio na escalada de infrações usualmente atribuídas aos agentes públicos.
O maior problema que a edição da Lei criou, encontra-se justamente em seu modo de operacionalização prática, sabido que nunca se noticiou na história do Judiciário brasileiro a respeito de uma condenação de autoridade, no regime da lei anterior (Lei Nº 4.869/65).
Naquele regime, como se sabe, os crimes eram de ação pública, condicionada à representação; agora, os crimes são de ação pública incondicionada, o que em nada mudou no campo de atuação efetiva do poder de império da norma legal.
São muitas, enfim, as discussões que os vetos referidos e não referidos ainda vão causar, no cenário jurídico nacional, mas nada que a boa jurisprudência e doutrina não possa, posteriormente, e diante de casos concretos, arrumar.