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A Política criminal de drogas vs Ideologia da guerras às drogas

A Política criminal de drogas vs Ideologia da guerras às drogas

Fabio Henrique Rovatti

A política criminal de drogas no Brasil, após o advento da Lei 11.343/2006, passou a indicar um caminho com viés “proibicionista-punitivo”, conforme exemplo dos Estados Unidos, porém com um modelo de controle moderado. Isso se deve há décadas de experiências com legislações de drogas, análises empíricas e compromissos assumidos em convenções internacionais sobre política de drogas, individualizando e diferenciando o tratamento ao usuário e relação ao traficante. (RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre as drogas ilícitas: impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. 2006. Tese (Doutorado)–Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. Pag. 252-253).

No entanto, problemas decorrentes do próprio texto de Lei de Drogas, da precarização da estrutura estatal e uma judicialização extremamente repressiva levaram a um novo tipo de enfrentamento nas ações de políticas de drogas no Brasil.

E seguindo este modelo proibicionista moderado, a lei de drogas tentou ao menos dar um caráter preventivo à política criminal de enfrentamento de acordo com os artigos 18 e 19, indicando que seria não somente um problema criminal mas também de saúde pública e assim criar uma metodologia de ações públicas direcionadas a prevenirem o uso indevido da droga.

O problema, no entanto, é evidenciado quando se constata a precarização e a deficiência estrutural do Estado, tornando inócuo o caráter preventivo, conforme observam Vicente Grecco Filho e João Daniel Rassi:

“Medidas implementdas nos arts. 18 e 19. Não há dúvida de que o enfrentamento do problema do uso indevido de drogas, a prevenção ocupa papel importante (…) todavia, por serem apenas hipotéticas, porque, como costuma acontecer no País, não vem acompanhadas dos meios para serem implementadas. Falta, na lei, e em outras como, por exemplo, a do crime organizado, a cláusula financeira, isto é, alocação de recursos para custear as medidas. Além disso, qualquer medida preventiva específica tem por pressuposto necessário a melhoria da educação, da saúde, das relações familiares, das condições da infância e juventude e de todo dos os demais fatores de desenvolvimento social.” (FILHO, Vicente Greco e RASSI, João Daniel. Lei de Drogas Anotada. 2ª Edição. Saraiva: 2009. p. 37-38).

É clara a tendência moderadora da política antidrogas, pois de um lado o legislador despenalizou a posse de entorpecentes e retirou do tipo a pena privativa de liberdade, mas de outro lado, o crime de tráfico de drogas ilícitas (artigo 33 da Lei 11.343/06) teve grande relevância punitivista, ante a majoração da pena comparada a lei anterior que vedou a concessão de benefícios não proibidos sequer pela Lei nº 8.072/90, em especial o sursis e as penas restritivas de direitos.

No mesmo dispositivo criou-se um redutor da pena (§ 4º, art. 33, da Lei nº 11.343/2006), cujo objetivo era não penalizar o mero passador, denotando mais uma vez o caráter moderador da lei, destinado em especial para aquelas pessoas mais vulneráveis socialmente (mulheres, jovens, travestis, etc) e por se tratar na maioria das vezes de pessoas cujo perfil criminal é de menor periculosidade. Neste último, sabe-se que muitas vezes o usuário é levado a praticar o tráfico com o objetivo de custear o seu consumo de droga, razão pela qual o Legislador tentou assim estabelecer um critério mais humanista e menos repressor/punitivista.

Sérgio Salomão Shecaira observa que este dispositivo, embora tenha uma aplicação de pena mitigada para o mero passador, considera como hedionda a conduta de traficar, tirando mais uma vez o caráter de política criminal do dispositivo da Lei de Drogas, senão vejamos:

“a própria legislação vigente recomenda, em algumas hipóteses e circunstâncias, a adoção de penas mitigadas (art. 33, § 4º, c/c art.42), por entender desnecessária a pena do caput do art. 33 nas hipóteses em que não se reconheça no agente do delito a condição de traficante contumaz, mas de mero “passador” eventual. Se assim é, porque persistir a condição de hediondez também nessas hipóteses? Demais disso, não se reconhecendo em algumas figuras do art. 33 da Lei de Drogas a condição de crime hediondo, não estariam submetidos tais fatos ao restritivo mecanismo de submeter o autor do crime ao regime obrigatório da pena privativa de liberdade, conforme determinação do art. 1º da Lei nº 11.464/07”. ( SHECAIRA, Sérgio Salomão; ANDRADE, Pedro Luiz Bueno de. A Lei de Drogas e o Crime de Tráfico. Publicação no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, ano 15, nº 177, agosto 2007, p. 2-3).

E muito embora a lei antidrogas tenha dado um tratamento diferenciado entre o uso e o tráfico, o § 2º do artigo 28 da Lei 11.343/2006 estabeleceu um critério subjetivo para determinar se a posse é para o consumo pessoal do indivíduo que é encontrado com drogas, deixando às discricionariedades do Delegado e do Juiz, conforme o enquadramento de usuário ou de traficante de drogas, denotando que o próprio texto permite estabelecer uma prática seletiva e de caráter secundário .

Dentro deste contexto, mais uma vez nota-se a inconsistência de políticas criminais, tudo agravado pela ausência de investimentos na polícia civil, o que torna as investigações criminais precárias e ineficazes, cuja consequência principal é impedir uma apuração mais detalhada do delito, privilegiando, por outro lado, a polícia ostensiva e as prisões em flagrantes, o que nesta segunda hipótese confere à polícia muitas vezes a tipificação inicial. Por consequência, gera muitas vezes dúvida sobre o verdadeiro propósito do acusado e favorece ainda mais a seletividade penal, cuja tese é corroborada por Alba Zaluar:

“Devido às nossas tradições inquisitoriais, a criminalização de certas substâncias, como a maconha e a cocaína, conferiu à polícia um enorme poder. São os policiais que decidem quem irá ou não irá ser processado por mero uso ou por tráfico, porque são eles que apresentam as provas e iniciam o processo (ZALUAR, Alba. Integração pervsersa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 33).

Passados alguns anos, e diante da notória precarização e deficitárias políticas criminais anti drogas, aliada a subjetividade com que é tratada as imputações para as condutas de uso e de tráfico, alguns Tribunais passaram então a utilizar do provimento jurisdicional como instrumento para viabilizar uma verdadeira guerra às drogas, o que gerou uma ação muito mais ideológica e de menos de política criminal, através de uma judicialização extremamante repressiva-punitivista.

Não se trata de uma guerra às drogas como aquelas operações realizadas por órgãos de controle formal (polícia) em morros e favelas no combate ao tráfico de entorpecentes. Mas uma guerra de narrativas, cuja arma é a interpretação da Lei de Drogas e aplicada nas Decisões Judiciais de alguns Tribunais nos crimes que apuram a conduta de tráfico e uso, numa inequívoca ideologia de que decidindo com um rigor repressivo e extremamente punitivista, estariam, portanto, combatendo a droga no País.

Por exemplo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na maioria de suas Câmaras, tem divergido até mesmo de entendimentos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, sob a justificativa que a droga é a fonte geradora de outros crimes (furto, roubos, homicídios, etc) e está associada a disseminação da criminalidade, tudo resultado de uma cultura equivocada que a droga seria a única culpada de todos os males da nossa sociedade, esquecendo, por exemplo, os notórios e os antigos problemas da política carcerária.

Em matéria publicada no site www.conjur.com.br foi analisado o rigor excessivo das Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, divergindo até mesmo de Jurisprudências do STJ e STF: “Levantamento feito para o Anuário da Justiça São Paulo 2019, que será lançado em 11 de setembro, dá medida ao rigor bandeirante contra traficantes. Em 11 das 16 câmaras julgadoras, o entendimento majoritário é o de que o condenado pelo delito deve iniciar cumprimento de pena encarcerado. Mesmo que a obrigatoriedade do regime fechado, detalhada no parágrafo 1º do artigo 2º da Lei dos Crimes Hediondos, tenha sido declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em 2012.E para nove delas, a aplicação do chamado tráfico privilegiado, destinado a traficantes iniciantes e sem ligação com o crime organizado, não retira a hediondez do delito. Isso significa que benefícios prisionais e progressão de regime seguirão regras mais duras do que as delegadas a crimes comuns. Redutor de pena previsto no parágrafo 4º do artigo 33 da Lei de Drogas, o tráfico privilegiado já foi declarado não-hediondo pelo STF em 2016, em decisão que não tem efeito vinculante, porque tomada em Habeas Corpus. Esse entendimento é seguido pelas 5ª e 6ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça, que julgam matéria criminal.” (Vital, Danilo. “Anuário da Justiça – TJ-SP ignora Supremo, mas usa literatura médica para condenar por tráfico”, https://www.conjur.com.br/2019-ago-29/tj-sp-defende-maior-rigor-trafico-pune-dose-letal, 29/08/2019).

Na prática esta seletividade penal acaba sendo associada diretamente a uma política repressora-punitivista direcionada a determinada classe social (pobres), grupos raciais (negros e pardos) ou grupos que são socialmente vulneráveis (por exemplo travestis e prostitutas), o que é confirmado através do trabalho de pesquisa de levantamento de dados realizado pelo Conselho Nacional de Justiça: “Audiência de Custódia, Prisão Provisória e Medidas Cautelares: Obstáculos Institucionais e Ideológicos à Efetivação da Liberdade como Regra”.

O estudo indica que entre o período de 2015 a 2017 houve um percentual de 57,2% de pessoas que foram presas em flagrante por crime de tráfico de drogas, sendo que embora tenham passado pelas audiências de custódia, permaneceram presas aguardando o julgamento. E enquanto os detidos negros representavam um percentual de 55,5% de presos e 35,2% que tiveram concedida a liberdade provisória, já em relação ao indivíduo da cor branca, o número representou 49,4% de presos e 41% que tiveram concedida a liberdade provisória. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Audiência de custódia, prisão provisória e medidas cautelares: obstáculos institucionais e ideológicos à efetivação da liberdade como regra. Pag. 74. Disponível em:

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