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A presunção de inocência como fundamento de um processo penal democrático

A presunção de inocência como fundamento de um processo penal democrático

Stênio Castiel Gualberto

Professor de Direito Penal e Processo Penal. Advogado Criminalista

Em tempos tão turbulentos o debate acerca da presunção de inocência tem sido pauta de calorosos debates, apaixonados ou técnicos, com ou sem viés político, mas o fato é que o direito penal em suas mais variadas vertentes é o assunto do momento, o que nos indica que não trilhamos bons caminhos…

Para que se estabeleça uma discussão isenta a respeito do assunto é necessário que se compreendam as bases teóricas do processo penal como fundamento necessário à existência de um Estado Democrático de Direito.

É notório que a percepção que se faz do direito penal é bastante equivocada quando se parte da ideia de que a função do Estado é a punição dos infratores da ordem legal mediante um processo. Não se pode restringir a existência e a importância do processo penal a partir de tal premissa, dado que a evolução social dos países democraticamente organizados denota que a função do Direito penal não é ampliar o poder punitivo do Estado, mas justamente o inverso. Limitar a força sancionadora estatal.

A Carta Constitucional de 1988 ao longo de várias de suas instruções estabelece por inúmeras vezes que o poder repressor do Estado deve operar dentro dos limites legais de privação de liberdade e restrição de direitos do indivíduo, face a maior e muito mais abrangente suficiência estatal em punir os indesejáveis.

No mesmo sentido o Código Penal brasileiro em seu primeiro artigo limita o poder punitivo aos ditames de modelos de conduta previstas previamente como típicas e restringe o alcance das punições às balizas das penas previstas abstratamente.

É necessário a partir dessa primeira análise entender que o ordenamento jurídico penal (no sentido material ou formal) se configura em uma força de contenção da capacidade quase absoluta do Estado de punir sob seu arbítrio se assim o desejar. A limitação à tal poder se materializa justamente nas previsões normativas de garantias de direitos do indivíduo frente a potencial capacidade estatal de impor sanções, dado que a jurisdição lhe é de competência exclusiva.

O processo penal tido como busca de uma suposta verdade deve ser analisado a partir de princípios que garantam ao acusado a mais ampla possibilidade de promover defesa, determinando-se como garantias fundamentais regras básicas de limitação da capacidade de acusação bem como de eventuais julgamentos parciais.

Tais regras devem ser tomadas como premissas básicas de processo penal dado que as condições de se punir um indivíduo são sempre muito mais amplas quando o mesmo não possui em seu favor possibilidades de haver contrapesos à sanha punitiva.

E é justamente a partir de tal raciocínio que a presunção de inocência surge senão como o principal, certamente como um dos primordiais institutos jurídicos de garantia de processo democrático. É sabido que a persecução penal se desenvolve através de mecanismos de controles de órgãos juridicamente competentes para a revisão de decisões proferidas. A possibilidade de correção de eventuais erros garante que ao final de todo o trâmite processual a ocorrência de uma decisão equivocada seja amplamente dirimida.

Para estipular em qual momento tem-se como certa a definição da modificação do estado de um indivíduo em relação à sua condição de inocente, estabeleceu o legislador constituinte o trânsito em julgado de decisão que venha a condenar o acusado por crime.

A Carta Constitucional é demasiadamente explícita quando em seu Art. 5º, inciso LVII define que: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.

Ora, por qual razão o legislador constituinte teria determinado de maneira expressa que absolutamente ninguém altera sua condição de inocente a não ser após o encerramento de qualquer possibilidade de recursos em eventual condenação se a intenção ou a análise da definição da culpa devesse ser realizada sob outros aspectos?

Nos parece que a interpretação de regra tão explicitamente clara a partir de entendimento diverso demonstra muito mais fortemente um inconformismo com tal previsão do que propriamente a análise de tal regramento a partir de técnicas de interpretação conhecidas.

O legislador ordinário, em 2011 promoveu uma alteração no Código de Processo Penal, mais especificamente no artigo 283 estipulando que as alternativas de restrição de liberdade individual deveriam se restringir às possibilidades de prisões cautelares e em previsão explicitamente expressa, à execução de pena após o trânsito em julgado.

Devemos, portanto, ao interpretar a legislação processual penal à luz da Constituição de 1988 e compreender que a determinação da alteração da inocência presumida para a culpa formada dever se dar após o trânsito em julgado tem o condão entre outros, de impedir que alguém inocente juridicamente cumpra pena.

Ocorre que parafraseando o Min. Marco Aurélio do Supremo Tribunal Federal, estamos enfrentando “tempos estranhos”. Tempos amplamente influenciados por um bombardeio intenso de informações, muitas vezes desencontradas e recheadas de percepções influenciadas por paixões políticas que podem gerar distorções a respeito da realidade.

As atuais discussões a respeito da relativização de princípios fundamentais presentes na Carta Constitucional têm sido cada vez mais frequentes e cada vez mais tendentes a retirar da esfera jurídica o debate. Uma preocupação em produzir determinados resultados a partir da relativização de tais garantias não só é preocupante como é atentatório à própria existência de um processo penal democrático, construído a partir de garantias individuais.

Quando se pensa um modelo de um processo penal constitucional imbuído do espírito democrático da Carta Maior e extremamente zeloso com a necessidade de se opor ao arbítrio inerente a qualquer força que porventura se encontre sem barreiras à sua atuação, vislumbra-se de modo mais cristalino a necessidade de tratar tais relativizações como atentatórias à própria existência democrática das garantias fundamentais.

Nunca é demais recordar que a Constituição de 88 é e sempre será o instrumento maior de resistência à mera possibilidade de arbítrio do Estado em face do indivíduo e, portanto, deve ser sempre louvada, entendida e guardada como tal.

O direito penal e o processo penal devem ser bastiões de rechaço ao poder desmedido, os anteparos estabelecidos por uma sociedade que se quer democrática, ainda que dentro deste cenário eventuais resultados indesejados devam ser tolerados. Em tempos estranhos a preservação dos institutos jurídicos democraticamente estabelecidos de proteção ao indivíduo, sempre será o caminho mais eficaz de organização e pacificação social.

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