A questão da prisão após a segunda instância, na visão da ABRACRIM-GO
Liberato Póvoa
Sedento para coibir a impunidade, o brasileiro sentiu um grande alívio quando o Supremo Tribunal Federal, no dia 17 de fevereiro de 2016, o STF proferiu, embora por maioria, uma decisão histórica: autorizou o cumprimento da pena, quando uma decisão de segunda instância confirmar a condenação. A decisão indica mudança no entendimento da Corte, que desde 2009, no julgamento da HC 84078, condicionava a execução da pena ao trânsito em julgado da condenação, mas ressalvava a possibilidade de prisão preventiva. Até 2009, o STF entendia que a presunção da inocência não impedia a execução de pena confirmada em segunda instância.
Relatado pelo ministro Teori Zavascki, seu voto foi seguido pelos ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes. Entendeu ele, e os que o seguiram, que a manutenção da sentença condenatória pela segunda instância encerra a análise de fatos e provas que assentaram a culpa do condenado, postergando eventuais recursos cabíveis ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo, desde que se restrinjam à análise de questões de direito. Foram vencidos a ministra Rosa Weber e os ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski, então presidente da Corte, que votaram pela manutenção da jurisprudência do Tribunal que exigia o trânsito em julgado. Embora não haja sido abordado o caso de condenação pelo próprio Supremo, que é a única instância para políticos que têm privilégio de foro, e não havendo outra instância, vem fechar a derradeira janela da impunidade para os políticos, pois, ressalvado o remoto caso de embargos declaratórios com efeito modificativo, aquela Corte já pode mandar o condenado para a cadeia.
Embora a execução provisória da pena seja um assunto importante principalmente para os criminalistas, só agora houve em Goiânia um evento destinado a discutir o fato e suas consequências no mundo jurídico, quando, por iniciativa do criminalista Alex Nader, presidente da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas em Goiás (ABRACRIM-GO) realizou-se no último dia 23 de fevereiro, no Salão Costa Lima, na Assembleia Legislativa de Goiás uma palestra específica sobre o tema, ministrada pelo desembargador Luiz Cláudio Veiga Braga, da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Goiás, dentro do ciclo de palestras promovido por aquela Associação.
O palestrante destacou pontos relevantes sobre a execução da pena após a confirmação de segundo grau, reiterando o entendimento majoritário do STF, mas mostrou sua preocupação pelo fato de os tribunais superiores estarem vacilantes quanto a esta situação, gerando naturalmente insegurança ao jurisdicionado.
Por seu turno, o presidente da ABRACRIM-GO, renomado criminalista goiano, diante de um tema extremamente polêmico e que já caíra com agrado no comentário popular, disse que respeitava o entendimento do palestrante, mas dele discordava, pois o posicionamento da ABRACRIM e da advocacia criminal brasileira é o de que prisão só pode se efetivar após o trânsito em julgado, conforme previsto na Constituição Federal, em obediência ao “princípio da presunção da inocência”, instituto previsto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988, oferecendo ao cidadão a prerrogativa de não ser considerado culpado por um ato delituoso até que a sentença penal condenatória transite em julgado, e ainda lhe garante um julgamento de forma justa, em respeito à dignidade da pessoa humana.
Neder defendeu na sua fala que o STF é o intérprete da Constituição e não poderia “legislar”, como fez, dando ao princípio da presunção da inocência interpretação diversa do que está escrito na Lei Maior.
Sabemos que o Brasil é o país dos casuísmos, e o Supremo não pode ser considerado um exemplo de coerência, decidindo ao sabor das conveniências, e o fato de ter sido aquela decisão tomada por maioria, nada obsta que, a pretexto de uma episódio político qualquer, ele venha a reexaminar a matéria, mormente quando está latejando no meio jurídico a possibilidade de vir o ex-presidente Lula a ser preso tão logo sejam julgados os embargos de declaração interpostos na segunda instância.
O caso Lula está praticamente decidido, posto que os embargos declaratórios não têm o condão de modificar a decisão embargada, e, de acordo com os artigos619 e 620 do Código de Processo Penal, servem apenas para corrigir contradições, ambiguidades, omissões ou obscuridades. Mas tecnicamente não está resolvido, enquanto não se publicar o acórdão do julgamento daquele recurso, quando se dará por concluído o julgamento da segunda instância.
Foi muito feliz o presidente da ABRACRIM goiana, ao chamar a atenção para o fato de ser o Supremo o guardião da Constituição, e não um legislador, trazendo em suas decisões a força de um dispositivo por ele interpretado. Ora, o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição de 1988, diz que “ninguém será considerado culpado até transito em julgado de sentença penal condenatória”. E a lógica indica que enquanto houver a possibilidade de recurso, fica travado o trânsito em julgado. É um princípio elementar.
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, em pronunciamento na abertura do ano judiciário, em 1º de fevereiro, defendeu a prisão de condenados em segunda instância, afirmando que. isso “evita impunidade”, deixando claro que a posição do Ministério Público é pela prisão após a condenação na segunda instância. “O Ministério Público tem agido e pretende continuar a agir com o propósito de buscar resolutividade, para que a Justiça seja bem distribuída. Para que haja o cumprimento da sentença criminal após o duplo grau de jurisdição, que evita impunidade. Para defender a dignidade humana, de modo a erradicar a escravidão moderna, a discriminação que causa infelicidade. E para assegurar acesso à educação, à saúde e a serviços públicos de qualidade”, declarou Dodge, falando o que o povo – cansado de impunidade – gostaria de ouvir.
O assunto voltou ao debate com a condenação do ex-presidente Lula no TRF-4, cogitando-se que o Supremo poderia analisar novamente a legalidade desse procedimento, que já foi alvo de julgamento em 2016. Mas a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, afirmou que pautar o assunto em função de um caso específico seria “apequenar o Supremo”.
Na avaliação de Alex Neder, o ciclo de debates foi muito positivo e de altíssimo nível jurídico, concluindo que “Sem dúvida, um encontro assim enriquece a todos os operadores do direito, inclusive muitos alunos que estão em formação”.
Eu sempre disse que as nossas Cortes Superiores decidem ao sabor das conveniências, pois todos os seus integrantes ali chegaram com a unção de algum político. Depois que fatiaram a conclusão do “impeachment” da ex-presidente Dilma, e embora eu tenha o mesmo entendimento do presidente da ABRACRIM-GO, de que o princípio da presunção da inocência é uma cláusula pétrea e o Judiciário não pode arvorar-se de legislador, curvo-me às evidências de que, para o Supremo, a Constituição é como a Bíblia: cada um a interpreta casuisticamente da maneira que lhe for mais conveniente.
(Publicado no “Diário da Manhã” de 02/03/2018)