A USURPAÇÃO DAS LEIS PENAIS EM NOME DO BEM COMUM
“A sustentação da estrutura do poder social por meio
da via punitiva é fundamentalmente simbólica”
Zaffaroni; Pierangeli, 2006 p. 71
A política pública em si é algo que o governo, sempre partidário, escolhe ou não fazer, talvez por isso não seja usada no âmbito da justiça penal.
O governo é reflexo do povo que o elege, pelo menos da sua maioria e o clamor social atrapalha mais do que ajuda quando o assunto é política criminal.
Há tempos que o produto do legislador são fatos que possuem poder midiático, satisfazendo as multidões abaladas por crimes de repercussão de maneira momentânea.
O direito penal e tudo que dele decorre é incompatível com a vingança que é vendida como justiça e entabulada nas capas de jornais.
Há tempos que não é visto o emprego do direito penal como ultima ratio, mesmo sendo este o entendimento unânime entre os doutrinadores.
O discurso midiático atrapalha na maioria das vezes o cumprimento da essência do Estado Democrático de Direito, persuadindo o cidadão a falsa percepção de que as leis impostas não são meramente simbólicas.
Um exemplo recente dessa dinâmica, é o Pacote Anticrime, que vem como símbolo de combate à criminalidade, mesmo em seu conteúdo ter viés punitivista e contribuir para a não aplicação de políticas públicas que serviriam muito mais a população.
As políticas públicas direcionadas aos transgressores, não entram no debate legislativo, uma vez que não é interessante aos olhos do povo, gerando lacunas que em prática muitas
vezes se tornam cada vez mais dolosas contra o próprio eleitorado.
É verdade que a sociedade moderna é complexa e necessita de leis que respaldem a sociedade, sobretudo proteger os bens jurídicos, mas a má utilização das leis torna tudo mais difícil do que realmente é.
Claus Roxin, em sua obra “Estudos de Direito Penal” escreve sobre a abolição do direito penal, apresentando três pensamentos distintos: a) corrente abolicionista: conciliar, ao invés de julgar; b) controle mais intensivo do crime pelo Estado: prevenir, ao invés de punir; c) a substituição do direito penal por um sistema de medidas de segurança: curar ao invés de
punir.
Ao dissertar sobre essas três correntes, a conclusão que o autor chega é que nenhuma vertente conseguiria abolir o direito penal, entendimento este, que comunga com a realidade
nos dias de hoje, em que há cada vez mais dispositivos penais para novos tipos de crimes, com alterações legislativas mais severas.
Talvez a resposta não seja a abolição do direito penal e sim a ressignificação dele, com instrumentos político-sociais.
A título de exemplo, a Lei n° 9.613/1996 (Lavagem de Dinheiro), foi modificada pelo advento do pacote anticrime e incluiu a possibilidade de utilização de ação controlada e da infiltração de agentes para os crimes de lavagem dispostos no art. 1º.
A alteração legislativa que simboliza o progresso e a efetiva investigação para coibir crimes de corrupção é na verdade, ineficaz, uma vez que não há nenhum tipo de política pública voltada para o assunto.
A investigação no Brasil é falha, sendo necessário em um primeiro momento reformular o modus operandi de quem atua na investigação, a fim de torná-la mais eficaz.
Nesse caminhar, a Lei de Execução Penal sofreu, literalmente, alterações que nos levam a crer que a aplicação do texto expresso em lei sobre reeducação e política criminal está
distante de se concretizar.
É difícil discutir a importância de políticas públicas em qualquer âmbito quando olhamos a educação que nos é colocada a mesa. A educação deveria ser a primeira política
pública a ser aplicada, mas até hoje não é prioridade.
Se a educação é o primeiro pilar para um mundo melhor, sem violência e mesmo assim não é colocado em prática, não podemos esperar que a reeducação de pessoas que infrinjam de alguma forma o Estado Democrático de Direito seja pauta principal nos dias de hoje, pois quem dita as regras não está interessado em prover educação de qualidade, muito menos
reeducar aqueles que necessitam de atenção especial.
A Lei Anticrime é inserida no contexto do direito penal simbólico, pela característica de não gerar efeitos protetivos concretos, mas que servem à manifestação de grupos políticos ou ideológicos através de declaração de determinados valores ou repúdio a atitudes consideradas lesivas.
A falsa impressão do efetivo combate à criminalidade impede o
desenvolvimento e aplicação de políticas públicas na esfera penal.
A impressão que temos é que o legislador permeia o ideal e tem dificuldade de frequentar os casos concretos e legislar sobre essa ótica, que não raras vezes é dura.
A reflexão a ser feita é a seguinte: há um Código Penal que carece de reforma, em contrapartida há leis penais especiais sendo alteradas sem que a base esteja forte o
suficiente para sustentar alterações a partir de uma sociedade complexa.
O resultado disso, veremos mais adiante, quando o caso concreto mostrar o despreparo das leis impostas.
É necessário que a criminologia entre em cena para que possamos entender cada vez mais o papel do direito penal, da ressocialização e das penas e fazer com que as leis não
sejam criadas de maneira emergencial e que a pena imposta ao cidadão não seja apenas um efeito colateral de um Estado de coisas inconstitucionais.
A usurpação das leis penais em nome do bem comum faz com que a essência da legislação seja deixada à deriva.
O mundo necessita de mais razão e menos emoção.
ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Rio de Janeiro. Renovar, 2008.