A vida do advogado criminalista
Amadeu de Almeida Weinmann
Primeiramente, devo apresentar-me: – sou um homem que há mais de meio século não faz outra coisa senão que advogar.
Assim que digo, sou fundamentalmente um advogado criminalista, ainda que por mais um quartel de século tenha exercido, também, o magistério, como professor de Direito Penal. Peço licença para que, conversando com os senhores relembrar qual a vida de um advogado criminalista.
Primeiramente, devo lembrar o que alhures já nos advertia o conselheiro da OAB-Paulista PAULO SÉRGIO LEITE FERNANDES, em sua consagrada obra, “Na Defesa das Prerrogativas do Advogado” que “proteger o advogado é, nos tempos que correm, tarefa espinhosa. ”
Mas, porque da expressão “proteger o advogado”?
Tentarei explicar: – A advocacia foi sempre mal vista pela população desavisada. Aliás, desde a infância, dentro da própria família, ela é mal interpretada. Nunca é ao filho mais comportado, ao mais estudioso, que se lhe dá o título de advogado. É sempre ao mais manhoso, mais astucioso, mais ardiloso, ao mais conversador é a quem os mais velhos logo profetizam: “olha, esse aí vai ser advogado”.
E é assim que a advocacia adquire, de plano, e de graça, uma péssima nomeada pois, genericamente, não é ao mais sério, ao mais compenetrado que se pensa possa ser advogado.
Nos regimes totalitários, nas ditaduras, especialmente as mais disfarçadas, tidas como democráticas, o advogado, especialmente o criminalista, sofre mais do que o próprio Poder Judiciário.
É histórica a repugnância de Napoleão Bonaparte por ela. Hitler os aniquilava e não permitia aos judeus tivessem advogados, pois que culpados já eram. Mussolini em uma só noite mandou incendiar quarenta escritórios de advogados.
Hoje a história se repete. De uma década para cá, a proliferação das faculdades de direito fez com que o número de advogados crescesse, não mais aritmeticamente, mas sim, geometricamente, criando-se, com isso, uma vulgarização da profissão, enfraquecendo-a e muito.
Ora, isso enfraquece o conceito de verdadeiro advogado, como enfraquece o próprio Poder Judiciário, pois o advogado dele é parte integrante, sendo dele inseparável e indispensável.
Isso quem diz, quem determina, é a própria constituição Federal quando, pelo seu art. 133 preceitua: “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.
Gostaria de transmitir-lhes um pouco da experiência adquirida, como já dito, ao longo de cinco décadas em contato com o direito.
E o que posso transmitir ao leitor, se ligará muito mais às perspectivas que a vida de profissionais do direito oferecerá ao longo da vida de cada um, do que a qualquer conselho que vos possa dar.
Vários serão os caminhos que o diploma de bacharel vos abrirá. Todos eles de perspectiva das melhores: magistrados, procuradores, promotores, funcionários de ministérios, consultores jurídicos, enfim, um leque muito grande a ser escolhido.
Aqueles mais corajosos que optarem pela advocacia, como profissionais liberais devem de logo saber que a empreitada será longa e muitas vezes muitíssimo pesada e, o importante, mal remunerada.
Mas, o que pretendo transmitir, é a certeza de que o advogado é um homem só. Os civilistas já têm se organizado em empresas de advocacia, criando uma advocacia de partido onde as missões são repartidas e já não se sentem tão sós, eis que, estabelecidos em sociedade de advogados.
Entretanto, àqueles a quem a advocacia criminal os atrair, desde logo devem saber que serão, sempre, homens sós. Terão que viver como verdadeiros D. Quixote’s, de lança em punho, a lutar contra os moinhos de vento dos desconsolos da humanidade.
É que o advogado criminal não tem e nem pode ter partido ou consultoria. Não seria ético aceitar-se o convite a participar de uma sociedade criminológica. Aceitasse estaria passando, imediatamente, da condição de advogado para a de criminoso, pois que sócio de tal empreendimento, criado para delinquir.
Não!!! O advogado criminal é um homem que sozinho tem que enfrentar o contraditório, desafio de cumprimento do constitucional direito de defesa, situado no processo penal comum ou especial.
Geralmente não tem salário fixo.
Vive, como sempre vivi, de sua sala de espera.
E nesse desafio constante o advogado é, quase sempre, incompreendido, especialmente quando participa da defesa de pessoas que, na mais das vezes, de uma hora para outra romperam com uma das regras do comportamento social.
A constante intervenção do estado no poder político e econômico fez com que novos crimes surgissem no mundo jurídico, tais como os ilícitos do colarinho branco, os de sonegação fiscal, de remessa de divisas para o exterior, lavagem de dinheiro, atualmente a propina política e tantos outros que maculam nossa legislação extravagante.
O advogado sofre, pois muitas vezes, a própria mídia faz com que o povo confunda o defensor com o crime, ou com o criminoso, o que não é justo.
E é essa própria parcela da mídia quem postula, como solução imediata ao combate à criminalidade, a pena perpétua ou a de morte.
Foi esta mesma mídia que a pouco tempo verberava pela transformação de determinados crimes em hediondos, hoje provada a ineficácia da medida estabelecida. O crime em si já é hediondo!
Mas, se de um lado, o criminalista é um homem só, fragilizado pelo sistema, é ele quem, nos momentos de incertezas democráticas em que o abuso de poder e as violências arbitrárias se estabelecem, é ele, por primeiro, quem levanta a bandeira do direito e da liberdade.
Ora, nosso país viveu sempre sob flashes de democracia e liberdade. Mal instalada a república, tínhamos já o primeiro momento de desgovernança. E foi aí que o advogado criminal apareceu fazendo as primeiras interpretações de nossa constituição. Foi aí que desabrocharam a coragem e a valentia dos advogados, especialmente, dos criminalistas.
No rol dos nossos grandes julgamentos conta-nos o Ministro Edgard Costa que, “… … na ordem cronológica dos grandes julgamentos já proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, – ou seja, na sua fase republicana, – ocupa o primeiro lugar, incontestavelmente, o proferido em 23 de abril de 1.892 no pedido de habeas corpus nº 300, de que foi impetrante Ruy Barbosa, em favor de presos políticos, alguns deles desterrados por ordem do Marechal Vice-Presidente da República, para Cucuí e Tabatinga”.
E foi nesse habeas corpus que Ruy, o advogado dos advogados, fez com que os direitos à liberdade, fossem esculpidos nos princípios de nossa insipiente constituição e passassem a ser observados em nosso direito de defesa.
Era o criminalista fazendo escola dentro do direito constitucional.
Da mesma época, vale lembrar o destemor de outros tantos advogados, criminalistas eméritos, como Joaquim da Costa Barradas, José Cândido de Albuquerque Melo Matos e João Damasceno Pinto de Mendonça.
Ruy Barbosa, repito, o advogado dos advogados, lecionava que, em se tratando de matéria criminal, não há causa indigna de defesa. E sobre o mesmo tema, o grande Sobral Pinto recorre ao primeiro crime registrado na história da humanidade para referendar a tese, lembrando que até Caim foi ouvido, para dar sua versão, depois de matar Abel.
Em 1903, Olympio Lima e outros criminalistas impetram ordem de habeas corpus em favor de Gastão de Orleans, Conde d’Eu, sua mulher Izabel de Orleans e demais membros da dinastia brasileira de Bragança, para que cessasse o constrangimento ilegal de que eram vítimas, por força do decreto que os baniu do território nacional, e pediam a anulação do citado decreto, alegando que ele fora revogado pela Constituição Federal.
Na mesma época Ruy impetrava uma ordem de habeas corpus em favor do Senador Almirante Eduardo Wandenkolk e outros oficiais presos por crime militar por ocasião da captura do navio a vapor “Júpiter”, e retidos nas Fortalezas de Santa Cruz, Lage e Villegaignon.
Wandenkolk teria assumido o comando do navio, no litoral ao sul do Brasil, com a conivência de oficiais e tripulantes, em tentativa de conspiração contra o governo, reforçando objetivos da Revolução Federalista, iniciada no Rio Grande do Sul em 1993.
Em petição longamente fundamentada, alegava demora na formação da culpa e imunidade parlamentar, quanto ao Senador e, quanto aos demais, a incompetência do foro militar para julgá-los, pois se tratava de reformados que deveriam ser julgados pela Justiça comum.
Foi a coragem cívica de advogados como José Eduardo de Macedo Soares, Vicente Piragibe, Caio Monteiro de Barros, Astolfo Vieira de Rezende e Francisco Veloso que fez com que a Suprema Corte da Nação enfrentasse os desmandos do estado de sítio, em 1914.
Depois, tendo o Presidente eleito, Dr. Francisco de Paula Rodrigues Alves falecido antes de ser empossado, fora indicado o Epitácio Lindolfo da Silva Pessoa como candidato situacionista à sucessão do ilustre morto.
O já septuagenário Ruy aceitou ser novamente candidato a Presidente da República, reiniciando sua campanha civilista pelo país, nos exatos moldes da campanha anteriormente realizada, e na qual fora derrotada pelo deturpado esquema político que acabou por eleger o Mal. Hermes Rodrigues da Fonseca.
Surpreendido com as limitações ao direito de reunião e de livre manifestação do pensamento, obrigou-se o advogado Artur Pinto da Rocha impetrar a ordem de habeas corpus em favor do provecto candidato e seus seguidores.
Nem todos os casos aqui alinhavados tiveram sucesso perante as cortes de justiça da nação. Não, mas todos eles deixaram a semente do bom direito que passou a germinar na mentalidade jurídica nacional.
Através deles é que se consolidaram os princípios do direito de defesa, do devido processo legal e da grandiosidade da defesa dos direitos e garantias individuais.
Ruy lecionava que, em se tratando de matéria criminal, não haveria causa indigna de defesa. De certa feita, o grande Evaristo de Morais, angustiado, duvidando se deveria assumir o patrocínio de uma causa cujo crime abalara a opinião pública do Rio de Janeiro, escreveu a Ruy Barbosa consultando-o sobre a posição a adotar. A resposta pronta advertia: “Ora, quando quer e como quer que se cometa um atentado, a ordem legal se manifesta necessariamente por duas exigências, a acusação e a defesa, das quais a segunda, por mais execrando que for o delito, não é menos especial à satisfação da moralidade pública do que a primeira. A defesa não quer dizer o panegírico da culpa, ou do culpado. Sua função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente ou criminoso, a voz dos seus direitos legais. ” … … “Se a enormidade da infração reveste caracteres tais, que o sentimento geral recue horrorizado, ou se levante contra ela em violenta revolta, nem por isso essa voz deve emudecer. Voz do direito em meio da paixão pública, tão suscetível de se demasiar, às vezes pela própria exaltação de sua nobreza, tem a missão sagrada, nesses casos, de não consentir que a indignação degenere em ferocidade e a expiação jurídica em extermínio cruel. ”
Voltaire denominava a paixão pública de “a demência da canalha”.
Mas, continuemos com a lição de Ruy, respondendo à Evaristo: “Em mais de uma ocasião na vida pública não hesitei em correr ao encontro dos meus inimigos, acusados e perseguidos, sem nem sequer aguardar que eles m’o solicitassem, provocando contra mim desabridos rancores políticos e implacáveis campanhas de malsinação unicamente por se me afigurar necessário mostrar ao meus conterrâneos, com exemplos de sensação, que acima de tudo está o serviço da justiça; Diante dela não pode haver diferença entre amigos e adversários, senão para lhe valermos ainda com mais presteza quando ofendida nos adversários do que nos amigos.”
E aqui vai a primeira grande lição: É que, em matéria criminal não pode ocorrer causa que não seja digna de defesa. Pelo contrário, quanto maior a acusação a pesar sobre o indivíduo, maior será o empenho do advogado a defendê-lo. Os grandes, os imortais, assim se tornaram por não terem dado ouvidos às iras populares.
Mas, não somente em matéria criminal os advogados criminalistas contribuíram com a interpretação de nossa legislação, especialmente da constitucional. Em 1923, tendo o Tribunal de Minas Gerais posto em disponibilidade o Juiz Dr. João Batista da Costa Honorato, o advogado Elói Teixeira Cortes fez, pelo seu habeas corpus, que o Supremo Tribunal Federal se manifestar-se sobre a independência da magistratura, e sobre as suas garantias constitucionais.
Em 1924, o advogado Justo Mendes de Morais impetrava o habeas corpus em favor do tenente Eduardo Gomes, um dos dois remanescentes do levante do Forte de Copacabana, movimento revolucionário de 5 de junho de 1922, lá se discutindo sobre os direitos individuais e coletivos do cidadão.
Em 1936, em favor de Maria Prestes ou Olga Benário, o advogado Heitor Lima pede habeas corpus, sendo autoridade coatora o Ministro da Justiça. Presa como estrangeira perniciosa à ordem pública, a fim de ser expulsa do território nacional, o habeas corpus era para que fosse julgada por crimes cometidos no Brasil, alegando-se o estado de gravidez da paciente.
É que Olga trazia no ventre um “nacional”, eis que filho do capitão Luiz Carlos Prestes. Ela poderia ser extraditada. O filho que trazia no ventre, jamais!
E, os tribunais de exceção não ouviram às tão humanas teses, pois que temerosos dos atos de terror. E Olga que era judia, foi entregue como um “presente” ao mundo nazista, que a recebeu e a assassinou no campo de extermínio de Auschwithz.
Os tribunais falharam, mas a tese é viva ainda hoje.
Em plena vigência da carta ditatorial de 37, quando o ditador a desprezava, pois que governava por decreto, a voz de um advogado, frágil na aparência, tornou-se grandiosa na defesa do líder comunista Luiz Carlos Prestes.
Católico praticante, o Dr. Heráclito Fontoura Sobral Pinto, sem pensar em qualquer recompensa, quer a título de honorários profissionais, ou a qualquer outro título, defendeu-o com todo o entusiasmo de sua vivência democrata, tentando amenizar as penas que o estado não democrático decretara àquele cidadão.
Tal o denodo empregado que, em percorrendo toda a legislação pátria e não encontrando eco nos nossos tribunais de então, terminou apelando para a lei de proteção aos animais (Decreto lei n° 24.645, de julho de 1934) eis que, nem a um animal se poderia admitir um tratamento tão cruel com o que se estava a dando ao líder comunista.
E o exemplo do grande Sobral Pinto frutificou, permitindo-me que pudesse agora, lembrar, sem desmerecer as figuras de Evandro Lins e Silva, Carlos de Araújo Lima, Heleno Cláudio Fragoso, Evaristo de Moraes Filho, Paulo Brossard de Souza Pinto, Eloar Guazzeli, Oscar Pedroso d’Horta, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, Márcio Thomaz Bastos, José Carlos Dias, Técio Lins e Silva e tantos outros que honraram a advocacia nacional brasileira.
A sociedade brasileira não esquece jamais a colaboração desses abnegados defensores do Estado Democrático de Direito.
Reconheceu ela, a sagrada missão do advogado criminal, outorgando o título de “Advogado do Século” ao eminente criminalista Evandro Lins e Silva, outorgado por decisão da Associação dos Advogados Criminais do Estado de São Paulo.
Saibam todos que sempre haverá um advogado na Tribuna da Defesa que, com sua voz acobertada com palavras que vencem toda e qualquer resistência à Lei, à Constituição, obrigará, aos autoritários e aos medos da sociedade, o respeito ao Estado Democrático de Direito.
Certo é que o advogado jamais incomodará um povo que preze sua a liberdade e a de seu país, mas acima de tudo, a liberdade de suas Leis. E, para concluir, ainda com Ruy Barbosa, na sua célebre Oração aos Moços: “Não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniquidade ou imoralidade. Não se subtrair à defesa das causas impopulares, nem à das perigosas quando justas. Onde for apurável um grão que seja, de verdadeiro direito, não regatear ao atribulado o consolo judicial.”
Neste célebre discurso, Ruy fornece aos jovens bacharelandos vários conselhos e diretrizes, dos quais repito: “Senhores bacharelandos: pesai bem que vos ides consagrar à lei, num país onde a lei absolutamente não exprime o consentimento da maioria, onde são as minorias, as oligarquias mais acanhadas, mais impopulares e menos respeitáveis as que põem e dispõem as que mandam e desmandam em tudo.”
Concluo repetindo as palavras de outro grande advogado, o Dr. Otto Gil: “Combateu o bom direito; lutou pela liberdade; acreditou na justiça. E, por isso, suas lições ficaram. E vivem.”
*Amadeu de Almeida Weinmann é advogado, professor, escritor, membro do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, do Instituto dos Advogados do Brasil, da Academia Brasileira de Direito Criminal, da Academia de História Militar Terrestre Do Brasil/RS, do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul, da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas do Brasil (ABRACRIM) – Membro Efetivo e Sócio Fundador da Comunidade de Juristas da Língua Portuguesa (CJLP) Lisboa, Portugal.