Aborto anencefálico e respeito à dignidade humana da gestante
Cezar RobertoBitencourt[1]
- Considerações preliminares
Trataremos neste tópico de um tema — aborto anencefálico — não sob os aspectos ético, religioso, social, moral ou emocional, mas procuraremos fazer uma análise, dentro do possível, neutra. Teremos presente que nossa conclusão não representará uma obrigação — que constrange, humilha e deprime a gestante —, mas, pelo contrário, será apenas uma faculdade que, se não desejar, não precisará usá-la, sem, ademais, ficar submetida aos rigores próprios da violação de norma jurídico-penal com suas drásticas consequências punitivas. Apenas, se preferir, a gestante poderá aguardar o curso natural do ciclo biológico, mas, em contrapartida, não será “condenada” a abrigar dentro de si um tormento que a aniquila, brutaliza, desumaniza e destrói emocional e psicologicamente, visto que, ao contrário de outras gestantes que se preparam para dar à luz a vida, rigozijando-se com a beleza da repetição milenar da natureza, afoga-se na tristeza, no desgosto e na desilusão de ser condenada a — além da perda irreparável — continuar abrigando em seu ventre um ser inanimado, disforme e sem vida, aguardando o dia para, ao invés de brindar o nascimento do filho como todas as mães sonham, convidar os vizinhos para ajudá-la a enterrar um natimorto, que nunca teve chance alguma de nascer com vida.
Preliminarmente, no entanto, convém que se examinem dois aspectos dos mais relevantes para esta matéria, quais sejam, o bem jurídico protegido e o sujeito passivo dessa (im) possível infração penal.
1.1. Bem jurídico tutelado
O bem jurídico protegido, como afirmamos anteriormente, é a vida do ser humano em formação. O produto da concepção — feto ou embrião —, embora ainda não seja pessoa, tem vida própria e recebe tratamento autônomo da ordem jurídica. Quando o aborto é provocado por terceiro, o tipo penal protege também a incolumidade da gestante (integridade física e psicológica). No entanto, a antecipação consentida do parto na hipótese de comprovada gravidez de feto anencéfalo não afeta nenhum desses bens jurídicos que a ordem constitucional protege. Na hipótese de gestação de feto anencéfalo não há vida viável em formação. Em outros termos, falta o suporte fático-jurídico, qual seja, a potencial vida humana a ser protegida, esvaziando-se o conteúdo material que fundamentaria a existência da norma protetiva.
Por outro lado, relativamente à gestante, a gravidez anencefálica é potencialmente perigosa, apresentando sérios e graves riscos à vida e à saúde da gestante, além dos graves efeitos psicológicos, com consequências depressivas, angustiantes etc. Ademais, o consentimento da gestante afasta a autoincriminação, além de assegurar-lhe, nesses casos, somente benefícios de ordem física e psíquica. Não era outro o entendimento de Hungria, que já, a seu tempo, examinando essa temática, pontificava: “Não está em jogo a vida de outro ser, não podendo o produto da concepção atingir normalmente vida própria, de modo que as consequências dos atos praticados se resolvem unicamente contra a mulher. O feto expulso (para que se caracterize o abôrto) (sic) deve ser um produto fisiológico, e não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em abôrto (sic), para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto”[2].
1.2. Sujeito passivo
Sujeito passivo, no autoaborto e no aborto consentido (arts. 124 e 126), é o feto, ou, genericamente falando, o produto da concepção, que engloba óvulo, embrião e feto. Na hipótese de aborto anencefálico, no entanto, o feto não incorpora a condição de sujeito passivo, por faltarem-lhe as condições fisiológicas que lhe permitam tornar-se um dia pessoa, não passando de um produto patológico sem qualquer possibilidade de vida. Na verdade, somente o feto que apresente potencial capacidade de tornar-se pessoa pode ser sujeito passivo do crime de aborto. A antecipação do parto, nessas circunstâncias, portanto, não pode ter repercussão penal, considerando-se que somente a conduta que frustra ou impede o nascimento ou surgimento de um ser humano ou que cause danos à integridade física ou à vida da gestante pode adequar-se à descrição típica do crime de aborto.
- Aborto anencefálico: respeito à dignidade humana da gestante
Transcorridos mais de sessenta e cinco anos da promulgação do Código Penal brasileiro de 1940, cuja Parte Especial ainda se encontra em vigor, questionam-se muitos dos seus dispositivos, esquecendo-se, geralmente, que a vida é dinâmica, e que não só os usos e costumes evoluem, como também, e principalmente, a ciência e a tecnologia, de tal sorte que aquele texto publicado em 1940 deve ser adaptado à realidade atual mediante os métodos de interpretação, dando-se-lhe vida e atualidade para disciplinar as relações sociais deste início de novo milênio. Com efeito, o Direito Penal não pode ficar alheio ao desenvolvimento tanto da ciência quanto dos usos e costumes, bem como da evolução histórica do pensamento, da cultura e da ética em uma sociedade em constante mutação. O Direito Penal — não se ignora essa realidade — é um fenômeno histórico-cultural que se submete permanentemente a um interminável processo de ajustamento de uma sociedade dinâmica e transformadora por natureza. Vive-se esse turbilhão de mutações que caracteriza a sociedade moderna, e que reclama permanente atualização do direito positivo que, em regra, foi ditado e editado em outros tempos, e somente pela interpretação do cientista ganha vida e atualidade, evoluindo de acordo com as necessidades e aspirações sociais, respondendo às necessidades da civilização humana.
Assim, surgem, por vezes, situações inusitadas e que reclamam aplicação das normas penais de outrora. Nessas horas, não é permitido à ciência e ao cientista ignorarem os avanços culturais, técnicos, científicos e tecnológicos da sociedade em geral e, no caso, da medicina em particular, mesmo diante das mais profundas transformações que tantas décadas possam ter produzido, sejam éticas, culturais, médicas ou científicas. É nessa sociedade que, pela hermenêutica, deve encontrar-se o verdadeiro sentido de normas que ganharam vida através do legislador, mesmo em outro século, objetivando normatizar uma sociedade que se pautava por outro padrão de comportamento. Como destacava Jiménez de Asúa, “os juízes não podem ficar alheios às transformações sociais, jurídicas e científicas. Por isso, a vontade da lei não deve ser investigada somente em relação à época em que nasceu o preceito, mas sim tendo em conta o momento de sua aplicação. O magistrado adapta o texto da lei às evoluções sofridas pela vida, da qual, em última consideração, o Direito é forma. Decorre daí o dever de ajustá-la a situações que não foram imaginadas na remota hora de seu nascimento. Assim têm podido viver velhos textos como o Código Penal francês, que tem mais de século e meio de existência”[3].
É nessas condições, pois, que se deve enfrentar a questão atualíssima do aborto anencefálico, a começar pelo exame da adequação ou inadequação da denominação aborto, na medida em que se trata de feto sem vida, ou, na linguagem médica moderna, trata-se de um feto com morte cerebral. Examinando-se nosso Código Penal de 1940, constata-se que o legislador de então, ao criminalizar o aborto, não foi radical, pois admitiu como lícito, ainda que excepcionalmente, o aborto necessário e o aborto sentimental (art. 128). Isso permite concluir que, se, na época, houvesse o arsenal de conhecimento e tecnologia de hoje, provavelmente também teria admitido o denominado aborto anencefálico, diante da absoluta certeza da inexistência de vida, como ocorre na atualidade.
Para contextualizarmos o tema, é conveniente que iniciemos examinando o entendimento doutrinário vigente na primeira metade do século XX, quando nosso Código entrou em vigor. Para tanto, nada mais justo que se recorde o entendimento de Nélson Hungria, o maior defensor do referido diploma legal, que emitiu o seguinte entendimento sobre essa temática, tendo afirmado: “andou acertadamente o nosso legislador em repelir a legitimidade do aborto eugenésico, que não passa de uma das muitas trouvailles dessa pretensiosa charlatanice que dá pelo nome de ‘eugenia’. Consiste esta num amontoado de hipóteses e conjeturas, sem nenhuma sólida base científica. Nenhuma prova irrefutável pode ela fornecer no sentido da previsão de que um feto será, fatalmente, um produto degenerado. Eis a lição de Von Franqué: ‘Não há doença alguma da mãe ou do pai, em virtude da qual a ciência, de modo geral ou nalgum caso particular, possa, com segurança, prever o nascimento de um produto degenerado, que mereça, sem maior indagação, ser sacrificado… Os enfermos mentais, posto que capazes de reprodução, podem ter descendentes interinamente sãos e de alta espiritualidade… A grande maioria dos tuberculosos gera filhos perfeitamente sãos e até mesmo robustos’”[4].
Com uma rápida leitura desse texto de Hungria, constata-se, de plano, que os tempos eram outros, que a ciência médica ainda desconhecia a anatomia humana e ignorava os avanços que em pouco tempo se poderia atingir. Com efeito, quando Hungria fez tais afirmações, a expressão “eugenia” carregava, em seu bojo, uma profunda carga de rejeição social, emocional e até racial, refletindo-se no pensamento não só da ciência médica como dos próprios penalistas da época, como ocorria com o próprio Hungria. Na verdade, como primeiro passo para facilitar a compreensão e principalmente fundamentar uma decisão livre de pré-conceitos cheios de ranços ético-raciais e até de desconhecimentos médico-científicos, devemos começar buscando uma terminologia mais adequada para abordarmos esse tema que assume proporções dramáticas, dependendo da solução que se venha adotar como orientação definitiva. Justifica-se que ainda se continue falando em “eugenia” como fazia, a seu tempo, Nélson Hungria, com toda sua carga emocional-racial que o termo carregou consigo em meados do século passado, especialmente a partir do nacional-socialismo?
Alberto Silva Franco, a propósito, define a questão de forma definitiva: “Não se desconhece que inúmeras palavras, além de seu sentido puramente descritivo, têm o condão de provocar nas pessoas, que as ouvem, ou que as leem, reações emocionais. Fala-se, então, do ‘significado emotivo’ dessas palavras que se adiciona ao seu ‘significado descritivo’. ‘Eugenia’ é um dos vocábulos capazes de gerar, além de restrições a respeito de seu significado descritivo, um nível extremamente alto de rejeição emocional, e tal reação está vinculada ao uso que dele foi feito, na Alemanha, durante o período nacional-socialista. A ‘Lei para a purificação da raça’ (Erbge-sundheitgesetz) introduziu, por motivos da chamada ‘saúde do povo’ (Volksgesundheit), a justificação dos casos de indicação eugênica (esterilização, interrupção da gravidez, extirpação de glândulas sexuais). ‘Eugenia’ tornou-se palavra tabu”[5]. Assim, as locuções indicação eugênica ou aborto eugênico devem ser analisadas racionalmente, sem a indesejável e prejudicial carga de rejeição emocional que pode até inviabilizar um exame mais aprofundado e que leve a alguma conclusão mais racional. Deve-se, de plano, afastar-se aquela concepção que lhe concedeu o nacional-socialismo alemão: não se pode mais falar em aborto eugênico com a finalidade de obter-se uma raça de “super-homens” e tampouco para a conservação da “pureza” de uma raça superior. Esse período, o mais negro de todos os tempos da civilização humana, está morto e enterrado, e somente deve ser lembrado para impedir o seu ressurgimento, em qualquer circunstância.
Limitar-nos-emos a tecer considerações tão somente ao assunto do momento, qual seja, ao que se está denominando “aborto anencefálico”. Em termos bem esquemáticos, o tema limita-se à seguinte hipótese: o feto não tem cérebro e a sua vida extrauterina é inviável, segundo comprovação médico-pericial. A expulsão do feto, nessas condições, isto é, sem vida, constitui aborto? Em outros termos, o exame da tipicidade, numa posição invertida da pirâmide, exige uma análise criteriosa. A doutrina especializada (da área médica) apresenta uma classificação de situações de aborto que, genericamente, oferece um espectro interessante e, ao mesmo tempo, abrangente que serve à doutrina penal para fazer o exame jurídico, nos seguintes termos:
- Interrupção eugênica da gestação (IEG), que são os casos de aborto ocorridos em nome de práticas eugênicas, isto é, situações em que se interrompe a gestação por valores racistas, sexistas, étnicos. Comumente sugere o tipo praticado pela medicina nazista, quando mulheres foram obrigadas a abortar por serem judias, ciganas ou negras.
- Interrupção terapêutica da gestação (ITG), que são os casos ocorridos em nome da saúde materna, isto é, situações em que se interrompe a gestação para salvar a vida da gestante. Hoje em dia, em face do avanço tecnológico experimentado pela Medicina, são cada vez mais raros os abortos inscritos nessa tipologia.
- Interrupção seletiva da gestação (ISG), que são os casos de abortos ocorridos em nome de anomalias fetais, em que se interrompe a gestação pela constatação de lesões no feto, apresentando patologias incompatíveis com a vida extrauterina, como é o caso da anencefalia.
- Interrupção voluntária da gestação (IVG), que são os casos de aborto ocorridos em nome da autonomia reprodutiva da gestante ou do casal, isto é, situações em que se interrompe a gestação porque a mulher, ou o casal, não mais deseja a gravidez, seja ela fruto de estupro ou de uma relação consensual. Muitas legislações que permitem a IVG impõem limites gestacionais à sua prática[6].
Com exceção da primeira hipótese, Interrupção eugênica da gestação — IEG, todas as demais formas de aborto levam em consideração a vontade da gestante ou do próprio casal. O valor da autonomia da gestante é um dos pilares da teoria principialista, a mais difundida na Bioética da atualidade, mas que não poderá ser objeto de análise neste espaço.
Procurando definir o aborto criminoso, afirmamos que “o crime de aborto pressupõe gravidez em curso e é indispensável que o feto esteja vivo”. E mais: que “a morte do feto tem de ser resultado direto das manobras abortivas”. Quando definimos o bem jurídico tutelado[7] na tipificação do crime de aborto (item 2), no entanto, sustentamos, claramente, que o produto da concepção — feto ou embrião — “tem vida própria e recebe tratamento autônomo da ordem jurídica”; embora, no mesmo tópico, reconheçamos que o objeto da proteção legal da criminalização do aborto não seja a pessoa humana, como ocorre no homicídio, mas a sua formação embrionária. Esse raciocínio justifica-se com a permissão de, nas circunstâncias que excepciona (art. 128, I e II), ser autorizada a realização legal do aborto, enquanto, em nenhuma circunstância, o legislador autoriza a supressão da vida humana (não vale argumentar com as excludentes de criminalidade, por tratar-se de situações distintas).
Fizemos questão de recuperar essas nossas concepções sobre o aborto para que nossas afirmações, neste tópico, não sejam utilizadas de forma descontextualizada. Partimos do princípio de que nenhuma mulher quer abortar, pois não desconhecemos que o aborto é uma agressão violenta, não apenas contra o feto, mas também contra a mulher, física, moral e psicologicamente, e que, naturalmente, a expõe a enormes e imprevisíveis riscos relativos à sua saúde e à sua própria vida. Quando a mulher opta pelo abortamento, não se pode ignorar que ela tomou uma decisão grave, com sérios riscos que podem produzir consequências irreversíveis sobre sua vida, seu corpo, sua psique e seu futuro. Nesse sentido, acrescenta Marco Antonio Becker: “certamente, a manutenção da gravidez indesejada de um anencéfalo acarretará graves distúrbios psicológicos na gestante, em decorrência da tortura sofrida e de um tratamento degradante, vedado pelo art. 5º, inciso III, da Constituição Federal”.
No Brasil, a atual “lei de transplante de órgãos” (Lei n. 9.434/97) autoriza a extração destes, com o simples reconhecimento médico da — na terminologia médico-moderna — denominada “morte cerebral”, cuja simples pronúncia, certamente, deve deixar Hungria contorcendo-se em seu “leito sepulcral”. Ou seja, a simples “morte cerebral” — que mantém os demais órgãos do corpo humano “vivos” — autoriza a extração de todos esses órgãos, imediatamente, isto é, enquanto vivos, pois, mortos, de nada serviriam —, consagrando o reconhecimento não apenas médico, mas agora também legal, de que a vida não se encerra somente quando “o coração deixa de bater”. A lei de transplante de órgãos, por certo, não está autorizando um homicídio, ainda que se lhe reconheça “fins humanitários”, ou que uma vida “suprimida” pode representar a preservação de várias, ou, ainda, que aquela vítima teria apenas uma sobrevida etc. Não, certamente não, especialmente para um país católico, com formação cristã e que jamais fez concessões a orientações de cunho neossocialista. Diante dessas constatações, sempre tivemos grande dificuldade em admitir que a expulsão antecipada de um feto, sem vida, pudesse configurar aborto, provocado ou consentido, criminoso ou não. Pois agora, aflorado esse debate, aumentou nossa convicção no sentido negativo. Mas era apenas uma convicção pessoal, produto de elaborado raciocínio lógico-jurídico, de alguém leigo em medicina. Mas, felizmente, para nosso conforto pessoal, recebemos a confirmação científica, emitida por especialistas da área médica, que concluem nesse sentido, sendo lapidar a afirmação do médico Marco Antonio Becker, Secretário do Conselho Federal de Medicina, que sustenta: “Quando a mãe pede para retirar esse feto e o médico pratica o ato, isto não configura propriamente aborto, com base no art. 126 do Código Penal, pois o feto, conceitualmente, não tem vida”[8]. E complementa Becker: “a morte não é um evento, mas sim um processo. O conceito jurídico de morte considera um determinado ponto desse processo biológico. Durante séculos adotou-se a parada cardiorrespiratória como índice demarcador da vida”.
O entendimento do legislador brasileiro, não há dúvida alguma, seguindo a evolução médico-científica, reconhece que “a morte cerebral” põe termo à vida humana. Ora, se a “morte cerebral” significa a morte, ou, se preferirem, ausência de vida humana, a ponto de autorizar o “esquartejamento médico” para fins científico-humanitários, o que se poderá dizer de um feto que, comprovado pelos médicos, nem cérebro tem? Portanto, a interrupção de gravidez em decorrência de anencefalia não satisfaz aqueles elementos, que destacamos anteriormente, de que “o crime de aborto pressupõe gravidez em curso e é indispensável que o feto esteja vivo”, e ainda que “a morte do feto seja resultado direto das manobras abortivas”. Com efeito, na hipótese da anencefalia, embora a gravidez esteja em curso, o feto não está vivo, e sua morte não decorre de manobras abortivas. Diante dessa constatação, na nossa ótica, essa interrupção de gravidez revela-se absolutamente atípica e, portanto, nem sequer pode ser tachada como aborto, criminoso ou não. Para nossa satisfação doutrinário-científica, não é outra a conclusão do ilustre médico gaúcho Marco Antonio Becker, na conclusão de seu belíssimo artigo científico: “Não há porque adicionar outra excludente ao art. 128 do Código Penal, pois pelas razões expostas o ordenamento jurídico já existente autoriza o médico a retirar o feto de anencéfalo da gestante, a seu pedido, sem que com isso incorra em infração penal ou ética, pois, repetimos: se não há vida, não há que se falar em aborto”[9].
Em síntese, para se configurar o crime de aborto é insuficiente a simples expulsão prematura do feto ou a mera interrupção do processo de gestação, mas é indispensável que ocorram as duas coisas, acrescidas da morte do feto, pois o crime somente se consuma com a ocorrência desta, que, segundo a ciência médica, nesses casos de anencéfalo, acontecera antes.
Deixamos claro no terceiro tópico deste capítulo que não fazemos distinção entre vida biológica e vida autônoma ou extrauterina e tampouco a existência de capacidade de vida autônoma. Assim, não nos interessa ingressar no plano metafísico dessa discussão, e nos limitamos à constatação científica da inexistência de vida em feto anencefálico. Ainda, somente para refletirmos, uma outra questão: que crime cometeria quem, expelido o feto anencefálico, lhe desferisse um tiro, destroçando-o? Maggiore, comentando o Código Rocco (art. 441) afirmava: “Há, portanto, homicídio toda vez que se destrua a vida de um recém-nascido… ainda que não vital, posto que vivo, salvo quando a vida seja, por algum defeito de conformação, apenas aparente”[10]. Ora, está respondida a questão: na hipótese de feto anencefálico expelido não há que falar em vida, e sem vida não se pode falar em homicídio do “feto expelido”. Estar-se-ia, portanto, diante de um crime de homicídio impossível, por absoluta impropriedade do objeto. Mutatis mutandis, pelas mesmas razões, reconhecendo-se que, pelo menos no Brasil, a morte legal (Lei n. 9.434/97) é a “morte cerebral”, a expulsão voluntária antecipada de feto anencefálico não constitui aborto, criminoso ou não. Trata-se, na verdade, de comportamento atípico, ante a ausência de elementares típicas do crime de aborto.
3. Inexigibilidade de conduta diversa: ausência de fundamento para censura social
A culpabilidade, ao contrário da antijuridicidade, não se esgota na relação de desconformidade entre ação e ordem jurídica, mas, ao contrário, a reprovação pessoal contra o agente do fato fundamenta-se na não omissão da ação contrária ao Direito ainda e quando podia havê-la omitida[11]. A essência da culpabilidade radica, segundo a teoria finalista, no “poder em lugar de…” do agente referentemente à representação de sua vontade antijurídica, e é exatamente aí que se encontra o fundamento da reprovação pessoal, que se levanta contra o autor por sua conduta contrária ao Direito.
Segundo Welzel, culpabilidade é a reprovabilidade da configuração da vontade. Portanto, toda culpabilidade é culpabilidade de vontade, ou seja, somente se pode reprovar ao agente, como culpabilidade, aquilo a respeito do qual pode algo voluntariamente[12]. Para justificar a imposição de uma sanção, não é suficiente que o autor tenha obrado típica e antijuridicamente. O juízo de desvalor somente pode ser emitido quando existir a possibilidade de formular uma reprovação ao autor do fato. E essa possibilidade só existirá quando, no momento do fato, o autor puder determinar-se de outra maneira, isto é, pelo dever jurídico.
Culpabilidade, em outros termos, é reprovabilidade, e o que se reprova é a resolução de vontade contrária ao direito. No entanto, o conhecimento do injusto, por si só, não é fundamento suficiente para se reprovar a resolução de vontade. Isto somente poderá ocorrer quando o autor, numa situação concreta, puder adotar sua decisão de acordo com esse conhecimento. “Não se trata aqui — afirmava Welzel — da capacidade geral de decisão conforme o sentido, por conseguinte, da imputabilidade, que existe independentemente da situação dada, mas de possibilidade concreta do autor, capaz de culpabilidade, de poder adotar sua decisão de acordo com o conhecimento do injusto.”[13].
Um dos elementos mais importantes da reprovabilidade vem a ser exatamente essa possibilidade concreta que tem o autor de determinar-se conforme o sentido em favor da conduta jurídica. O Direito exige, geralmente, do sujeito imputável, isto é, daquele que pode conhecer a antijuridicidade do seu ato, que tome sua resolução de vontade de acordo com esse conhecimento possível. Porém, existem situações em que não é exigida uma conduta adequada ao Direito, ainda que se trate de sujeito imputável e que realize dita conduta com conhecimento da antijuridicidade que lhe é própria[14]. Nessas circunstâncias, ocorre o que se chama de inexigibilidade de outra conduta, que afasta o terceiro elemento da culpabilidade, eliminando-a, consequentemente.
Na verdade, como a culpabilidade é juízo de reprovação social, compõe-se, além da imputabilidade e consciência da ilicitude, como já nos referimos, de outro elemento, qual seja, a “exigibilidade de outra conduta”, pois culpável é a pessoa que praticou o fato, quando outro comportamento lhe era exigido, e, por isso, exclui-se a culpa pela inexigibilidade de comportamento diverso daquele que, nas circunstâncias, adotou. Assim, a inexigibilidade de outra conduta exclui, portanto, a culpabilidade, não bastando, por conseguinte, a prática de um fato típico e antijurídico para que seja socialmente reprovável.
Com efeito, quando uma gestante de posse de laudo médico assegurando-lhe que o feto que está em seu ventre não tem cérebro e não lhe resta nenhuma possibilidade de vida extrauterina, quem poderá, afinal, nas circunstâncias, censurá-la por buscar o abortamento? Com que autoridade moral o Estado poderá exigir dessa gestante que aguarde o ciclo biológico, mantendo em seu ventre um ser inanimado, que, quando a natureza resolver expeli-lo, não terá alternativa senão pranteá-lo, enterrá-lo ou cremá-lo?! A inexigibilidade de conduta diversa, nessa hipótese, deve ser aceita como causa excludente da culpabilidade. Assim, as circunstâncias especiais e complexas que envolvem o fato em exame não podem ser esquecidas. Enfim — na hipótese de anencefalia —, não se pode reprovar o abortamento que a gestante possa pretender, pois, à evidência, outra conduta não se pode exigir de uma aflita e desesperada gestante. Seria social e juridicamente inadmissível, além de ferir o princípio da dignidade humana, exigir que a gestante, contra a sua vontade, levasse a termo uma gravidez nessas circunstâncias, pois, como lembra, mais uma vez, o médico Marco Antonio Becker: “Todas as mães — afirma esse especialista — têm a feliz expectativa de vestir seu bebê logo após o nascimento; mas a genitora de um anencéfalo sabe que sua roupa será, irremediavelmente, um pequeno caixão”. Por que, então, condená-la a essa angustiante e aterradora espera?
Concluindo, não se pode falar em reprovabilidade social nem em censurabilidade da conduta de quem interrompe uma gravidez ante a inviabilidade de um feto anencéfalo, que a ciência médica assegura, com cem por cento de certeza, a absoluta impossibilidade de vida extrauterina. É desumano exigir-se de uma gestante que suporte a gravidez até o fim, com todas as consequências e riscos, para que, ao invés de comemorar o nascimento de um filho, pranteie o enterro de um feto disforme, acrescido do dissabor de ser obrigada a registrar o nascimento de um natimorto. A esse propósito, destaca Allegretti[15], com muita propriedade, que “o direito brasileiro considera a gravidez um mero fato, que tem limites fisiológicos — a concepção e o início do parto. Há pouca ou nenhuma preocupação com a higidez psicológica da gestante, ou, mesmo, do embrião, como futura pessoa. A angústia pela deformação do próprio corpo, a preocupação sobre se a criança vai nascer sadia, a afetividade, a certeza das deformações diagnosticadas intrauterinamente, a incerteza sobre que tipo de vida a futura criança vai ter, são questões que passam ao largo na abordagem jurídico-penal ortodoxa. Fêmeas irracionais parem sem essas preocupações e o tratamento legal visível parece não fazer diferença entre elas e as racionais (tanto isso é verdade que Hélio Gomes trata o crime de aborto como interrupção ilícita da prenhez…)”.
- Considerações finais
Exigir que a gestante leve a termo sua gravidez, em situação de reconhecida anencefalia, constitui, inquestionavelmente, uma forma brutal de submetê-la a odioso “tratamento desumano”[16], em flagrante violação ao disposto no art. 5º da Constituição Federal, segundo o qual, ninguém será submetido a tratamento desumano. Ademais, permitir a realização de aborto anencéfalo constitui somente uma faculdade, que a gestante apenas usará se o desejar, que é muito diferente de sua proibição, imposta por norma jurídica cogente, acrescida de sanção criminal privativa de liberdade. Essa linha era seguida pelo relator do HC 84.025-6/RJ, Min. Joaquim Barbosa, conforme deixou claro na seguinte passagem de seu magnífico voto: “em se tratando de feto com vida extrauterina inviável, a questão que se coloca é: não há possibilidade alguma de que esse feto venha a sobreviver fora do útero materno, pois, qualquer que seja o momento do parto ou a qualquer momento que se interrompa a gestação, o resultado será invariavelmente o mesmo: a morte do feto ou do bebê. A antecipação desse evento morte em nome da saúde física e psíquica da mulher contrapõe-se ao princípio da dignidade humana, em sua perspectiva da liberdade, intimidade e autonomia privada? Nesse caso, a eventual opção da gestante pela interrupção da gravidez poderia ser considerada crime? Entendo que não, Sr. Presidente. Isso porque, ao proceder à ponderação de bens entre os valores jurídicos tutelados pelo direito, a vida extrauterina inviável e a liberdade e autonomia privada da mulher, entendo que, no caso em tela, deve prevalecer a dignidade da mulher, deve prevalecer o direito de liberdade desta de escolher aquilo que melhor representa seus interesses pessoais, suas convicções morais e religiosas, seu sentimento pessoal”.
Por fim, para concluir, o Brasil ratificou a convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, a Convenção Americana de Direitos Humanos, “Pacto de San José da Costa Rica” (1969), além de muitos outros Tratados e Convenções. Segundo o magistério de Flávia Piovesan, “os direitos garantidos nos Tratados de Direitos Humanos de que o Brasil é parte, integram, portanto, o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados. Esta conclusão advém ainda da interpretação sistemática e teleológica do texto, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, com parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional”[17]. Por derradeiro, nos termos da nossa Constituição Federal (art. 5º, § 2º), os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, que forem ratificados pelo Brasil, constituem dogmas constitucionais e integram as garantias fundamentais, com status de cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, IV, da CF).
Nessa linha, adotamos a conclusão de Carlos Artidório Allegretti[18], que preconiza: “É impensável que, no Brasil, em horizonte visível, se possa chegar à descriminalização do aborto. O tema está impregnado, ainda, de intolerância religiosa e moral. E, todavia, dever-se-ia pensar no assunto muito séria e racionalmente. O Brasil rural, sem espaços públicos para discussão da autonomia e liberdades públicas, ambiente em que foi editado o código penal que vigorou em 1940, não existe mais. Deu lugar a um país urbano e favelizado, com imensas diferenças sociais, com enorme índice de exclusão, com absoluto desrespeito pelas minorias, mas com paradoxal consciência do coletivo, de espaços conquistados na direção da cidadania, dos direitos individuais e transindividuais e dos direitos humanos. O direito como legislação e como interpretação tem que recuperar o tempo perdido, eis que evoluiu menos do que a sociedade”.
Procuramos, nesses termos, fazer um exame racional do tema — talvez não tenhamos conseguido — sem ignorar a discussão metafísica, mas nos afastando, dentro do possível, e não ingressando, como destaca Carlos Allegretti, na guerrilha linguística da argumentação passional, movida, principalmente, por pressupostos religiosos ou morais, com o que será difícil, para não dizermos impossível, atingir ao menos um consenso mínimo sobre tema tão grave e ao mesmo tempo tão complexo e tão delicado.
[1] Advogado criminalista, Doutor em Direito Penal pela Universidade de Sevilha, Procurador de Justiça aposentado no Estado do Rio Grande do Sul. Parecerista e Consultor Jurídico.
[2] Hungria, Nelson. Comentários ao Código Penal, Rio de Janeiro, Forense, 1958, v. 5, p. 297-8.
[3] Jiménez de Asúa., Luis. El criminalista, Buenos Aires, TEA, 1949, t. III, p. 139.
[4] Hungria, Nelson. Comentários ao Código Penal, 1958, p. 314.
[5] Franco, Alberto Silva. Aborto por indicação eugênica, RJTJSP, 132:9.
[6] Diniz, Debora & Almeida, Marcos de. Bioética e aborto, in Costa , Sergio Ferreira Ibiapina, Oselka, Gabriel e Garrafa, Volnei (coordenadores), Iniciação à Bioética, Brasília, Conselho Federal de Medicina 1998, apud Alegretti. Considerações sobre o aborto (inédito), p. 6.
[7] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, – Crimes contra a pessoa, 17ª ed., São Paulo, Saraiva, 2017, vol. 2, p. 185 e 186.
[8] Becker, Marco Antonio. Anencefalia e possibilidade de interrupção da gravidez, Revista Medicina, Conselho Federal de Medicina, n. 155, maio/jul. 2005, p. 10.
[9] Becker. Marcco Antonio. Anencefalia e possibilidade…, p. 10
[10] Maggiore, Giuseppe. Diritto Penale – Parte Speciale, Bologna 1953 e 1958, v. 1, t. 2, apud, Hungria, Nelson, Comentários ao Código Penal, p. 36-37.
[11] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral, 9ª ed., São Paulo, Saraiva, 2004, v. 1, p. 350-1.
[12] Welsel, Hans. Derecho Penal alemán, p. 197-198.
[13] Welsel, Hans. Derecho Penal alemán, p.125
[14] Welzel, Derecho Penal alemán, p. 125-6.
[15] Alegretti, Carlos Artidório. Revisão crítica do conceito do crime de aborto, (inédito).
[16] Piovesan. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, São Paulo, Max Limonad, 1996, p. 83.
[17] Piovesan. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, São Paulo, Max Limonad, 1996, p. 83.
[18] Alegretti, Carlos Artidório. Revisão crítica do conceito do crime de aborto, (inédito).