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Advocacia criminal se tornou dócil e servil de Ministério Público e Magistratura

Salvo algumas ressalvas, há um ponto em comum entre as pessoas envolvidas na Lava Jato: a cobiça. O super juiz de Curitiba e os Procuradores da Operação Lava Jato viram na operação um meio para se venderem como os heróis da nação, vazarem áudios para a imprensa de forma a prejudicar desafetos, palestrarem no Brasil (igrejas, country clubs e no Congresso Nacional) e no exterior, capitalizando politicamente ao máximo em cima de arbitrariedades cometidas a outras pessoas. No Supremo, algo semelhante ocorre, cada qual na disputa pelo seu lugar ao sol das atenções. À mídia, coube a cobiça em ganhar dinheiro em inúmeras manchetes e especulação sobre infinitos episódios, sem problematizar de forma alguma a que preço isto está sendo obtido. Já a advocacia, que será o principal tópico do artigo, cobiçou também, provando que todos saíram da Lava Jato piores.
Na Operação, advocacia preferiu o caminho fácil da delação. “Dinheirama” por um trabalho que não envolve conflito, mas cumplicidade com os órgãos de acusação, com o juiz todo poderoso. As palavras são mais amistosas, a promessa ao réu da liberdade é mais fácil de ser cumprida e o dinheiro cai na conta rápido, sem uma necessidade de trabalho de defesa que não raras vezes toma anos e anos. Acusação e defesa sentam ao redor da mesa por um “bem maior” que não raras vezes, em especial nesse processo de elite, envolve a barganha com a liberdade alheia, formando uma prova de impossível refutação.
Foi um enorme banquete para o qual o direito de defesa não foi convidado. Trocaram beijos como os porcos festejaram na Revolução dos Bichos, sem ser possível distinguir quem era parte, quem era acusação e quem era defesa. O debate jurídico posto nos limites propostos pela delação de quem estava preso, aliado à falta de complexidade técnica em colocar um ponto final na discussão jurídica, consagrou a delação premiada como expectativa de um final feliz para casos e mais casos.
Ocorre que a defesa que se esbaldou no momento da delação, agora se vê fora da festa. Assiste do lado de fora acusação e juiz em completa aliança caçarem desafetos. Foram “inocentes” úteis que pensaram contribuir para uma defesa que, naquele exato momento do feliz banquete, foi festejada, mas significou um desequilíbrio nas relações de força do processo, colocando a posição do advocacia como dispensável frente aos arbítrios cometidos antes, durante e depois do momento da realização da delação. A defesa se tornou subserviente da acusação siamesa do juiz.
Isso é uma constatação muito preocupante que teve duras consequências para o momento atual e para o que está por vir. Advogados e advogadas foram reduzidos a meros acompanhantes de delatores – exceção feita aos poucos que se recusaram e viram seus clientes condenados a penas esdrúxulas de tão altas, ou então foram trocados por advogados que fariam a delação. Cenas de resistência contra o arbítrio empreendido pela República de Curitiba ficaram cada vez mais raras; ao tempo em que este artigo foi escrito, basicamente elas se resumem aos advogados de Lula, aos quais não cabe a delação em razão do réu ser visto por seus algozes como o topo da pirâmide.

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Hannah Arendt olhou para Eichmann e se surpreendeu com a mediocridade do sujeito que promoveu deslocamentos em massa de judeus para o massacre do regime nazista. Na teoria que desenvolveu a partir do julgamento do alemão, Hannah defende que o mal que ele praticara foi em parte justificado pelo exercício profissional puro e simples, sem maiores reflexões. Segundo ela, o mal pode ser extremo, mas jamais será radical – no sentido de se analisar a raiz de suas ações. Os Advogados não fogem da lógica do sistema de justiça de exceção tal bem delimitado por Pedro Estevam Serrano, e muitas vezes reproduzem a delação com a ideia de que “faz parte do meu trabalho” sem refletir na raiz o que significa tal conduta.
Aos advogados que compactuam com a delação, sobra docilidade com quem tomou de assalto a política no país e cometeu profundos arbítrios contra a liberdade e intimidade das pessoas. Normalmente, o que se ouve são discursos utilitaristas da profissão ou então maquiavélicos de que os fins da Operação justificaram os meios que se valeram de abusos de direitos, sem que haja maior reflexão sobre o assunto.
Vale lembrar que além da redução do papel da defesa que, ainda, aceitou compactuar com métodos de tortura de se manter alguém preso até que esse delate, houve outra consequência da docilidade da advocacia de elite frente à massificação do uso de delação como meio de prova: todas as vezes pactuadas, todos os depoimentos obtidos, a glorificação midiática e das redes sociais – seja pela direita ou esquerda – de delações como sinônimos de verdade, algo que, para quem já presenciou uma, sabe que se trata de uma grande falácia, toda essa glorificação do método significou na força de Moro, Deltan e companhia para capitalizarem politicamente ao máximo, enquanto iam obtendo resultados exitosos em sua caminhada punitivista. Atualmente, a advocacia assiste sentada os poderosos membros da magistratura e do Ministério Público desfilarem com seus arbítrios, mas foi ela que, lá na origem, os fortaleceu de modo imbatível. Algo na semelhança do que Simone de Beauvoir descreveu como interiorização dos valores da empreitada do opressor pelo oprimido.
O futuro é algo que já se percebe em julgamentos espalhados pelas cortes em todo país. Delações premiadas importadas diretamente da “República de Curitiba” para operações menores contra servidores públicos, casos de tráficos de algum certo impacto e algum outro caso que seja de certa complexidade para acusação e juiz. A experiência se espalhou como um vírus, mas somente atingirá seu ápice quando for aplicada no varejo, no balcão da Defensoria Pública de todo país.
No dia em que isso ocorrer – e ele está cada vez mais próximo – pode pegar o que resta de direito de defesa e descartá-lo no lixo mais próximo. Não será necessário ser advogado de defesa criminal, fazer uso da retórica e do contraditório. Bastará ser um bom mercador, vender seu peixe meia-boca por um preço alto e deixar a batata quente para que outra pessoa incumbida da defesa do delatado se vire, sem qualquer chance de se defender. Mero teatro cuja tragédia será assistida por quem deixou a delação por último.
Para que se salve, a advocacia de elite teria que fazer algo que julgo ser impossível, dado o seu compromisso com a comodidade que o dinheiro oferece: terá de se negar a fazer delação premiada. Terá que, na academia, demonstrar que esse meio de prova não é meio algum que não seja o que elimina a figura da advocacia e do direito de defesa.
Infelizmente, quem se opõe à delação atualmente encontra um sistema de justiça que se desenhou para favorecer quem delata. O sinônimo de sucesso virou sinônimo de quem acordou primeiro com os porcos. Por isso, entendo a tarefa como impossível: seja porque a advocacia de elite se acomodou ou então porque quem ousar se contrapor a isso vai inexoravelmente se indispor com acusação, juiz de direito, com colegas da advocacia e com o réu/ré, que quer se ver livre do problema da maneira mais rápida possível.
Demorará muito tempo para a defesa perceber como a delação premiada é um beco sem saída quando é colocada em uma perspectiva de médio ou longo prazo. Até lá, muita gente vai defendê-la como estratégia, favorecendo uma lógica de que a advocacia é despropositada no processo e o quanto antes a condenação com confissão for obtida, melhor. Por isso, entendo que a crise da advocacia atual é geracional. A casta da elite jurídica está perdida e uma geração que perceba os danos do apagamento da advocacia no processo criminal ainda está por vir.
Não vou nem dizer da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), uma instituição que não diz a que veio e caiu no ostracismo político há muito tempo. Digo da advocacia criminal, a quem o passado designou como grande porta voz da contra corrente imposta pelos arbitrários de sempre, à espreita para açoitar o primeiro direito visto como empecilho para que exerçam em paz seu poder absoluto.
A advocacia criminal brasileira salvou a reputação da OAB nos tempos de chumbo, uma vez que a instituição, tal qual em 2016, apoiou a interrupção do mandato presidencial contra as regras do jogo. Logo após essa falha histórica, coube aos advogados como Sobral Pinto, a missão indigesta de se contrapor ao arbítrio estatal. Se naquela vez o arbítrio vinha do Executivo, nesta vem do Judiciário.
Brenno Tardelli é Advogado e Diretor de Redação no Justificando.
Fonte: http://justificando.cartacapital.com.br

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