Por: FLÁVIA FRÓES
Depois de uma xícara generosa de café bem quente tomo apressada a pasta que terminei de montar à uma da madrugada. Menos de duas horas de sono. A ansiedade toma conta. Parto para o aeroporto pensando no tamanho da empreitada pela frente…
Já no avião rumo à Capital Federal me perco nas lembranças de como toda essa história começou…
O ano era 2012. O mundo tinha seus holofotes voltados para a cidade do Rio de Janeiro em razão dos eventos esportivos internacionais que viriam: a copa do mundo e as Olimpíadas.
Havia cinco anos a cidade convivia com o comércio de uma “nova droga” no mercado carioca: O CRACK. Não tínhamos ainda o título de maior país consumidor da tal droga no mundo. Em 2007 o produto ilícito, até então objeto de barreira pelos traficantes varejistas do Rio de Janeiro, chega enfim ao mercado.
O cenário geográfico do comércio ilícito de drogas era novo. O pano de fundo a Cruzada empunhada das UPPS que prometiam por fim à venda de todas as drogas.
As comunidades vulneráveis conviviam com a militarização dos espaços e a imposição de novas regras sociais que não levavam em conta a cultura local nem tampouco os laços de solidariedade reciproca nascidos a partir da formação daquelas favelas, havidas em meio ao processo de desescravização tardia no Brasil.
Os conflitos entre moradores e policiais militares tornam-se rotina nas comunidades onde instalam-se as UPPS.
As lideranças do tráfico presas, agora encontravam-se todas no sistema penitenciário federal, em isolamento absoluto.
Nesse contexto o crack chega ao Rio de Janeiro, capital cultural que exerce ainda o fenômeno da “capitalidade” com grande influência em outros estados.
A grande quantidade de moradores de rua, frutos da inconsistência de políticas sociais eficazes ao longo de décadas recebe a nova droga, acessível economicamente ao consumo desses miseráveis.
A droga, de efeito anfetaminico e inibidor de apetite, chega com a promessa de amenizar o drama de quem vive nas ruas entregue à fome, falta de teto e toda a sorte de privações inerentes àquela condição de desumanização.
Não leva muito tempo para, com a comercialização do Crack, o cenário das favelas tomar nova forma. Acumulo de lixo objeto de garimpo pelos usuários, prostituição à luz do dia nas chamadas “Crackolândias”, furtos e outros crimes patrimoniais dentro das comunidades rompendo um antigo pacto social das favelas.
Nesse contexto o Instituto se lança no projeto Anjos contra o Crack, com o objetivo de convencer os traficantes de drogas a parar a venda daquela droga.
Com êxito em inúmeras comunidades o projeto desperta o interesse da imprensa internacional, presente no país em razão dos mega eventos esportivos.
O Projeto esbarra em interesses comerciais e na necessidade de penetrar o sistema penitenciário para progredir no intento de levar ao conhecimento de todos a realidade do Crack nas ruas e seus efeitos para as comunidades.
A turbulência do voo agora me remete às razões que me fizeram retomar o projeto.
Foram cinco anos fazendo trabalho nas Crackolândias do Rio de Janeiro onde conheci muitas pessoas a quem me afeiçoei. Muitas histórias de sofrimento. Depois do macarrão saboreado com prazer pelos meus amigos de rua, a “Tia Loira do Bombom”, como havia sido apelidada, ouvia muitas histórias que a faziam sentir impotente diante de tantas necessidades essenciais aquelas pessoas.
Nos conflitos recentes na favela do Jacarezinho, local onde o Projeto começou, o raio-x dessa miséria do crack que ladeia ironicamente a “Cidade da Polícia”. Palco de muitos confrontos entre moradores e Policiais, a UPP daquela localidade se torna conhecida pelas denúncias de abuso sexual pelos policiais, além de outros relatos de violações diversas.
Ao retomar o ânimo para o Projeto “Anjos contra o Crack” o intuito é de levar aos presos do Sistema Penitenciário Federal conhecimento, projetando vídeos e cartilhas para aqueles que não fazem ideia dessa realidade. O pressuposto é que cada um deles, como filhos daquelas comunidades, podem contribuir para a dignidade e humanização daquelas localidades. O projeto prevê um concurso entre os custodiados com redações e ideias de como por fim ao flagelo do Crack.
Para além do Crack as necessidades daquela população de Rua, hoje rotulada com o epíteto de “crackudos”, urge de uma política social que lhes resgate a condição de cidadãos, sujeitos de direitos.
O sinal sonoro de afivelar os cintos me avisa do pouso. Em genuflexão me ponho para que a inspiração nos tome e permita que possamos convencer nossos interlocutores de hoje a permitir que levemos nossos argumentos e vídeos aos presos do sistema federal.
A missão recomeça…
FLÁVIA FRÓES, advogada criminalista associada à ABRACRM-RJ, Vice-presidente da Comissão Nacional de Assuntos Penitenciários da ABRACRIM.