ARTIGO ABRACRIM: EVOLUÇÃO DA PERSPECTIVA DE GÊNERO NA JURISPRUDÊNCIA COM VIÉS CRIMINAL E A IMPORTÂNCIA DO PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO – por Mayara de Andrade Bezerra
Antes mesmo de referenciar alguns dos julgamentos mais relevantes no que diz respeito à perspectiva de gênero no âmbito criminal é necessário que algumas premissas imprescindíveis à contextualização e reflexos dos posicionamentos judiciais sejam sucintamente fixadas.
Com esse intuito, destaca-se brevemente alguns dos conceitos e apontamentos dispostos no “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero” do Conselho Nacional de Justiça, resultante do Grupo de Trabalho instituído pela Portaria CNJ n. 27, de 2 de fevereiro de 2021 – criado para colaborar com a implementação das políticas nacionais estabelecidas pelas Resoluções CNJ ns. 254 (Institui a Política Judiciária Nacional de enfrentamento à violência contra às Mulheres pelo Poder Judiciário) e 255 (Institui a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário), de 4 de setembro de 2018.
Registra-se, ainda, que por meio da Recomendação n. 128, de 15 de fevereiro de 2022, o Conselho Nacional de Justiça recomendou a adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero no âmbito do Poder Judiciário Brasileiro.
Com base nesse Protocolo, o conceito de SEXO “está relacionado aos aspectos biológicos que servem como base para a classificação de indivíduos entre machos, fêmeas e intersexuais”[1], e a classificação dos seres humanos nessa categoria se dá mediante a observação de determinadas características anatômicas, tais como órgãos sexuais e reprodutivos, hormônios e cromossomos.
O documento aponta, desde o princípio, que “o conceito de sexo é considerado obsoleto enquanto ferramenta analítica para refletirmos sobre desigualdades”, porquanto exclui diversas outras “características não biológicas socialmente construídas e atribuídas a indivíduos – muitas vezes em razão de seu sexo biológico – que tem maior relevância para entendermos como opressões acontecem no mundo real (leia-se: meio social)”[2].
De acordo com esse raciocínio, o conceito mais adequado aos aspectos sociais – que são de suma importância – é o de GÊNERO, que trata, por sua vez, do “conjunto de características socialmente atribuídas aos diferentes sexos”[3]. Tal definição nos impele a refletir sobre o tema a partir de uma visão mais ampliada, considerando, por exemplo, a ideia de que as diferenças impostas a homens e mulheres são, na maioria das vezes, resultado cultural de hierarquias sociais.
Em resumo, gênero “deve ser compreendido como uma ferramenta analítica que pretende enxergar e explicar o conjunto de formulações sociais, propriedades e características atribuídas a determinadas pessoas em razão do sexo”[4].
Pode ocorrer, todavia, que uma pessoa se identifique com características não alinhadas ao seu sexo designado. Em outras palavras, é plenamente possível que uma pessoa nasça do sexo masculino e se identifique com características tradicionalmente relacionadas ao sexo feminino – ou pelo menos aquelas que, tradicionalmente, se atribuiu a ele.
Em decorrência disso é que a recomendação aos magistrados relativamente à essa questão, deu-se nos seguintes termos:
“Pessoas que não se conformam com o gênero a elas atribuído ao nascer foram e ainda são extremamente discriminadas no Brasil e no mundo, na medida em que a conformidade entre sexo e gênero continua a ser a expectativa dominante da sociedade. Dessa forma, recomenda-se que magistradas e magistrados comprometidos com julgamentos na perspectiva de gênero se perguntem: essas expectativas estão guiando determinada interpretação e/ou reforçando tais expectativas de alguma maneira, em prejuízo ao indivíduo envolvido na demanda?”[5].
Entre os julgamentos citados no próprio Protocolo, destacam-se aqueles que, por ora, nos interessam. O primeiro deles é a decisão cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF n. 527[6], do Distrito Federal, que garantiu às transexuais e travestis com identidade de gênero feminina o direito de opção de cumprir pena em estabelecimento prisional feminino, ou em estabelecimento prisional masculino, desde que em área reservada e que sua segurança seja garantida.
Na decisão proferida na ADPF n. 527, no dia 18 de março de 2021, a fundamentação acerca das normas e standards de proteção à população LGBTI merece destaque:
“Como já assinalado, quando do deferimento da decisão cautelar cuja extensão está sendo postulada, a proteção das pessoas LGBTI e, em especial, das pessoas LGBTI em situação de encarceramento, no âmbito internacional, parte da compreensão de que a identidade de gênero e a orientação sexual constituem dimensões essenciais da dignidade, da personalidade, da autonomia, da privacidade e da liberdade. Nesses termos, tal proteção é articulada com recurso: (i) ao direito à vida, à liberdade e à segurança[2]; (ii) à vedação à tortura e o tratamento desumano e cruel[3]; e (iii) à proibição de tratamento discriminatório[4]. Com base nessas normas, afirma-se o dever dos Estados de zelar pela não discriminação em razão da identidade de gênero e orientação sexual, bem como de adotar todas as providências necessárias para assegurar a integridade física e psíquica de pessoas LGBTI encarceradas[5].
8. Atenta, contudo, à necessidade de produzir standards mais específicos para a população LGBTI, a comunidade internacional aprovou, em 2007, os Princípios de Yogyakarta[6], que procuraram compilar e reinterpretar os direitos humanos aplicáveis a situações de discriminação, estigma e violência experimentados por grupos, em razão de sua identidade de gênero e de sua orientação sexual[7].
9. No que respeita ao assunto aqui em exame, tais princípios reviram que os Estados devem tomar uma série de medidas voltadas a proteger a população LGBTI no sistema carcerário, tais como: (i) cuidar para que a detenção não produza uma marginalização ainda maior de tais pessoas, procurando minimizar risco de violência, maus-tratos, abusos físicos, mentais e sexuais; (ii) implantar medidas concretas de prevenção a tais abusos, buscando evitar que elas impliquem maior restrição de direitos do que aquelas que já atingem a população prisional; (iii) proporcionar monitoramento independente das instalações de detenção por parte do Estado e de organizações não-governamentais; (iv) implementar programas de treinamento e conscientização para agentes e demais envolvidos com instalações prisionais; e, finalmente, (v) assegurar, na medida do possível, que pessoas detidas participem de decisões relacionadas ao local de detenção adequado à sua orientação sexual e identidade de gênero (Princípio 9 de Yogyakarta)[8].
10. No âmbito do direito constitucional brasileiro, o direito das pessoas LGBTI à não discriminação e à proteção física e mental tem amparo: (i) no princípio da dignidade humana[9], (ii) no direito à não discriminação em razão da identidade de gênero ou em razão da orientação sexual[10], (iii) no direito à vida e à integridade física[11], (iv) no direito à saúde[12], (v) na vedação à tortura e ao tratamento desumano ou cruel[13] e na cláusula de abertura da Constituição de 1988 ao direito internacional dos direitos humanos[14]. Há, igualmente, jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal Federal reconhecendo o direito deste grupo a viver de acordo com a sua identidade de gênero e a obter tratamento social compatível com ela (ADI 4275, red. p/o acórdão Min. Edson Fachin; RE 670.422, rel. Min. Dias Toffoli)”[7].
É expressamente mencionado no Protocolo em voga que, não obstante a Constituição Federal faça referência à igualdade entre os sexos, atualmente, o direito protege, da mesma maneira, a igualdade entre os gêneros.
Dando prosseguimento às conceituações, deve-se registrar que a SEXUALIDADE “diz respeito às práticas sexuais e afetivas dos seres humanos” e a orientação sexual, por sua vez, assim como ocorre com as questões de gênero, pode ser analisada por diversos ângulos – apesar de o padrão ser definido com base na heterossexualidade, enquanto as demais orientações (homossexualidade, bissexualidade e etc.) são tidas como “desviantes”.
Acerca desse ponto, o Protocolo traz a indicação de que “uma atuação jurídica comprometida com a igualdade, deve então ser guiada pela seguinte pergunta: a heteronormatividade está sendo utilizada como pressuposto ou está sendo, de alguma forma, reforçada por determinada decisão?”[8].
Outro julgamento expressivo e que merece citação é o da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO n. 26[9], do Distrito Federal, julgada em 2019, pela qual a LGBTfobia, para fins de criminalização, foi equiparada ao racismo, com esteio no fato de que as práticas homotransfóbicas são qualificadas “como espécie do gênero de racismo, na dimensão social consagrada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do plenário do HC 82.424/RS (caso Ellwanger), na medida em que tais condutas importam em atos de segregação que inferiorizam membros integrantes do grupo LGBTI+, em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”, como se verifica dos trechos da ementa do acórdão a seguir colacionados:
“[…] – Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade e razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, ‘in fine’)”.
[…] – Os integrantes do grupo LGBTI+, como qualquer outra pessoa, nascem iguais em dignidade e direitos e possuem igual capacidade de autodeterminação quanto às suas escolhas pessoais em matéria afetiva e amorosa, especialmente no que concerne à sua vivência homoerótica.
Ninguém, sob a égide de uma ordem democrática justa, pode ser privado de seus direitos (entre os quais o direito à busca da felicidade e o direito à igualdade de tratamento que a Constituição e as leis da República dispensam às pessoas em geral) ou sofrer qualquer restrição em sua esfera jurídica em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero!
Garantir aos integrantes do grupo LGBTI+ a posse da cidadania plena e o integral respeito tanto à sua condição quanto às suas escolhas pessoais pode significar, nestes tempos em que as liberdades fundamentais das pessoas sofrem ataques por parte de mentes sombrias e retrógradas, a diferença essencial entre civilização e barbárie.
[…] – O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.
[…] – A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.
[…] – O discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações e manifestações que incitem a discriminação, que estimulem a hostilidade ou que provoquem a violência (física ou moral) contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero, não encontra amparo na liberdade constitucional de expressão nem na Convenção Americana de Direitos Humanos (Artigo 13, § 5º), que expressamente o repele”.
Sem esmiuçar todas as questões que envolvem direta e indiretamente cada um dos conceitos acima especificados – o que se pretende fazer futuramente, bem como sem adentrar na fundamentação que serviu de base para cada um dos precedentes trazidos à baila, cabe indicar outras decisões, com viés penal, que possuem relação com perspectiva de gênero.
Mas, afinal, como é ou deve ser encarado um julgamento com perspectiva de gênero?
Pois bem. Um julgamento com perspectiva de gênero implica na adoção de uma postura ativa de reconhecimento das desigualdades, o que deve refletir em efetiva contribuição para o encerramento desse ciclo. Isso em evidente observância ao que estipula a nossa Carta Magna de 1988, mais especificamente em seu art. 5º que, entre outros, garante a todos, sem distinção, o direito à igualdade.
Ao se falar em (des)igualdade vale transcrever a citação que Fabiana Cristina Severi faz acerca das reflexões de Martha Minow, jurista feminista norte-americana, no sentido de que:
“[…] nos auxiliam a entender como a adoção de uma abordagem relacional sobre as diferenças (entre as quais, as diferenças de sexo e/ou gênero) não resulta em violação ao princípio da igualdade, mas, sim, em um fazer jurisdicional mais comprometido com as demandas por efetivação de direitos de grupos subalternizados ou explorados. Suas formulações dialogam com perspectivas jurídicas críticas que mantêm como horizonte uma práxis jurídica transformadora, apesar dos riscos aí implicados”[10].
É imperioso apontar a estrutura normativa que ampara a metodologia dos julgamentos sob a perspectiva de gênero. No âmbito interno, temos a Constituição Federal de 1988, e seu art. 5º que, a propósito, foi tecido por uma série de movimentos sociais em aliança, inclusive o feminista. Além, claro, de diversos tratados internacionais que versam sobre o tema.
Vale dizer, ademais, que a perspectiva de gênero além de priorizar o preceito de igualdade, também considera dois tipos de controle, sendo eles o de constitucionalidade, respeitante à verificação da compatibilidade das leis com a Constituição, e o de convencionalidade, que consiste na verificação da compatibilidade das leis com os tratados e convenções supralegais – ambos de competência do Supremo Tribunal Federal.
E dentro da esfera da convencionalidade cita-se duas referências principais, a primeira delas é a Convenção CEDAW – que é um tratado internacional, aprovado em 1979 pela Assembleia Geral das Nações Unidas e que trata sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra mulheres, do sistema global – assinada pelo Brasil em 31 de março de 1981, entra em vigor em 2 de março de 1984 com ressalvas anteriores que, mais tarde, no ano de 1994, foram retiradas, fazendo com que a Convenção fosse aceita por completo.
A segunda é a Convenção de Belém do Pará, do sistema Interamericano de Direitos Humanos, que é o primeiro tratado internacional legalmente vinculante que criminaliza de todas as formas de violência contra a mulher, especialmente a violência sexual.
De outro lado, a adoção de uma perspectiva de gênero na tomada de decisões judiciais já era obrigação prevista na Lei Maria da Penha, que é de 2006 e que assim dispõe:
“Art. 8º A política pública visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Município e de ações não governamentais, tendo por diretrizes:
[…] VII – A promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com perspectiva de gênero e de ração ou etnia”.
A bem da verdade, foi a Lei Maria da Penha que incorporou no ordenamento jurídico o conceito de gênero como categoria e como abordagem metodológica, ainda que de forma tardia. Mesmo assim, surgiu bem antes do Protocolo que ainda é recente e pouca ênfase dá à temática da violência doméstica.
Avançando no que concerne aos precedentes, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI n. 4424, do Distrito Federal, entendeu-se que condicionar à representação a punição do crime de lesão corporal no ambiente doméstico gera efeitos desproporcionalmente nocivos para as mulheres, de modo que foi conferida natureza pública incondicionada à ação penal relativa à lesão corporal resultante de violência doméstica.
Foi declarado no voto do Ministro Marco Aurélio, relator desses autos, que:
“No caso presente, não bastasse a situação de notória desigualdade considerada a mulher, aspecto suficiente a legitimar o necessário tratamento normativo desigual, tem-se como base para assim se proceder a dignidade da pessoa humana – artigo 1º, inciso III –, o direito fundamental de igualdade – artigo 5º, inciso I – e a previsão pedagógica segundo a qual a lei punirá qualquer discriminação atentatória odos direitos e liberdades fundamentais – artigo 5º, inciso XLI.
A legislação ordinária protetiva está em fina sintonia com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, no que revela a exigência de os Estados adotarem medidas especiais destinadas a acelerar o processo de construção de um ambiente onde haja real igualdade entre os gêneros. Há também de se ressaltar a harmonia dos preceitos com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – a Convenção de Belém do Pará –, no que mostra ser a violência contra a mulher uma ofensa aos direitos humanos e a consequência de relações de poder historicamente desiguais entre os sexos.
[…]
Descabe interpretar a Lei Maria da Penha de forma dissociada do
Diploma Maior e dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, sendo estes últimos normas de caráter supralegal também aptas a nortear a interpretação da legislação ordinária. Não se pode olvidar, na atualidade, uma consciência constitucional sobre a diferença e sobre a especificação dos sujeitos de direito, o que traz legitimação às discriminações positivas voltadas a atender as peculiaridades de grupos menos favorecidos e a compensar desigualdades de fato, decorrentes da cristalização cultural do preconceito. Alfim, é vedado aplicar a norma de forma a revestir a ‘surra doméstica’ de aparências de legalidade ou de tolerância – ‘A Lei Maria da Penha’, Eliana Calmon, Revista Justiça & Cidadania, 10 ed., junho de 2009”.
Já a Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF n. 779, do Distrito Federal, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, foi parcialmente concedida para firmar o entendimento de que a “legítima defesa da honra” não pode incidir como causa excludente de ilicitude no Tribunal do Júri porquanto representa recurso argumentativo dissonante da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. Confira-se trechos da ementa correspondente:
“[…] 2. A ‘legítima defesa da honra’ é recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra a mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões. Constitui-se em ranço, na retórica de alguns operadores do direito, de institucionalização da desigualdade entre homens e mulheres e de tolerância e naturalização da violência doméstica, as quais não têm guarida na Constituição de 1988.
3. Tese violadora da dignidade da pessoa humana, dos direitos à
vida e à igualdade entre homens e mulheres (art. 1º, inciso III, e art. 5º, caput e inciso I, da CF/88), pilares da ordem constitucional brasileira. A ofensa a esses direitos concretiza-se, sobretudo, no estímulo à perpetuação da violência contra a mulher e do feminicídio. O acolhimento da tese tem a potencialidade de estimular práticas violentas contra as mulheres ao exonerar seus perpetradores da devida sanção.
4. A ‘legítima defesa da honra’ não pode ser invocada como argumento inerente à plenitude de defesa própria do tribunal do júri, a qual não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas. Assim, devem prevalecer a dignidade da pessoa humana, a vedação a todas as formas de discriminação, o direito à igualdade e o direito à vida, tendo em vista os riscos elevados e sistêmicos decorrentes da naturalização, da tolerância e do incentivo à cultura da violência doméstica e do feminicídio[…]”.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus n. 143.641, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, no que concerne à audiência de custódia e maternidade, concedeu ordem coletiva e determinou a substituição da prisão preventiva por domiciliar de mulheres presas, em todo o território nacional, que sejam gestantes, puérperas, ou mãe de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência, sem prejuízo da aplicação de medidas alternativas previstas no art. 319 do Código de Processo Penal.
Entre os itens elencados na ementa do julgado, fez-se constar que: “X – Tanto o objetivo de Desenvolvimento do Milênio nº 5 (melhorar a saúde materna) quanto o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 5 (alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas), ambos da Organização das Nações Unidas, ao tutelarem a saúde reprodutiva das pessoas do gênero feminino, corroboram o pleito formulado na impetração”[11].
O julgado deixou de conceder o benefício no caso de crimes praticados pela mulher com violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em “situações excepcionalíssimas”, as quais precisam ser devidamente fundamentadas na hipótese de denegação do benefício.
Por fim, mas não menos importante, temos recente julgado da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, mais precisamente o Recurso Especial n. 1.977.124/SP, de relatoria do Ministro Rogerio Schietti, onde se decidiu pela aplicação da Lei Maria da Penha a mulheres transexuais, afastando a limitação imposta pelo Tribunal de origem no sentido de que a proteção abrangeria somente as pessoas que ostentam condição biológica de mulher.
O julgado analisa em detalhes as circunstâncias fáticas do caso – onde a mulher transexual foi vítima de agressões praticadas pelo próprio pai – e, também, a argumentação utilizada nas instâncias ordinárias – de que medidas protetivas seriam incabíveis no caso concreto porque o conceito de “mulher” não pode ser interpretado contrariando o “sentido científico” –, rechaçando-a com lastro em farta e consistente fundamentação.
Frisa-se que o recurso foi interposto pelo Ministério Público de São Paulo sob a justificativa de que o acórdão estadual violou o art. 5º da Lei Maria da Penha, notadamente porque a interpretação legal possível é a de que a lei protege a mulher contra qualquer espécie de violência oriunda do fator gênero e não apenas no sexo biológico – o que contraria o disposto no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de gênero.
Com efeito, o voto do Ministro relator está em perfeita sintonia com o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero – o qual é categoricamente mencionado – conforme se observa dos excertos a seguir:
“Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas e o Direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias.
[…]
V. Resistência à heteronormatividade
O debate merece uma breve consideração sobre as raízes da dificuldade em se tratar temas como o dos autos sem as amarras do preconceito contra corpos estranhos na visão heteronormativa. O diálogo com as teorias queers ainda é incipiente na literatura jurídico-penal e criminológica brasileira”.
Pelo que se depreende da síntese ora apresentada, a adoção da perspectiva de gênero nos julgamentos, mesmo naqueles que precederam as normativas apontadas, e especialmente naqueles que as sucederam, ao invés de ferir o princípio da igualdade, ou mesmo o da impessoalidade, denota o reconhecimento e validação das desigualdades que são pretéritas, inclusive, ao contexto de normas vigente.
O julgamento com perspectiva de gênero, então, está intimamente imbricado com o princípio da não discriminação e princípio da responsabilidade estatal.
Trata-se de uma visão dos fatos, sociais e jurídicos, mais abrangente e realística, o que possibilita ao julgador, de um modo geral, atribuir às demandas envolvendo questões de gênero, notadamente àquelas de cunho criminal, a complexidade que, de fato, lhe são peculiares.
Dito de outra forma, o acolhimento dessa perspectiva, do modo em que é desenhado nos diversos dispositivos legais existentes, pode ser capaz de evitar que o julgador seja acometido de limitações relacionadas à sua atividade judicante, como quando, a título exemplificativo, houvesse chance de se apoiar em uma visão casuística ou decidir com embasamento em experiências pessoais.
A consequência disso, naturalmente, é que os julgadores passem a dar respostas igualmente mais complexas e aprofundadas – equilibrando, assim, o que é louvável, pelo menos o sistema judicial.
Aliás, em se tratando de atuações admiráveis nos que diz respeito à defesa da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres, não se pode deixar de mencionar as contribuições trazidas por Ruth Bader Ginsburg, Juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos.
A propósito, em 2018 foi lançado o filme “Suprema” (On the basis sex, título original em inglês), que retrata a trajetória – brilhante, diga-se de passagem – da Juíza que foi pioneira em sua época, experimentando na própria pele as inúmeras dificuldades sofridas pelas mulheres, especialmente àquelas que se referem à inserção no mercado de trabalho.
Por derradeiro, visando detalhar um pouco mais a relevância e o sentido da existência de Ruth Bader Ginsburg nessa conjuntura da perspectiva de gênero – especialmente vinculada à atividade judicante, reproduz-se as conclusões de Danna Catharina Mascarello Luciani e Juliana Horn Machado Philippi sobre o filme baseado na vida e carreira da Juíza:
“Ruth Bader Ginsburg pode ser considerada como um modelo da persecução pela igualdade de gênero, visto que foi incansável em sua vida acadêmica e profissional, sempre muito focada em obter os melhores resultados, e visando superar a crença existente na época de que certas posições e funções não poderiam ser realizadas por mulheres. Obteve êxito em sua incansável e brilhante trajetória, vindo inclusive a ser nomeada juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos, onde se destacou por suas opiniões liberais e revolucionárias, especialmente no que tange à busca pela igualdade de gênero e a proteção dos direitos das mulheres.
Sua trajetória demonstra a necessidade de representatividade nas instituições de poder, como tribunais e Congresso Nacional, de modo que os interesses de todos sejam colocados em pauta. […]
Considerando-se a fundamentalidade do direito à igualdade entre homens e mulheres e do direito ao trabalho (este inclusive direito fundamental social), existem, consequentemente, dimensões objetivas e subjetivas desses direitos. Desse modo, são impostos deveres jurídicos ao Estado e, em contrapartida, os cidadãos podem exigi-los, inclusive mediante tutela jurisdicional para a persecução do bem tutelado pelo direito fundamental.
Mas, sobretudo, faz-se necessária uma quebra de paradigmas (tal como demonstrado em ‘Suprema’), para a superação de padrões culturais a respeito da divisão de papéis entre homens e mulheres, inclusive com redistribuição de suas funções na família e na sociedade, na busca de um bem comum, que é a promoção da igualdade de gênero”[12].
Finalmente, há uma última consideração a ser feita: não é apenas necessária, mas é também urgente, que haja uma “quebra de paradigma” relativamente às questões de gênero; todavia, ainda que tardiamente e com certa lentidão, é possível inferir que ela já está acontecendo – é o que os julgados referenciados nos revelam.
[1] Pg. 16 do Protocolo.
[2] Pg. 16 do Protocolo.
[3] Pg. 16 do Protocolo.
[4] Pg. 17 do Protocolo – TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil e outros ensaios. São Paulo: Alameda, 2018.
[5] Pg. 18 do Protocolo.
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 527/DF. Relator: Min. Luís Roberto Barroso, 29 de junho de 2018. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 153, 1 ago. 2018. Aguardando finalização do julgamento.
[7] https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15345975525&ext=.pdf. Acesso em 27/07/2022.
[8] Pg. 19 do Protocolo.
[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26. Relator: Min. Celso de Mello, 13 de junho de 2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754019240.
Acesso em: 27/07/2022.
[10] Acesso em 27/07/2022 – Disponível no URL: www.revistas.usp.br/rdda.
[11] https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748401053. Acesso em 27/07/2022.
[12][12] “O filme ‘Suprema’ e os desafios para a igualdade de gênero”. Direito em arte – I obra de pesquisa científica da Nôma/ organização Miriam Olivia Knopik Ferraz e Ariê Scherreier Ferneda. – Belo Horizonte, MG: Editora Senso, 2021.