AS MISÉRIAS DO PROCESSO PENAL ATUAL
AS MISÉRIAS DO PROCESSO PENAL ATUAL
Por Fabiano Pimentel – Doutor e Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal da Bahia e da Universidade do Estado da Bahia. Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Conselheiro da OAB/BA e da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – ABRACRIM. Sócio-Fundador do Escritório Fabiano Pimentel Advocacia Criminal. Advogado Criminalista.
- Introdução
O processo penal brasileiro dos dias atuais vive um momento de grande instabilidade, ou até mesmo, vale dizer, de grande retrocesso. Não é incomum encontrarmos discursos, na grande massa popular, em defesa de um processo penal punitivista, onde se busca a condenação do réu a qualquer custo, até mesmo com violação de princípios que foram garantidos pela Constituição Federal. Hoje, o que importa é punir, e punir de qualquer forma, desrespeitando qualquer regra ou princípio de direito, pois, para grande parte da população, “os fins justificam os meios”.
Recentemente, o juiz Sérgio Moro, durante audiência pública realizada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado para discutir o Projeto de Lei (PL) 402/2015 afirmou que “para avançar no combate à corrupção, é necessário reduzir as garantias individuais”. Ouviu-se ainda expressão de Antônio César Bochenek: “Devido à ditadura militar, a constituição de 1988 deu grande amplitude às garantias individuais, o que hoje não é mais necessário, devido ao longo período de governos democráticos”.
Vivemos um período crítico do processo penal. O combate à corrupção e a impunidade agora servem para justificar qualquer tipo de violação às garantias que foram conseguidas com derramamento de sangue de muitos inocentes, em período ditatorial no qual o Brasil esteve mergulhado de 1964 até 1985.
Sabe-se que o governo democrático caracteriza-se pelo sistema de limites ao poder e esta limitação é dada pelos direitos fundamentais, como bem asseverou o juiz Rubens Roberto Rebello Casara, em debate no senado sobre o mesmo projeto de lei descrito acima: “O estado democrático de direito se caracteriza por limites no exercício do poder. Cada vez que uma garantia constitucional é relativizada, o estado caminha para o autoritarismo, o estado policial, para o estado total. No fascismo clássico italiano, no nazismo alemão, no stalinismo soviético, em todos esses períodos a presunção de inocência foi relativizada”.
O Brasil, entretanto, nestes últimos acontecimentos, vem demonstrando que retornará a este processo penal fascista descrito por Rubens Casara. Digo isto, principalmente, porque este discurso de supressão de garantias vem sendo proferido pelas próprias autoridades que deveriam guardá-las, às vezes, dito por aqueles que devem julgar os processos criminais, aí o cenário torna-se ainda mais preocupante.
O pior de tudo isso é que a grande massa da população aplaude estas atitudes, ovacionando as medidas antigarantistas como se fossem grandes feitos, como se o direito pudesse ser desrespeitado em determinadas hipóteses, previamente selecionadas ou para certos “inimigos do estado”, esquecendo-se que um dia estas baterias acusatórias podem ser voltadas para qualquer um de nós e aí não haverá mais tempo para contê-las. .
Este cenário vivido pelo processo penal brasileiro me fez lembrar a primorosa obra de Francesco Carnelutti: “As misérias do processo penal”. Ao reler seu texto, pude perceber que a referida obra permanece ainda tão atual e que as misérias que foram tão combatidas pelo mestre do processo penal italiano retornaram com força máxima no processo penal brasileiro. Assim, ao reler sua obra, destaquei pontos que eram verdadeiros alicerces do processo penal italiano, mas que estão sendo esquecidos no Brasil.
Passeamos então a descrever as 10 misérias do processo penal brasileiro da atualidade relembrando as lições de Francesco Carnellutti.
- A primeira miséria do processo penal brasileiro: a violação ao princípio da presunção de inocência.
“A Constituição italiana proclamou solenemente a necessidade de tal respeito declarando que o acusado não deve ser considerado culpado até que seja condenado com uma sentença definitiva”. (CARNELUTTI, 2009, p. 53).
Recentemente a AJUFE – Associação dos Juízes Federais do Brasil – ingressou com proposta de alteração do Código de Processo Penal (PLS 402/2015) permitindo o decreto de prisão preventiva para determinados crimes após o julgamento da apelação pelo segundo grau de jurisdição, mesmo pendentes os recursos extraordinários, além de propor outras reformas como: o fim do art. 600, §4º., do CPP; além de dar o mesmo tratamento para as decisões do Júri; bem como, a redução das hipóteses de cabimento dos embargos infringentes.
Assim justificou a AJUFE: “Após reuniões destinadas a discutir com a Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE uma alteração na legislação processual penal brasileira, ofertou-nos aquela associação o texto da presente proposição, destinada que é a promover alteração normativa que atribua maior eficácia às sentenças condenatórias e aos acórdãos condenatórios no processo penal, evitando a eternização da relação jurídica processual, com graves impactos na aplicação da lei penal. Não é razoável transformar a sentença condenatória ou o acórdão condenatório, ainda que sujeitos a recursos em um “nada” jurídico, como se não representassem qualquer alteração na situação jurídica do acusado”. (Justificativa da AJUFE para o PLS 402/2015).
Fato relevante é que tais violações às garantias constitucionais foram propostas pelos juízes que deveriam guardar os direitos fundamentais do cidadão. Isso é ainda mais preocupante…
Vejamos alguns artigos deste projeto de lei:
Art. 617-A: “Ao proferir acórdão condenatório por crimes hediondos, de tráfico de drogas, tortura, corrupção ativa ou passiva, peculato, lavagem de dinheiro, o tribunal decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção ou imposição da preventiva ou outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interposto”. §2º: “Quando imposta pena privativa de liberdade superior a quatro anos, a prisão preventiva poderá ser decretada, mesmo tendo o condenado respondido ao processo em liberdade, salvo se houver garantias de que o condenado não irá fugir ou não irá praticar novas infrações penais se permanecer solto”.
Inicialmente cumpre ressaltar que o decreto da prisão preventiva sempre foi possível em qualquer fase no processo penal, seja na sentença ou no acórdão, desde que o juiz fundamente sua decisão e estejam presentes seus requisitos estruturantes previstos no art. 312 do CPP.
O que nos causa espécie é o fato de que a prisão está reservada para determinados crimes, em detrimento de outros, sem uma explicação convincente para tal distinção. Ademais, o que se busca aqui, de forma direta, é a “automatização” da prisão preventiva após o julgamento da apelação, mesmo tendo o acusado respondido ao processo em liberdade, ou seja, sem que os requisitos da prisão preventiva estivessem presentes.
O pior ainda está por vir…
Na parte final do dispositivo o projeto ainda descreve que “quando imposta pena privativa de liberdade superior a quatro anos, a prisão preventiva poderá ser decretada, mesmo tendo o condenado respondido ao processo em liberdade, salvo se houver garantias de que o condenado não irá fugir ou não irá praticar novas infrações penais se permanecer solto”.
Como se vê, a regra será a prisão, salvo se o condenado der garantias que não irá fugir. Como se conceber tamanha inversão do ônus de provar determinado fato negativo? É possível provar que o condenado jamais cometerá um novo delito, seja de que natureza for ? Como provar que o condenado não irá fugir ? Como dar ao juiz uma garantia concreta que o condenado não deixará o distrito da culpa ou que não praticará novas infrações penais se solto estiver ? Por óbvio que é um dispositivo que tem por objetivo prejudicar o condenado e prendê-lo automaticamente, já que não conseguirá dar ao julgador tais impossíveis garantias.
O Senador Ricardo Ferraço assim justifica a medida: “Os fundamentos da prisão preventiva elencados no Projeto são diferentes daqueles previstos para o instituto no art. 312 do Código de Processo Penal (CPP), pois, com o acórdão condenatório, já haveria certeza, ainda que provisória, quanto à responsabilidade criminal do acusado, não se podendo falar mais, portanto, em “presunção” de inocência”.
O que é uma certeza provisória? Seria uma certeza não tão certa assim ? Uma certeza condicional ?
Seria possível alcançar a certeza, um conceito tão absoluto, diante de um fato passado que ficou no tempo? Nem mesmo nas ciências naturais se pode falar em certezas. Veja-se que Ilya Prigogine afirmou o fim das certezas. Para o autor, as leis da natureza adquirem um significado novo e não tratam mais das certezas morais, mas sim de possibilidades[1].
Agora, imagine ser possível falar em certeza provisória, ou seja, uma certeza que é certa até determinado período, que pode ser certa, ou não tão certa assim, a depender do momento temporal futuro. Agora, imagine que esta certeza (que não é tão certa assim por isso recebeu o nome de “certeza provisória) pode afastar o princípio da presunção de inocência, mesmo sendo um sinônimo de incerteza. Certeza provisória é incerteza, e bem por isso, não pode ser fundamento para o início do cumprimento de pena.
Este é o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos. No caso Oscar Alberto Mohamed, o Estado Argentino foi condenado por violar o direito fundamental que tem todo acusado de recorrer ou questionar uma sentença condenatória. Absolvido por homicídio culposo em 1ª instância, foi condenado em 2ª. instância – “a pessoa recém condenada nesta instância, também tem o direito de revisão ampla desta condenação”. Entendeu-se que foi negado o direito de revisão da sentença.
No Caso Ivan Suárez Rosero x Equador o réu ficou preso por mais de 04 anos e assim foi o resultado do julgamento : “Esta corte defende que o princípio da presunção da inocência serve ao propósito das garantias judiciais, ao afirmar a ideia de que uma pessoa é inocente até que sua culpabilidade seja demonstrada. Do disposto no art. 8.2 da convenção se deriva a obrigação estatal de não restringir a liberdade do preso além dos limites necessários para assegurar uma eficiente investigação, pois a prisão é uma prisão cautelar não punitiva. Em caso contrário, se estaria cometendo uma injustiça ao privar a liberdade por prazo desproporcional a uma pessoa cuja responsabilidade ainda não tenha se estabelecido. Seria o mesmo que antecipar uma sentença, violando princípios universalmente reconhecidos”.
No Caso Ricardo Canese x Paraguai: “A corte frisou que a presunção de inocência implica que o acusado não deve demonstrar que não cometeu crime e que o ônus da prova cadê a acusação”.
O Brasil, entretanto, na contramão da Corte Internacional, através do STF, acaba de negar o HC 126.292 entendendo ser possível a execução provisória da sentença condenatória após confirmação da sentença em segundo grau, afirmando que esta posição não ofende o princípio da presunção de inocência. O acórdão ficou assim ementado: Ementa: CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. 1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado. (HC 126292, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 17/02/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100 DIVULG 16-05-2016 PUBLIC 17-05-2016).
Ora, o art. 5º, da CF é claro ao afirmar: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Não há como relativizar um dispositivo tão expresso. O trânsito em julgado exige o julgamento de todos os recursos defensivos e, só depois disso, é possível falar em certeza da coisa julgada, não uma “certeza provisória” como equivocadamente afirmou o senador Ricardo Ferraço.
Não é outro o entendimento de Aury Lopes Jr, ao afirmar: “O STF é o guardião da Constituição, não seu dono e tampouco o criador do Direito Processual Penal ou de suas categorias jurídicas. Há que se ter consciência disso, principalmente em tempos de decisionismo (sigo com Streck) e ampliação dos espaços impróprios da discricionariedade judicial. O STF não pode “criar” um novo conceito de trânsito em julgado, numa postura solipsista e aspirando ser o marco zero de interpretação. Esse é um exemplo claro e inequívoco do que é dizer-qualquer-coisa-sobre-qualquer-coisa, de forma autoritária e antidemocrática[2]”.
No mesmo sentido Lênio Streck: “Entretanto, o STF errou. Reescreveu a Constituição e aniquilou garantia fundamental. Gostando ou não, essa é a Constituição que temos. E todos sabem de meu elevado grau de ortodoxia quando se trata da Constituição. Até de originalista já fui chamado[3]”.
Assim, fica evidente o erro cometido pelo STF na interpretação constitucional do princípio da presunção da inocência. Bem por isso, definimos como a primeira miséria do processo penal atual.
- A segunda miséria do processo penal brasileiro: o fim do Habeas Corpus substitutivo nos Tribunais Superiores.
Como se sabe, em primeira instância, caberá recurso em sentido estrito da decisão que conceder ou negar a ordem de habeas corpus, conforme art. 581, X, do Código de Processo Penal. Caberá ainda a remessa obrigatória ao Tribunal no caso descrito no art. 574 do mesmo Diploma Legal: “Os recursos serão voluntários, excetuando-se os seguintes casos, em que deverão ser interpostos de ofício pelo juiz: I – Da sentença que conceder habeas corpus”.
Na prática, entretanto, os advogados não ingressam com recurso em sentido estrito da decisão que denega o habeas corpus apresentado na 1ª. instância. É extremamente comum, pela celeridade do rito, a interposição de novo habeas corpus substitutivo do recurso em sentido estrito.
Esse pensamento, durante anos, foi utilizado pelos advogados e ampliado para instâncias superiores. Assim, denegado o habeas corpus no Tribunal de Justiça, por exemplo, os advogados ingressavam com novo writ perante o STJ e, se denegado neste Tribunal Superior, ingressavam com outro perante o STF, sendo plenamente aceito pelos referidos Tribunais o chamado habeas corpus substitutivo.
Sabe-se, entretanto, que conforme art. 102, II, a, e art. 105, II, a, da Constituição Federal, caberá recurso ordinário, respectivamente para o Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça da decisão que denegar habeas corpus. O que não acontece na prática em virtude da celeridade do writ.
Contrariando esse entendimento, o STF, em julgamento realizado em agosto de 2012, deu nova quinada em sua jurisprudência para admitir apenas o recurso em habeas corpus como medida impugnatória das decisões que julgam improcedentes os habeas corpus nas instâncias inferiores[4].
O STJ também vem entendendo pela impossibilidade de Habeas Corpus substitutivo de Recurso Ordinário. Vejamos: HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. DESCABIMENTO. COMPETÊNCIA DAS CORTES SUPERIORES. MATÉRIA DE DIREITO ESTRITO. MODIFICAÇÃO DE ENTENDIMENTO DESTE TRIBUNAL, EM CONSONÂNCIA COM ASUPREMA CORTE. POSSE ILEGAL DE ARMA. ALEGAÇÃO EXCESSO DE PRAZO NÃOANALISADA NA ORIGEM. TESE DE NULIDADE DA DECISÃO QUE INDEFERIU ALIBERDADE PROVISÓRIA. PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA PELA SENTENÇACONDENATÓRIA SUPERVENIENTE. SUBSTITUIÇÃO DO TÍTULO PRISIONAL, QUEDEVE SER ANALISADO PRIMEIRAMENTE PELO TRIBUNAL A QUO. AUSÊNCIA DEILEGALIDADE FLAGRANTE QUE, EVENTUALMENTE, PUDESSE ENSEJAR ACONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. (STJ – HC: 210256 CE 2011/0140214-4, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 13/11/2012, T5 – QUINTA TURMA).
Como se vê pela ementa acima descrita, o habeas corpus vem sofrendo sérias restrições em sua impetração, admitindo-se apenas o recurso ordinário em habeas corpus, com prazo determinado e tramitação morosa. Na prática, o recurso em habeas corpus é apresentado perante o Tribunal a quo, que faz o primeiro juízo de admissibilidade. Ainda é levado para o setor de digitalização, para ser enviado eletronicamente para o STJ, numa demora de aproximadamente 90 dias.
Sensibilizado com a morosidade na tramitação do recurso ordinário, o Ministro Marco Aurélio assim assevera em novo julgado: “Sensibiliza a comunidade jurídica e acadêmica a circunstância de o recurso ordinário seguir parâmetros instrumentais que implicam a demora na submissão ao órgão competente para julgá-lo. Isso acontece especialmente nos Tribunais de Justiça e Federais, onde se aponta que, a rigor, um recurso ordinário em habeas corpus tramita durante cerca de três a quatro meses até chegar ao Colegiado, enquanto o cidadão permanece preso, cabendo notar que, revertido o quadro, a liberdade, ante a ordem natural das coisas, cuja força é inafastável, não lhe será devolvida. O habeas corpus, ao contrário, tem tramitação célere, em razão de previsão nos regimentos em geral. Daí evoluir para, presente a premissa segundo a qual a virtude está no meio-termo, adotar a óptica de admitir a impetração toda vez que a liberdade de ir e vir, e não somente questões ligadas ao processo-crime, à instrução deste, esteja em jogo na via direta, quer porquanto expedido mandado de prisão, quer porque já foi cumprido, encontrando-se o paciente sob custódia[5].”
As decisão que buscam restringir o uso do habeas corpus substitutivo de recurso ordinário fundamentam-se no excesso de trabalho, em virtude de poder ser o habeas corpus impetrado a qualquer tempo. O que se vê é uma tentativa de usar o recurso ordinário como forma de reduzir a quantidade de ações constitucionais penais. Fica a impressão de que os tribunais superiores buscam causas impeditivas de acesso à justiça, como forma de reduzir o número de processos, sendo verdadeiro obstáculo ao julgamento de mérito dos pedidos de habeas corpus.
Assim se fez nas súmulas e jurisprudências impeditivas de recursos, com claro propósito de reduzir o número de recursos, ferindo de morte o acesso à justiça. A quantidade de habeas corpus não é motivo para impedir o seu uso irrestrito nos tribunais superiores. Deve o judiciário aparelhar-se melhor, na busca do julgamento em tempo razoável, e não buscar subterfúgios, com decisões inconstitucionais, para impedir o acesso aos tribunais, e consequentemente o acesso à justiça.
Tal decisão fere visivelmente o texto constitucional. O habeas corpus não pode ser limitado em nenhuma hipótese. É uma garantia do cidadão contra os desmandos das autoridades públicas. Qualquer restrição, até mesmo em sua forma, é uma ofensa direta à liberdade de locomoção na expressão de Ruy Barbosa: “Dê-se ao ofendido o arbítrio de procurar, quando possa, o Tribunal menos frágil, mas não lhe retire o de valer-se dos outros quando aquele, pela distância ou por qualquer obstáculo, não estiver ao seu alcance”.
- A terceira miséria do processo penal brasileiro – A tentativa de acabar com a sustentação oral em habeas corpus no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
No ponto mais alto da escala está o juiz. Não existe oficio algum mais alto do que o seu e nem uma dignidade imponente. Carnellutti.
Recentemente a comunidade jurídica nacional ficou estarrecida com a determinação do Presidente da Primeira Câmara Criminal do TJRS que determinou o fim sustentação oral em sede de habeas corpus, em virtude de ausência de previsão no RITJRS, in verbis: “O Presidente da Primeira Câmara Criminal do TJRS, no uso de suas atribuições, considerando o disposto no art. 14 do art. 177 do RITJRS afirma que será admitida a sustentação oral somente nas hipóteses expressamente previstas no CPC e no CPP e que os arts. 610-613 apenas prevê a hipótese para apelação e RESE, determino que a partir de 23 de março de 2016, só serão permitidas sustentações orais em RESE e Apelação”.
Como se vê, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que tem uma história de respeito às garantias do processo penal foi levado pela “onda antigarantista” na qual está mergulhado o processo penal atual e, por intermédio do Presidente da 1ª. Câmara Criminal, achou por bem reduzir mais uma garantia do réu e prerrogativa do seu defensor, no caso, impedir a sustentação oral em sede de habeas corpus.
Tal atitude revela afronta direta ao princípio da ampla defesa justamente no momento mais importante do julgamento que é a sustentação das razões orais da impetração pela defesa, onde o advogado pode esclarecer fato relevante, explicar questão fática incorretamente apreciada pelo Tribunal ou chamar atenção dos julgadores para aspectos jurídicos, que podem mudar a decisão e, consequentemente, mudar o status libertatis do Paciente, além de configurar grave violação das prerrogativas dos advogados.
Bem por isso, a restrição foi revogada após a intervenção da OAB/RS, conforme notícia disponível na rede mundial de computadores: “A restrição de sustentação oral de advogados em julgamentos em Habeas Corpus na 1ª Câmara Criminal do TJRS foi revogada em sessão do Órgão Especial da Corte nesta terça-feira. O novo entendimento foi em decorrência do requerimento da OAB/RS e causou a alteração do regimento interno para autorizar o procedimento. Desde o dia 4 de abril, a OAB/RS já vem tratando do tema. Na data, o presidente da Ordem gaúcha, Ricardo Breier, enviou ofício ao presidente do TJRS, desembargador Luiz Felipe Silveira Difini, questionando a medida. Posteriormente, também os presidentes reuniram-se na Ordem gaúcha para viabilizar uma solução em favor das prerrogativas da advocacia. Em decorrência da intervenção da seccional gaúcha, o Tribunal de Justiça garantiu aos advogados a sustentação oral em Habeas Corpus durante 10 minutos, revogando comunicado da 1ª Câmara Criminal. De acordo com Breier, o entendimento do Órgão Especial do TJRS demonstra a importância do respeito às prerrogativas da advocacia. ‘A decisão legitima a imprescindibilidade da advocacia como defensora dos direitos dos cidadãos, por isso, é fundamental que o advogado tenha o direito a fala. Essa decisão anterior configurava uma afronta à Constituição e ao pleno exercício profissional. Seguiremos atuando fortemente na defesa das nossas prerrogativas”, afirmou o dirigente[6]’ ”.
Como se vê, a medida foi revogada depois da intervenção da OAB/RS, mas a simples tentativa de violar este direito já configura um ato preocupante. A sua realização, ainda que temporariamente, é a prova inequívoca de que estamos voltando ao processo penal antigarantista, onde nem mesmo o direito de ser ouvido está garantido. Tempos difíceis para o processo penal…
- A quarta miséria do processo penal brasileiro: o uso indevido das interceptações telefônicas.
Aqui destacamos duas misérias que viraram rotina no que tange às interceptações telefônicas: a repetição indeterminada da medida e a divulgação indiscriminada dos conteúdos sigilosos para a imprensa nacional.
Sabe-se que o art. 5º., da Lei 9296/96 define o prazo de 15 dias prorrogáveis por mais 15 por uma única vez, in verbis: “a decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de 15 dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova”.
A lei é clara. Não há espaço para uma interpretação ampliativa neste caso. Fica evidenciado que o prazo é de 15 dias, prorrogável por uma única vez, desde que seja imprescindível para a obtenção da prova.
Entretanto o STF tem decidido que o prazo pode ser prorrogado indefinidamente quando o fato for complexo, a exigir investigação diferenciada e contínua. Vejamos: “EMENTA Habeas corpus. Constitucional. Processual Penal. Interceptação telefônica. Crimes de tortura, corrupção passiva, extorsão, peculato, formação de quadrilha e receptação. Eventual ilegalidade da decisão que autorizou a interceptação telefônica e suas prorrogações por 30 (trinta) dias consecutivos. Não ocorrência. Possibilidade de se prorrogar o prazo de autorização para a interceptação telefônica por períodos sucessivos quando a intensidade e a complexidade das condutas delitivas investigadas assim o demandarem. Precedentes. Decisão proferida com a observância das exigências previstas na lei de regência (Lei nº 9.296/96, art. 5º). Alegada falta de fundamentação da decisão que determinou e interceptação telefônica do paciente. Questão não submetida à apreciação do Superior Tribunal de Justiça. Supressão de instância não admitida. Precedentes. Ordem parcialmente conhecida e denegada. 1. É da jurisprudência desta Corte o entendimento de ser possível a prorrogação do prazo de autorização para a interceptação telefônica, mesmo que sucessiva, especialmente quando o fato é complexo, a exigir investigação diferenciada e contínua (HC nº 83.515/RS, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Nelson Jobim, DJ de 4/3/05). 2. Cabe registrar que a autorização da interceptação por 30 (dias) dias consecutivos nada mais é do que a soma dos períodos, ou seja, 15 (quinze) dias prorrogáveis por mais 15 (quinze) dias, em função da quantidade de investigados e da complexidade da organização criminosa. 3. Nesse contexto, considerando o entendimento jurisprudencial e doutrinário acerca da possibilidade de se prorrogar o prazo de autorização para a interceptação telefônica por períodos sucessivos quando a intensidade e a complexidade das condutas delitivas investigadas assim o demandarem, não há que se falar, na espécie, em nulidade da referida escuta e de suas prorrogações, uma vez que autorizada pelo Juízo de piso, com a observância das exigências previstas na lei de regência (Lei nº 9.296/96, art. 5º). 4. A sustentada falta de fundamentação da decisão que determinou a interceptação telefônica do paciente não foi submetida ao crivo do Superior Tribunal de Justiça. Com efeito, sua análise, de forma originária, neste ensejo, na linha de julgados da Corte, configuraria verdadeira supressão de instância, o que não se admite. 5. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa parte, denegado. (HC 106129, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 06/03/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-061 DIVULG 23-03-2012 PUBLIC 26-03-2012)”.
Fica a pergunta: O que é um fato é complexo, a exigir investigação diferenciada e contínua ? Trata-se de um conceito extremamente abstrato, a ensejar o perigo de que as interceptações indeterminadas virem regra do sistema jurídico, em detrimento da garantia de uma investigação com prazo determinado.
Tal conceito, pela sua abstração, pode gerar interpretações equivocadas, e um caso simples, vir a ser tratado como se complexo fosse, simplesmente porque a autoridade policial ainda não obteve a prova desejada a ensejar a culpabilidade do investigado, na análise das interceptações telefônicas. Nesta linha de pensamento, sempre seria possível prorrogar um pouco mais a interceptação para obter a tão almejada prova da condenação. Tudo pode se tronar complexo para a obtenção desta prova. Até uma investigação pode se tornar eterna… Para este processo penal tudo vale, tudo pode…
Vale até determinar a interceptação telefônica e, mesmo fora do prazo, e sem mais o amparo da ordem judicial, continuar utilizando a prova e divulgá-la na imprensa nacional.
Foi o que aconteceu recentemente em interceptação telefônica divulgada pelo juiz Sérgio Moro, sendo objeto de crítica contundente do Prof. Lênio Streck: “E o que dizer após o mico que o juiz Sérgio Moro pagou ao Supremo Tribunal Federal, pedindo calorosas desculpas em longas 30 páginas? Quando entrei no MP vi uma cena bizarra: um promotor havia pedido, equivocadamente, o arquivamento de um caso escabroso. Fê-lo em 65 páginas. Ao que o velho procurador lhe disse: quem arquiva em 65 páginas, denuncia em folha e meia. Serve para Moro. Muita desculpa. Muito drible. Muito malabarismo verbal. Depois ele se irrita quando os réus não contam toda a verdade. Viu como é, doutor? Por vezes, é difícil explicar o inexplicável. Além disso, Moro criou uma nova espécie de extinção de punibilidade: por pedido de desculpas. Por exemplo, a violação da Lei 9.296, mais o artigo 325 do CP foram considerados como um mero descuido. Ele não imaginou que, mesmo sendo fruto de um “erro” na obtenção das escutas (mormente de Dilma e Lula), isso poderia ter repercussões na vida política. Verbis: “compreendo que o entendimento então adotado possa ser considerado incorreto, ou mesmo sendo correto, possa ter trazido polêmicas e constrangimentos desnecessários. Jamais foi a intenção desse julgador, ao proferir a aludida decisão de 16/3, provocar tais efeitos e, por eles, solicito desde logo respeitosas escusas a este Egrégio Supremo Tribunal Federal”. O STF poderia conceder o prêmio Poliana à Moro. E a reforma do Código Penal pode acrescentar novas hipóteses de extinção da punibilidade: o pedido de desculpas. Mas tem um problema. Devem ser diretas. Sinceras. Como as delações, matéria da qual Moro entende bem demais. Bem, que lê tanta notícia, mesmo?[7]”.
No caso em tela, o juiz Sérgio Moro obteve acesso à interceptação telefônica envolvendo conversa da Presidente Dilma Rousseff que possuía, à época, foro privilegiado. Bem por isso, deveria o magistrado enviar o conteúdo sigiloso das conversas para o STF, foro competente para analisá-la e não divulgar o material para a imprensa nacional. Em assim agindo, tornou a prova ilícita, imprestável para ser utilizada no processo penal.
- A quinta miséria do processo penal brasileiro: a utilização da prisão preventiva para obter delação premiada.
“À solenidade, para não dizer à majestade, dos homens de toga contrapõe-se o homem no cárcere. Não esquecerei nunca a impressão, que deste tive a primeira vez na qual, ainda adolescente, ingressei na Corte de uma seção penal no tribunal de Turim. Aqueles, dir-se-ia, sobre o nível do homem; este, em baixo, preso na cela, como um animal perigoso. Sozinho, pequeno, apesar de sua elevada estatura; perdido, ainda que procurasse ser desembaraçado; pobre, miserável, necessitado…” (CARNELUTTI, 2009, p. 23).
É exata a definição de Carnelutti sobre o “homem da jaula”. Efetivamente, na expressão do autor, o homem da jaula é um necessitado. Nas condições das prisões brasileiras, ainda mais. Necessita de tudo. De alimentação adequada e estabelecimentos condignos à assistência médica e jurídica. Os homens da jaula, nestes aspectos, não podem ser comparados aos homens livres. É obvio que eles não se encontram nas mesmas condições psíquicas e físicas de um homem que se encontra em plena capacidade ambulatorial.
O sucateamento do cárcere, o seu empobrecimento e empodrecimento, parecem que estão na ordem do dia. A prisão, quanto mais fétida, quanto mais desumana e vil, mais tende a agradar a massa populacional, sedenta pelo espetáculo do delito e de sua punição, isso com o aval de algumas autoridades, que quase nada fazem para mudar este estado.
Na visão estrábica dos defensores do quanto pior melhor, a prisão deve ter um cenário horrível para gerar no preso aversões psíquicas e físicas. Ela deve ter uma visão infernal para gerar no espírito do encarcerado uma vontade desesperada de sair dali, de livrar-se do suplício, isso a qualquer custo e de qualquer forma. Por isso, a prisão perde sua duração razoável, pois quanto mais demorar o cárcere, quanto maior for o período de prisão preventiva, para eles, melhor e mais rápida será a obtenção da delação premiada, isso com o aval de promotores, juízes e, até mesmo, dos Tribunais Superiores.
Para os defensores de um processo penal desumano e antigarantista, quanto mais demorada for a prisão, quanto mais desumana, quanto mais apodrecida e fétida, quanto pior for a alimentação e suas instalações, mais desespero gerará no encarcerado e, consequentemente, mais rápida será a delação e a solução do processo penal, a qualquer custo.
Na expressão de Bruno Espiñeira Lemos[8]: “Diga-se mais. Nenhum acordo de delação pode ser considerado válido diante de alguém que se encontra preso (não é necessário dizer o que isso significa enquanto liberdade volitiva e vontade livre, em tais circunstâncias) com o propósito específico de estímulo para facilitar a confissão ou estímulo para cooperação com as autoridades de investigação, ambos fundamentos inidôneos e ilegais para a manutenção de prisões preventivas”.
Trata-se de verdadeira tortura para obter a prova. Um retorno ao período medieval, na expressão de Aury Lopes Jr: “o episódio é mais um exemplo da degeneração das prisões cautelares, que vêm sendo usadas como um meio de constrangimento situacional para obtenção de confissões ou delações premiadas, que posteriormente serão usadas como provas. Ou seja, uma releitura do modelo medieval, em que se prendia para torturar, com a tortura se obtinha a confissão, e, posteriormente usava-se a confissão como a rainha das provas[9]“.
Para Geraldo Prado: “No lugar de defender a ordem constitucional, que presume inocente o acusado e o protege contra iniciativas que visam constranger a produzir confissões — que podem não corresponder à verdade, como está provado na boa literatura — o MPF prega o emprego da prisão provisória como método destinado a burlar a garantia que tem o dever de resguardar. Iniciativas do gênero desacreditam o processo penal e, ao contrário do que postula o MPF, podem levar ao comprometimento da própria investigação[10]“.
Na expressão de Gustavo Badaró: “As delações de investigados presos são um terrível retrocesso. Devem ser consideradas inválidas, por não atenderem ao requisito do caput do art. 4º da Lei nº 12.850/2013, que exige a voluntariedade da colaboração. E se um investigado preso desejar fazer a delação e o Ministério Público assim considerar que tal colaboração poderá ser efetiva? Que este dê o primeiro passo, postulando a soltura do investigado que se dispõe a ser colaborador. Solto, terá a liberdade que lhe dará a voluntariedade para aceitar ou não a delação. A lógica não pode ser “prender para delatar”, mas no caso de investigados presos, soltar para voluntariamente delatar! Se nada for feito, sem a genialidade de Sobral Pinto, no futuro nos restará postular a anulação dos contratos de delações premiadas de investigados presos, invocando como fundamento o Código Civil, que em seu artigo 171, inciso II, ao tratar da invalidade dos negócios jurídicos, considera anulável negócios jurídicos celebrados mediante ‘coação’ ou em ‘estado e perigo’![11]”.
Nestas condições, o encarcerado não tem condições psíquicas e físicas de fazer delação premiada. Tudo o que disser, ou quase tudo, será consequência do desespero de sair do cárcere. Para o preso só restará uma possibilidade: a delação. Só assim alcançará a liberdade, que deveria ser a regra do sistema processual garantista. A prisão de exceção, passou a ser a regra. A delação, o caminho necessário para a obtenção da liberdade.
Que miséria do processo penal atual!
7 – A sexta miséria do processo penal brasileiro: o grampeamento telefônico ilegal de escritórios de advocacia.
“O Ministério Público está ao seu lado; insto constitui um erro, que com uma maior conscientização em torno da mecânica do processo terminará por ser retificado” (CARNELUTTI, 2009, p. 38).
Vejamos a notícia disponível no CONJUR: “O juiz federal Sergio Moro não quebrou o sigilo telefônico apenas de Roberto Teixeira, advogado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas também do telefone central da sede do escritório dele, o Teixeira, Martins e Advogados, que fica em São Paulo. Com isso, conversas de todos os 25 advogados da banca com pelo menos 300 clientes foram grampeadas, além de telefonemas de empregados e estagiários da banca. A interceptação do número foi conseguida com uma dissimulação do Ministério Público Federal. No pedido de quebra de sigilo de telefones ligados a Lula, os procuradores da República incluíram o número do Teixeira, Martins e Advogados como se fosse da Lils Palestras, Eventos e Publicações, empresa de palestras do ex-presidente. E Moro autorizou essa escuta por entender que ela poderia ‘melhor esclarecer a relação do ex-Presidente com as empreiteiras [Odebrecht e OAS] e os motivos da aparente ocultação de patrimônio e dos benefícios custeados pelas empreiteiras em relação aos dois imóveis [o triplex no Guarujá (SP) e o sítio em Atibaia (SP)][12]’ ”.
Vejamos também a resposta da força-tarefa: “Procurados pela ConJur, os membros da força-tarefa da operação “lava jato” afirmaram que o telefone do Teixeira, Martins foi incluído no pedido por constar no site “FoneEmpresas” como sendo da Lelis. Além disso, os membros do MPF ressaltam que Moro autorizou a interceptação. Uma busca pelo número de telefone no Google, no entanto, já traz em seus primeiros resultados o escritório de advocacia. Os procuradores também argumentam que não juntaram transcrições das escutas do telefone central do escritório nos autos do processo — constando no relatório os registros das ligações envolvendo o número”.
O CONJUR noticia um fato que deixou a comunidade jurídica estarrecida. Os 25 advogados de um escritório de advocacia e pelo menos 300 clientes foram interceptados por ordem do juiz Sérgio Moro. Na notícia, há ainda um fato ainda mais estarrecedor: “a interceptação do número foi conseguida com uma dissimulação do Ministério Público Federal. No pedido de quebra de sigilo de telefones ligados a Lula, os procuradores da República incluíram o número do Teixeira, Martins e Advogados como se fosse da Lils Palestras, Eventos e Publicações, empresa de palestras do ex-presidente[13]”.
O fato foi esclarecido em nota oficial pelo MPF: “Lamentando a não observância das boas práticas jornalísticas pelo site Consultor Jurídico, que não analisou minimamente os autos de interceptações telefônicas objeto da 24ª fase da Operação Lava Jato, falha essa que resultou na distorção dos fatos apresentados na matéria Todos os 25 advogados de escritório que defende Lula foram grampeados, publicada no site, a força-tarefa Lava Jato vem esclarecer: (1) Conforme consta na petição, o telefone foi obtido por fonte aberta na internet, como vinculado à LILS PALESTRAS, cuja quebra foi deferida pelo juízo. (2) Nos relatórios juntados aos autos, não constam transcrições de diálogos do referido número como alvo. (3) No entanto, constam no relatório ligações em que telefones de alvos mantiveram conversas com terceiros que utilizaram o referido número. (4) Quanto ao referido escritório, cumpre rememorar ainda o quanto posto pelo Juízo na decisão proferida nos autos da interceptação, o que revela que Roberto Teixeira é investigado: ‘Rigorosamente, ele não consta no processo da busca e apreensão 5006617-29.2016.4.04.7000 entre os defensores cadastrados no processo do ex-Presidente. Além disso, como fundamentado na decisão de 24/02/2016 na busca e apreensão (evento 4), há indícios do envolvimento direto de Roberto Teixeira na aquisição do Sítio em Atibaia do ex-Presidente, com aparente utilização de pessoas interpostas. Então ele é investigado e não propriamente advogado. Se o próprio advogado se envolve em práticas ilícitas, o que é objeto da investigação, não há imunidade à investigação ou à interceptação’. (5) Além de tudo isso, no evento 42 dos autos 5006205-98.2016.4.04.7000, Roberto Teixeira se tornou alvo da medida tendo sido diretamente interceptado e investigado em razão da existência de evidências de seu provável envolvimento em crime, o que torna a reclamação inócua. Diante das explicações acima, todas evidentes nos autos da medida mencionada, a referida notícia insere-se na estratégia de confundir a opinião pública, criando factoides sem qualquer fundamento”.
Em seu esclarecimento, o MPF afirma, em síntese, que o número de telefone foi obtido na internet, no site da “fone empresas” e que constava em nome da empresa LILS PALESTRAS, cuja quebra foi deferida pelo juízo e que “há indícios do envolvimento direto de Roberto Teixeira na aquisição do Sítio em Atibaia do ex-Presidente, com aparente utilização de pessoas interpostas. Então ele é investigado e não propriamente advogado”.
De uma forma ou de outra, o fato envolve violações das prerrogativas dos advogados. Inicialmente, custa acreditar que o MPF, dispondo de tantos bancos de dados para obter o telefone correto da LILS PALESTRAS, empresa investigada, teria se valido de um numero que consta na internet, sem ter o cuidado de averiguar se aquele número que se encontrava no site “fone empresas” realmente era da empresa investigada e não do escritório de advocacia. Um equívoco lamentável, já que o próprio MPF diz que foi levado a erro pelo site supramencionado.
O segundo argumento, entra em contradição com o primeiro. Ora, se o objetivo era investigar o escritório de advocacia, já que na visão do MPF “um dos advogados era investigado”, por que não foi requerida a quebra em nome do próprio advogado e sim em nome da LILS PALESTRAS ? O MPF deveria pedir a quebra diretamente do advogado e não em nome da LILS PALESTRAS …
Ademais, o fato de uma dos investigados ser advogado, autoriza a interceptação das conversas dos outros 25 advogados do escritório e dos 300 clientes não investigados? Já que o MPF não fez a interceptação intencionalmente, já que foi um equívoco ocorrido na fonte confiável da internet, por que continuou a ouvir conversa de todos os advogados por todo o prazo da interceptação ? Por que não pediu o desligamento do grampo, já que houve um equívoco?
Veja que: “A operadora de telefonia que executou a ordem para interceptar o ramal central do escritório de advocacia Teixeira, Martins e Advogados já havia informado duas vezes ao juiz federal Sergio Fernando Moro que o número grampeado pertencia à banca, que conta com 25 advogados. Apesar disso, em ofício enviado ao Supremo Tribunal Federal nesta semana, Moro afirmou desconhecer o grampo determinado por ele na operação lava jato[14]”.
Em resposta, os advogados Roberto Teixeira e Cristiano Zanin Martins afirmaram: “Tomamos conhecimento na data de ontem (16/03/2016) de que o Juiz Federal Sérgio Moro, acolhendo pedido de Procuradores da República da Força Tarefa Lava Jato, autorizou nos autos do Processo nº 98.2016.4.04.7000/PR, a realização de interceptação do telefone celular do advogado Roberto Teixeira. O advogado Roberto Teixeira funciona naquele processo e em outros procedimentos a ele relacionados como advogado do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, fato público e notório e comprovado por meio de procuração juntada aos autos e pelo acompanhamento pessoal de atos processuais. Isso significa que a intenção do juiz e dos membros do Ministério Púbico foi a de monitorar os atos e a estratégia de defesa do ex-Presidente, configurando um grave atentado às garantias constitucionais da inviolabilidade das comunicações telefônicas e da ampla defesa e, ainda, clara afronta à inviolabilidade telefônica garantia pelo artigo 7º, inciso II, do Estatuto do Advogado (Lei nº 8.906/1994). Cite-se, como exemplo disso, a conversa telefônica mantida entre o advogado Roberto Teixeira e o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva no momento em que este último foi surpreendido, no dia 04/03/2016, pela arbitrária condução coercitiva determinada pelo próprio Juiz Federal Sérgio Moro. Toda a conversa mantida entre advogado e cliente e a estratégia de defesa transmitida naquela oportunidade estava sendo monitorada e acompanhada por Moro e pela Polícia Federal, responsável pela condução do depoimento. A justificativa do juiz Moro lançada no processo para grampear o advogado foi a seguinte: “O advogado Roberto Teixeira, pessoa notoriamente próxima a Luis (sic) Inácio Lula da Silva, representou Jonas Suassuna e Fernando Bittar na aquisição do sítio de Atibaia, inclusive minutando as escrituras e recolhendo as assinaturas no escritório de advocacia dele”. Essa afirmação é a maior prova de que Roberto Teixeira foi interceptado por exercer atos privativos da advocacia — o assessoramento jurídico de clientes na aquisição de propriedade imobiliária — e não pela suspeita da prática de qualquer crime. Moro foi além. Afora esse grampo ostensivo no celular de Roberto Teixeira, também foi determinada a interceptação do telefone central do escritório Teixeira, Martins e Advogados, gravando conversas dos advogados Roberto Teixeira e Cristiano Zanin Martins e de outros membros que igualmente participam da defesa do ex-Presidente Lula e de seus familiares — inclusive no processo sob a presidência do Juiz Moro. O grampo do telefone central do escritório foi feito de forma dissimulada, pois o juiz incluiu o número correspondente no rol de telefones que supostamente seriam da empresa LILS Palestras, Eventos e Publicações Ltda., que tem como acionista o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A estratégia do juiz Sérgio Moro e dos membros da Força Tarefa Lava Jato resultou no monitoramento telefônico ilegal de 25 advogados que integram o escritório Teixeira, Martins & Advogados, fato sucedido com a também ilegal divulgação das conversas gravadas nos autos do processo, juntamente com a divulgação de outras interceptações ilegais. Não é a primeira vez que o Juiz Moro protagoniza um ato de arbitrariedade contra advogados constituídos para assistir partes de processos por ele presididos. Por exemplo, no julgamento do HC 95.518/PR, pelo Supremo Tribunal Federal, há registros de que o juiz Moro monitorou ilegalmente advogados e por isso foi seriamente advertido pelos Ministros daquela Corte em 28.05.2013. O Juiz Sérgio Moro se utiliza do Direito penal do inimigo, privando a parte do “fair trail”, ou seja, do julgamento justo. Não existe a imprescindível equidistância das partes e tampouco o respeito à defesa e ao trabalho dos advogados. Atenta contra o devido processo legal e a todas as garantias a ele inerentes o fato de Moro haver se tornado juiz de um só caso, conforme resoluções emitidas pelo Tribunal Regional Federal da 4ª. Região e atuar com pretensa jurisdição universal, atropelando até mesmo o sagrado direito de defesa. Além das medidas correcionais e judiciais cabíveis, o assunto será levado à Ordem dos Advogados do Brasil para que, na condição de representante da sociedade civil, possa também intervir e se posicionar em relação a esse grave atentado ao Estado Democrático de Direito[15]”.
Assim se manifestou a OAB: “O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil classificou como inadmissível a violação da comunicação entre advogado e cliente e ressaltou que o combate à corrupção não pode ferir a Constituição. Reportagem da revista eletrônica Consultor Jurídico (AQUI) revelou nesta quinta-feira (17/3) que o juiz Sergio Moro autorizou o grampo de 25 advogados do escritório que atende ex-presidente Lula. A banca Teixeira, Martins e Advogados teve seu telefone central interceptado e conversas dos advogados com mais de 300 clientes foram violadas. “É inadmissível no Estado Democrático de Direito a violação das ligações telefônicas entre advogados e clientes”, afirmou ainda na quinta à noite o presidente do Conselho Federal da OAB, Claudio Lamachia. Ele destaca que a gravação de advogados e clientes, mesmo com autorização judicial, sem que os profissionais estejam sendo investigados, fere prerrogativa garantida pela Lei 8.906 de 1994, o Estatuto da Advocacia. A Ordem quer combater a impunidade e a corrupção. Defendemos a celeridade processual e o levantamento de sigilo destes processos em nome de um princípio maior, que é o da informação, mas não podemos permitir que isso seja feito ferindo a Constituição Federal”, ressaltou Lamachia[16]”.
Conversas sigilosas entre clientes e advogados foram realizadas por pessoas não investigadas e interceptadas pela polícia, estratégias de defesa foram devassadas, aspectos processuais e discussões jurídicas, com certeza, chegaram ao conhecimento da polícia, gerando grande prejuízo para a advocacia e para seus clientes. Com isso, percebe-se que a interceptação telefônica dos escritórios de advocacia está sendo feita sem o devido cuidado. Fica claro que vivemos um cenário de grave atentado às garantias da inviolabilidade das comunicações telefônicas entre clientes e advogados e da ampla defesa, com ofensa direta ao Estatuto da Advocacia.
Mais uma miséria do processo penal atual…
- A sétima miséria do processo penal brasileiro: a condução coercitiva de investigado e o direito de não constituir prova contra si mesmo.
O princípio do “nemo tenetur se detegere” reflete a expressão “ninguém é obrigado a constituir prova contra si mesmo”. Este princípio, que foi fortalecido na Convenção Americana sobre Direitos Humanos como um direito fundamental do ser humano, restou descrito no artigo 8º, § 2º, alínea “g”, in verbis: “Garantias judiciais: G) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada”.
Para Paulo Queiroz: “Quanto às suas implicações penais e processuais penais, há um certo consenso no sentido de que o princípio compreende: 1) o direito ao silêncio, preso ou solto o investigado (CF, art. 5°, LXIII; CPP, art. 186), podendo, inclusive, responder a certas perguntas e não responder a outras, silêncio que não pode ser interpretado em seu desfavor; 2) a necessidade de ser previamente informado dessa garantia; 3) privilégio de não prestar juramento ou compromisso de dizer a verdade; 4) o direito de se recusar a entregar documentos e de praticar qualquer comportamento ativo que o incrimine (fornecer material grafotécnico etc.); 5) a recusa de participar de reconhecimento, acareação ou reprodução simulada dos fatos; 6) o direito de ser dispensado do interrogatório (CPP, art. 457, §2°, final); 7) a vedação de perguntas capciosas, em tom de ameaça ou de elogio que induzam o indivíduo à confissão ou delação; 8) a irrelevância da mentira para fins de individualização da pena1; 9) o direito de não se submeter ao teste de alcoolemia; 10) a possibilidade de invocação do princípio perante qualquer juízo ou autoridade pública, cível ou criminal, policial ou parlamentar; 11) a não caracterização dos delitos de falso testemunho, desobediência ou desacato, quando no exercício estrito do privilégio; 12) a disponibilidade da garantia pelo colaborador na forma da Lei n° 12.850/2013, art. 4°, §14°; 13) a ilegalidade de toda prisão fundada na recusa de colaborar com a investigação; 14) aplicabilidade à pessoa jurídica[17]”.
É exatamente o ponto “6) o direito de ser dispensado do interrogatório (CPP, art. 457, §2°, final)” que nos interessa neste item, ou seja, a premissa de que o direito de não comparecer ao interrogatório é um reflexo direto do direito de não constituir prova contra si mesmo.
Trata-se de um princípio que se relaciona diretamente com a ampla defesa, especificamente no que tange ao direito à autodefesa. O réu, em seu de direito de autodefender-se pode ter conduta negativa ou positiva. Pode agir positivamente para responder as perguntas da autoridade, se assim for conveniente à sua autodefesa e dizer a verdade, ou não. Pode ainda não responder as perguntas de forma verdadeira, e disso nenhuma consequência poderá advir, principalmente no tocante à presunção de culpa. Pode ainda deixar de responder as perguntas da autoridade, valendo-se do direito ao silêncio, que também é reflexo do princípio do “nemo tenetur se detegere”.
O que importa aqui é garantir ao réu o direito de não se prejudicar com seu próprio depoimento, ou seja, é o direito de autopreservação que se impõe aqui. O réu não é obrigado a constituir qualquer meio de prova que possa colocar em risco sua liberdade ambulatorial. A autopreservação é o que se protege com esta garantia fundamental.
Em descompasso com esta garantia, assevera o artigo 260 do CPP: “Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzí-lo à sua presença”.
Veja que tal dispositivo se já não se adéqua aos princípios constitucionais, também não mais encontra amparo pela nova redação do art. 457 do CPP: “O julgamento não será adiado pelo não comparecimento do acusado solto … que tiver sido regularmente intimado. §2º.: Se o acusado preso não for conduzido, o julgamento será adiado para o primeiro dia desimpedido da mesma reunião, salvo se houver pedido de dispensa de comparecimento subscrito por ele ou seu defensor”.
O que se extrai deste dispositivo é que o réu pode deixar de comparecer ao julgamento do Tribunal do Júri e, consequente, deixar de exercer sua autodefesa, se isso for necessário para sua melhor estratégia defensiva. Ora, se é um direito fundamental a impossibilidade de submeter o acusado a qualquer procedimento que possa resultar em uma prova prejudicial; se é uma garantia o direito de permanecer em silêncio, o que justifica a determinação para o acusado comparecer à autoridade já que ele pode comparecer e não dizer nada ?
As misérias, entretanto, não param por aí. Em julgamento no HC 107644/SP, o STF decidiu que a condução coercitiva pode ser determinada pela autoridade policial sem ordem judicial, como um reflexo direto do art. 6º., do CPP. Com isso, a condução coercitiva passa a ser um ato discricionário da autoridade policial, sem o controle do judiciário. Vejamos mais um julgamento inconstitucional do próprio STF: “HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. CONDUÇÃO DO INVESTIGADO À AUTORIDADE POLICIAL PARA ESCLARECIMENTOS. POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 144, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DO ART. 6º DO CPP. DESNECESSIDADE DE MANDADO DE PRISÃO OU DE ESTADO DE FLAGRÂNCIA. DESNECESSIDADE DE INVOCAÇÃO DA TEORIA OU DOUTRINA DOS PODERES IMPLÍCITOS. PRISÃO CAUTELAR DECRETADA POR DECISÃO JUDICIAL, APÓS A CONFISSÃO INFORMAL E O INTERROGATÓRIO DO INDICIADO. LEGITIMIDADE. OBSERVÂNCIA DA CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE JURISDIÇÃO. USO DE ALGEMAS DEVIDAMENTE JUSTIFICADO. CONDENAÇÃO BASEADA EM PROVAS IDÔNEAS E SUFICIENTES. NULIDADE PROCESSUAIS NÃO VERIFICADAS. LEGITIMIDADE DOS FUNDAMENTOS DA PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL. ORDEM DENEGADA. I – A própria Constituição Federal assegura, em seu art. 144, § 4º, às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais. II – O art. 6º do Código de Processo Penal, por sua vez, estabelece as providências que devem ser tomadas pela autoridade policial quando tiver conhecimento da ocorrência de um delito, todas dispostas nos incisos II a VI. III – Legitimidade dos agentes policiais, sob o comando da autoridade policial competente (art. 4º do CPP), para tomar todas as providências necessárias à elucidação de um delito, incluindo-se aí a condução de pessoas para prestar esclarecimentos, resguardadas as garantias legais e constitucionais dos conduzidos. IV – Desnecessidade de invocação da chamada teoria ou doutrina dos poderes implícitos, construída pela Suprema Corte norte-americana e e incorporada ao nosso ordenamento jurídico, uma vez que há previsão expressa, na Constituição e no Código de Processo Penal, que dá poderes à polícia civil para investigar a prática de eventuais infrações penais, bem como para exercer as funções de polícia judiciária. V – A custódia do paciente ocorreu por decisão judicial fundamentada, depois de ele confessar o crime e de ser interrogado pela autoridade policial, não havendo, assim, qualquer ofensa à clausula constitucional da reserva de jurisdição que deve estar presente nas hipóteses dos incisos LXI e LXII do art. 5º da Constituição Federal. VI – O uso de algemas foi devidamente justificado pelas circunstâncias que envolveram o caso, diante da possibilidade de o paciente atentar contra a própria integridade física ou de terceiros. […]. (STF, HC 107644/SP, relator min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, julgado em 06/09/2011, publicado em 18-10-2011)”.
Destaque-se o trecho: “III – Legitimidade dos agentes policiais, sob o comando da autoridade policial competente (art. 4º do CPP), para tomar todas as providências necessárias à elucidação de um delito, incluindo-se aí a condução de pessoas para prestar esclarecimentos, resguardadas as garantias legais e constitucionais dos conduzidos”.
É incompreensível a decisão do STF. Ao final do texto no III exige que a autoridade policial resguarde as garantias constitucionais, mas ele mesmo, o STF, em sua decisão, viola um direito fundamental, no momento em que possibilita à autoridade policial determinar condução coercitiva de investigado, de forma discricionária e sem fundamentação, sem considerar o direito de ser dispensado do interrogatório, corolário do direito de não constituir prova contra si mesmo.
Tempos difíceis do processo atual…
O réu deve deixar seus afazeres para ir ao fórum ou à delegacia “dizer que nada tem a dizer” ? Na expressão de Adauto Suannes: “o réu que, por força da Constituição Federal, tem o direito de ficar calado, deve deixar seus afazeres habituais (com perda do dia de serviço, por exemplo), para ir ao fórum dizer que nada tem a dizer, mesmo tendo defensor constituído, que o represente no processo e que, portanto, pode falar por ele. Positivamente, é muito amor a nossa lusitana herança burocratizante[18].”
Ressalte-se aqui que o fato do acusado ser intimado para o seu interrogatório e entendendo este ato como um meio de autodefesa, o seu não comparecimento é também, em alguns casos, uma forma defesa indireta e não um ato desrespeitoso ou uma desobediência à ordem judicial. Juízes, delegados e promotores precisam entender o interrogatório como um meio de defesa, amparado pelo princípio do nemo tenetur se detegere. Logo, determinar a condução coercitiva de investigado ou acusado, considerando que ele tem o direito de permanecer calado, é uma violação à referida garantia fundamental e, consequentemente, sua violação é mais uma miséria do processo penal atual.
- A oitava miséria do processo penal brasileiro: o teste de integridade, as medidas anticorrupção e a possibilidade de utilização do flagrante forjado.
O MPF lançou campanha nacional com o intuito de buscar assinaturas para a propositura de um anteprojeto de lei de iniciativa popular intitulado as “10 medidas contra a corrupção” com o intuito de modificar a legislação brasileira no que tange ao combate à corrupção.
Louvável seria a iniciativa do MPF se não fosse o conteúdo antigarantista e inconstitucional de alguns de seus dispositivos. Dentre eles, destaca-se a possibilidade de utilização do flagrante forjado, ou seja, a prática de “simulação de situações, sem o conhecimento do agente público ou o empregado, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para combater crimes contra a administração pública”.
É o que a doutrina chama de “teste de integridade” e consiste na “possibilidade de órgãos públicos, por suas corregedorias, controladorias, ouvidorias, com a ciência do Ministério Público, submeter seus agentes, de modo aleatório ou dirigido, à simulação de situações que envolvem questões morais e de predisposição à prática de infrações contra Administração Pública, para fins disciplinares e para instrução de ações cíveis, de improbidade administrativa e, ainda, persecução penal. O Anteprojeto, prevê, também, a possibilidade de gravação do teste e a aplicação, no que couber, das normas da Lei Anticorrupção[19]”.
Vejamos ainda: “A primeira proposta do MPF propõe que o Brasil passe a usar o flagrante forjado. Nas palavras exatas: simulação de situações, sem o conhecimento do agente público ou empregado, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer crimes contra a Administração Pública. Para Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, professor de Direito Processual Penal, a proposta soa ‘absurda’, é ‘imoral’, ‘inconstitucional e ilegal’. Ele ressalta que o Estado Moderno se fundou na presunção de que o cidadão é honesto e inocente até que se prove o contrário. Segundo ele, um país que aprove o flagra forjado está indo ‘no caminho da barbárie’, conforme escreveu em seu artigo. O tema foi também abordado pelo juiz federal Flavio Antônio da Cruz: ‘Ao empregar o aludido teste, o Estado acaba por deitar por terra um compromisso importantíssimo das democracias liberais: a crença de que o sistema de Justiça criminal está destinado a garantir que nenhum inocente seja punido. A culpa deve ser aferida pela efetiva prática de uma conduta objetiva e subjetivamente típica, ilícita e culpável, apurada sob devido processo’[20]”.
Como se vê, pretende o referido anteprojeto a utilização de simulação de situações, sem o conhecimento do agente, com o objetivo de testar sua conduta moral. Trata-se da utilização de estratagema pelo próprio Estado com o intuito de simular situações que possam conduzir o funcionário público ao delito. Ou, na expressão do anteprojeto, simular situações que possam comprovar a integridade dele.
Caso o referido anteprojeto seja aprovado, o Estado poderá se utilizar de situações que levem o agente ao delito como a forjar ou preparar a cena do crime, num gesto que nos faz lembrar a figura do algoz que prepara a sua ratoeira com a isca mais suculenta, pronta para disparar e capturar o roedor menos avisado. É trama realizada pelo próprio Estado, com a ajuda dos seus agentes e equipamentos, e tem por objetivo levar o funcionário público para uma verdadeira “cilada administrativa”.
E o pior de tudo é que as pessoas (em sua maioria) assinaram o anteprojeto sem sa