Busca e apreensão feita pela Polícia Militar é inválida
São ilícitas as provas recolhidas em mandado de busca e apreensão executado exclusivamente pela Polícia Militar. O parágrafo 4º do artigo 144 da Constituição Federal confere apenas à Polícia Civil a tarefa da investigação criminal. Com base nesse entendimento, a maioria dos integrantes da 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul anulou um processo criminal e manteve a libertação de uma acusada, presa em regime provisório por suposto envolvimento com o tráfico de drogas.
A ação que resultou na apreensão de substâncias entorpecentes e dinheiro em espécie, dando causa a inquérito criminal, foi desencadeada e dirigida pela Brigada Militar – a polícia militar gaúcha –, a pedido do representante do Ministério Público.
O desembargador Nereu Giacomolli, autor do voto vencedor, afirmou que não existe menção na Constituição ou nas leis ordinárias de que a Polícia Militar tenha atribuição similar à da Polícia Civil. O parágrafo 5º do mesmo artigo é claro: cabe às PMs à atribuição de polícia ostensiva e a preservação da ordem pública.
‘‘Se, por um lado, não há uma vedação expressa, por outro, é preciso reconhecer ter o legislador constituinte estabelecido atribuições distintas, o que permite concluir não poder a Polícia Militar exercer atribuição da Polícia Civil ou do Ministério Público. Este, com poderes investigatórios, para os que admitem tal atribuição, de forma excepcional e subsidiária’’, justificou.
O desembargador entendeu também que as provas eram nulas, porque a ordem de busca e apreensão contra a residência foi deferida de forma ilegal, já que foi embasada exclusivamente em denúncia anônima, sem registro nos autos. Afirmou, por fim, que mesmo que pudesse ser admitido o pedido de busca e apreensão por parte do Ministério Público, a sua execução não poderia ser efetuada sem o seu controle ou da autoridade policial civil. O seu entendimento foi acompanhado pela desembargadora Catarina Rita Krieger Martins. A decisão é do dia 15 de março.
Invasão de competência
O processo é originário da comarca de Ijuí, município situado a 395 km de Porto Alegre. Com base em denúncia anônima, o Comando do 29º Batalhão de Polícia Militar encaminhou oficio à promotoria local, informando que uma residência estaria abrigando drogas e armas de fogo. Sugeriu ao promotor de Justiça que conseguisse, junto à 1ª Vara Criminal, a expedição de mandado de busca e apreensão no local.
Deferido o pedido pelo juiz da Comarca, o Ministério Público encaminhou o mandado ao Comando da Brigada Militar, que deu cumprimento à decisão judicial sem, no entanto, comunicar à autoridade policial investigativa.
Na incursão, realizada em novembro de 2011, uma mulher foi presa, sob a acusação de receptação e tráfico de entorpecentes. Ela teve a sua prisão em flagrante convertida em temporária pelo juízo local.
A defensora pública estadual Cristiane Friedrich impetrou Habeas Corpus em favor da acusada, com pedido de liminar, tentando obter sua imediata libertação. Alegou que sua prisão foi ilegal, porque o flagrante decorreu de cumprimento de mandado executado pela Brigada Militar, que se originou de Representação feita pelo Comando da corporação, e não da policia judiciária – a civil.
Sustentou que, por não ser crime militar, não foi legítima a operação desencadeada pela Brigada, com a chancela do Ministério Público. Assim, agindo ao ‘‘arrepio da lei’’ – porque o crime de tráfico é comum -, a operação gerou ‘‘vício na origem’’.
Diante da ilegalidade, a defensora pediu que todos os documentos originados pela operação fossem excluídos do processo, já que as provas são ilegais. Também propôs o afastamento do juiz titular da 1ª Vara Criminal para o julgamento do feito, ‘‘uma vez que tomou conhecimento de todos os documentos por ocasião do despacho”.
Pedido do MP
Como a liminar foi negada, a defensora apelou para o Tribunal de Justiça. Na 3ª Câmara Criminal, o desembargador Francesco Conti, relator da Apelação, considerou prejudicada a análise do pedido de liberdade. Isso porque, em ofício datado de 24 de fevereiro do corrente, teve ciência da soltura da paciente pelo juízo de origem.
Quanto aos demais fatos, Conti esclareceu, inicialmente, que não houve uma Representação formal ao Judiciário por parte da Brigada Militar, para expedição de mandado de busca e apreensão, mas apenas sugestão, encaminhada ao Ministério Público por meio de ofício. Assim, com base nas informações prestadas pela Brigada Militar, o MP requereu a expedição do mandado, entregando-o para a corporação, a fim de cumprí-lo.
‘‘Nesse sentido, quem requereu a expedição do mandado, bem como a tarefa de cumprimento, foi o Ministério Público, o qual, a meu juízo, possui poderes de investigação, não obstante tenha ciência da discussão que está sub judice no Supremo Tribunal Federal’’, completou Conti.
Para o desembargador-relator, a BM foi utilizada pelo MP – verdadeiro responsável pelo cumprimento do mandado – como executor da medida. Nesta linha, entendeu que nenhuma das instituições invadiu a área de competência da Polícia Civil. ‘‘Tanto que, após o suporte dado ao Ministério Público, no cumprimento do mandado, todo o resultado da diligência foi encaminhado imediatamente à autoridade policial judiciária, que lavrou o auto de prisão em flagrante’’, arrematou, não reconhecendo a nulidade das provas.
Festival de mandados
O desembargador Nereu Giacomolli, após definir o papel da Polícia Civil e da Militar diante da Constituição, afirmou que a situação dos autos é de investigação, de execução do mandado de busca e apreensão. ‘‘Admitindo-se a possibilidade de a Polícia Militar praticar atos de investigação, também teríamos que admitir a mesma prática por qualquer outra autoridade, em verdadeira distribuição de mandados judiciais com finalidade investigativa, desestruturando-se a organização do Estado Constitucional’’, advertiu.
Conforme Giacomolli, nada justifica a atuação subsidiária do Ministério Público e, menos ainda, a atuação da Polícia Militar no cumprimento do mandado de busca e apreensão expedido pela autoridade judicial, com finalidade investigatória. ‘‘Assim, o procedimento adequado ao caso concreto impunha a comunicação do fato à Polícia Civil, para que ela, então, tomasse as medidas investigatórias cabíveis, inclusive assecuratórias e cautelares’’, decretou.
No fecho de seu voto, o desembargador Giacomolli discorreu sobre a validade das denúncias anônimas para promover a instauração do Inquérito Criminal. A este respeito, citou recente posicionamento do ministro Marco Aurélio, do STF: ‘‘É vedada a persecução penal iniciada com base, exclusivamente, em denúncia anônima. Firmou-se a orientação de que a autoridade policial, ao receber uma denúncia anônima, deve antes realizar diligências preliminares para averiguar se os fatos narrados nessa ‘denúncia’ são materialmente verdadeiros, para, só então, iniciar as investigações’’.
Em síntese, o entendimento do STF é de que as denúncias anônimas têm sua eficácia limitada à provocação da autoridade policial que, ao tomar conhecimento do seu conteúdo, tem o dever de diligenciar para averiguar a veracidade dos fatos denunciados. ‘‘Não basta (a denúncia), por si só, isoladamente, a amparar o início de uma investigação formal, seja através da abertura de um inquérito policial, seja através da adoção de medidas cautelares potencialmente restritivas de direitos e liberdades individuais, como a busca e apreensão, a interceptação telefônica e a prisão cautelar, por exemplo.’’
FONTE: WWW.CONJUR.COM.BR