Carlos Magno Couto faz discurso emocionando em encontro da ABRACRIM-MS
Acompanhe a seguir o discurso do advogado criminalista e membro honorário da ABRACRIM-MS, Carlos Magno Couto, proferido no I Encontro da Advocacia Criminal de Mato Grosso do Sul.
Do alto desta tribuna da OAB/MS e, diante da grandeza desse momento da ABRACRIM, no I Encontro da Advocacia Criminal de MS, quase três décadas de história contemplam-nos neste culto ao advogado criminal que como escreveu Vinícius de Morais, em 1939, no soneto sobre a fidelidade no amor, “que não seja imortal, posto que é chama mas que seja infinito enquanto dure”, diria eu agora, a consciência imortal da advocacia em defesa das ‘coisas santas, grandes e eternas’, – daqui desta tribuna, de onde se pode avistar melhor a liberdade e a dignidade humana, assim como a nossa memória, que dá voz a nossa história.
Desejo, outrossim, manifestar o meu respeito e consideração especial, que as palavras não traduzem na totalidade ao Presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas de MS, Dr. Alexandre Franzoloso, que herdou a beca de seu pai, o criminalista nato e, por excelência, tribuno forense, Sergio de Azevedo Franzoloso, que trazia no calor de sua beca e no prurido rouco de sua voz o verbo cristalizado no amor e na dor do cárcere que avassala o coração, como se pode interpretar de sua crônica: “O lamento de um preso”, classificada em primeiro lugar no I Concurso de Contos, Poesias e Crônicas promovido pela OAB/MS.
É tocante, Dr. Franzoloso, viver com coragem e lutar pelas razões descritas no livro: “Temas Penais e Processuais Penais na visão crítica de um criminalista” e, ao fechar os olhos e partir, testemunhar de onde estiver, o filho confirmar a decisão de enfrentar a vida percorrendo o mesmo caminho até a outra margem do rio, onde a beca ferida tocou a pedra da paixão, através da advocacia criminal, para ser digno do nome do pai e de seus sacrifícios.
Quero cumprimentar ainda o Dr. Elias Mattar Assad, consagrado advogado, Presidente da ABRACRIM nacional.
E, para saudar o palestrante desta noite, o maior criminólogo vivo deste país, Dr. Juarez Cirino dos Santos eu peço licença para invocar o nome do maior criminólogo morto Roberto Lyra Tavares. O jurisconsulto Juarez Cirino, cujo nome a exemplo de Lyra já faz parte da cultura humana.
Exmos. Srs. Desembargadores Romeiro Osme Dias Lopes e Ruy Celso Florence, precursores ao lado do Des. Claudionor Miguel Abss Duarte, do garantismo penal no TJMS, por quem tenho respeito intelectual e por suas virtudes de coragem e independência que são atributos que marcam o nome de alguém como digno de lembrança diante do povo e da história.
Caros advogados, estagiários e autoridades presentes.
Folheando as páginas da memória, permitam-me lembrar que quando eu tinha apenas 18 anos de idade e cursava Direito no Rio de Janeiro flertei numa pequena banca com um livro jurídico intitulado: “A defesa tem a palavra”, de autoria de Evandro Lins e Silva.
Ao ler aquele livro que tem a simplicidade dos clássicos e, que poderia ser tombado como patrimônio da advocacia nacional, a exemplo do livro “Os Grandes Processos do Júri”, de Carlos de Araújo Lima, que constitui um dos documentos inaugurais da história do Júri no país, o meu destino incerto restou selado.
Aquela obra da razão e da paixão, de pura arte advocatícia, ao meu sentir, deu identidade e modelou o significado histórico da advocacia criminal, realçando os valores e o status da advocacia penal brasileira, através de uma escrita escorreita e castiça, magistralmente elegante, erudita, de muita cultura jurídica, a base de lapidada linguagem jurídica e literária, com variações narrativas próprias do jornalismo, que não obedecia totalmente os padrões linguísticos comuns da ciência jurídico-penal, com frases que hoje integram o idioma brasileiro, enfim, a leitura do livro que me fez prisioneiro e ao mesmo tempo significou uma libertação na minha vida, tomou conta do meu ser ou como diria Eduardo Galeano, o livro cresceu tanto dentro de mim, que se tornou meu.
Sai do livro mais humano, com uma funda compaixão pelos réus, pelos mais fracos, humilhados e ofendidos, cujos sofrimentos pertencem ao Estado. E, como diria o poeta Manoel de Barros, passei a gostar dos “desheróis” e, a defendê-los com meus pensamentos e opiniões quase sempre minoritários.
Evandro, que não pode mais nos ouvir, mas que nós devemos agradecer pelo que suas ideias significaram para a profissão, enquanto podemos falar.
O fato é que após a leitura daquele livro dirigi-me até a Rua Buenos Aires, no Centro do RJ, e, lá, numa antiga alfaiataria de paredes centenárias, solicitei ao velho alfaiate, de mãos enrugadas, rugas esculpidas pela vida, indispensáveis à dignidade daquelas mãos que criara com o poder do seu talento a beca gloriosa de Evandro Lins e Silva, que confeccionasse a minha também, num triunfo da arte sobre o tecido bruto e frio, para um então futuro operário do Direito Penal, como, aliás, conformou-se a se intitular o maior dos advogados paulistas de todos os tempos e orador fascinante Waldir Troncoso Perez, que era uma espécie de enciclopédia da alma, de ousado explorador da alma humana, cujo livro predileto era “Diário Íntimo”, de Henri-Frédéric Amiel. Troncoso Perez, que com toda sua sabedoria humana costumava pedir que no mundo concreto déssemos alma à lei, a essa oficialização de verdade construída, de que falava Focault.
Busquei então, um lugar ao sol, ser criminalista, como Evandro Lins e Silva, ser um homem livre, humano, demasiadamente humano, ter o vício e a devoção pela liberdade e, deixar como Chico Buarque, o ódio para quem tem. Foi por pensar desse modo que Nelson Mandela um dia confidenciou: “Quando eu saí em direção ao portão que me levaria à liberdade, eu sabia que, se eu não deixasse minha amargura e meu ódio para trás, eu ainda estaria na prisão”. Ele que foi feito pelas leis, um criminoso. Não pelo que fez, mas pelo que lutou, pelo que pensou, por causa de sua consciência.
Para Fábio Comparato, a sabedoria do velho advogado estava no fato de não lidar com crimes e acusações em geral, mas sempre especificamente com réus de carne e osso, que se apresentam cada qual em si mesmo, como seres únicos e insubstituíveis. Essa observação, penso, reafirma em nós aquela frase do filósofo Protágoras de Abdera, quando colocou o homem pela primeira vez no centro do pensamento, carregando em si o peso de sua condição humana com toda fragilidade dos destinos humanos, ao afirmar para os tempos, que: “o homem é a medida de todas as coisas”.
No Brasil a história da advocacia criminal e a vida profissional dos grandes advogados não constitui em geral objeto de estudos e de análise, contudo, tenho para mim que os advogados criminais desempenharam ao longo da história deste país um papel, uma visão e uma consciência de Estado Democrático de Direito que supera a que o Estado brasileiro sempre teve de si mesmo, sobre esse vértice. Por isso, é preciso reconhecer que a luta da advocacia em busca de uma cultura constitucional de respeito incondicional à autoridade da Lei fundamental da República e, portanto, às regras do jogo, neste país, contou com a decisiva participação do “advogado criminal, esse injustiçado”, para usar de um tema de uma palestra proferida no passado por Romeiro Neto, – aquele que julgava ser a norma penal muito pequena para conter a imensidade da alma humana; aquele que é detentor da homenagem judiciária mais simples e tocante com a qual me deparei, decorrente da época de ouro da chamada advocacia romântica do Rio de Janeiro, no salão histórico do I Tribunal do Júri, inaugurado em 1928 e que ainda hoje guarda todo mobiliário da época de sua disposição original.
Historicamente foi palco de diversos julgamentos célebres, como o de Gregório Fortunato, ex-chefe da guarda pessoal do Presidente da República Getúlio Vargas (1956), entre tantos outros. Em suma, o nome que a história guardou daquele tempo não foi de nenhum juiz, ainda que ali houvesse um Margarinos Torres, Ary Franco, nem mesmo de nenhum promotor ainda que ali houvesse um Roberto Lyra, Cordeiro Guerra e Emerson de Lima. O que ficou no plenário do homem, foi uma singela placa de bronze afixada na velha tribuna de madeira da defesa, onde se pode mais de meio século depois ainda ouvir pelos olhos naquele plenário o ecoar da voz de Romeiro Neto e, ler a seguinte inscrição: “Nesta tribuna gloriosa brilhou o talento de Romeiro Neto, grande advogado, exemplo para os mais novos”.
Hoje esse antigo palácio da justiça onde inclusive, Getúlio Vargas no ano de 1940, proclamou o Código Penal, é um lindo museu, com o “Salão dos Bustos”, em virtude das homenagens presentes a alguns dos mais brilhantes criminalistas da história do Brasil, tais como: João Romeiro Neto, Evandro Cavalcanti Lins e Silva, Antônio Evaristo de Moraes, Mário Bulhões Pedreira, Jorge Severiano Ribeiro, Francisco de Assis Serrano Neves, Antônio Evaristo de Moraes Filho. O espaço também é conhecido como o “Salão dos Passos Perdidos”, por ter sido outrora a sala de espera da decisão do júri onde o passante lê numa placa de metal afixada na parede da memória, a seguinte advertência aos jurados da época: “Cidadão jurado! Engrandeça este Tribunal. Engrandecendo-se. Agigante-se dentro de si mesmo, decidindo acima das paixões. Não sinta ódio. Nem pena, de ninguém, julgando com a sua consciência, não tenha medo de errar. Entrando neste recinto só aceite compromisso com a lei e com a sua dignidade”.
Prosseguindo devo dizer ainda, que particularmente sou daqueles que sonham com a progressiva abolição da instituição carcerária nos moldes existentes, seja como método penal, como meio válido para a integração social e repressão ao delito, já que o problema da prisão é a própria prisão, notadamente depois de tudo que meus olhos viram e guardaram como Presidente da 1ª Comissão do Sistema Carcerário da OAB/MS, na honrosa companhia do relator da Comissão Dr. Márcio Widal, um advogado de verdade, cuja cultura jurídica está à altura dos grandes criminalistas da moderna geração de advogados criminais do país.
Por outro lado, na objeção respeitosa, entendo que a ordem jurídica não pode ficar indiferente ao Regime Disciplinar Diferenciado vigente. Essa crueldade ilegítima, de tratamento inconstitucional e desumano que vulnera o princípio constitucional da dignidade humana enquanto condenados sobrevivem sob a laje de celas, cercados por paredes nuas e frias, durante 22 horas diárias, olhando para o nada. Esse RDD, que penso ser uma barbárie da era digital que poderia figurar no rol de atrocidades históricas da pena de prisão insertas no livro “Vigiar e Punir”, de Michel Foucault.
Na realidade, ninguém conhece o nosso país, o seu Estado, sem ter conhecido esses presídios do Brasil contemporâneo, que inauguraram uma nova modalidade de tortura institucionalizada com base na solidão e no vazio do cárcere que torna o preso vítima da loucura, no mundo artificial da execução penal, onde a famosa e imortal legenda em letras escuras inscrita na entrada do Inferno de Dante, teria guarida, servindo como uma fria e pensada sentença de morte:
Ei-la: “Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate”: Deixai toda esperança, vós que entrais. Dante Alighieri, esse divino poeta que estruturou e consolidou a língua italiana, tendo sido um dos precursores do humanismo em Florença.
Horroriza-me – dou-lhes a minha palavra sob a fé do meu grau, sobretudo, aos presos anônimos deste país, que muitas pessoas aqui fora pensam nos seus sofrimentos e, sonham coisas dignas para o ser humano que nunca existiram e, perguntam por que não.
Minhas senhoras e meus senhores, nada amedronta mais os pregoeiros mais fanáticos da repressão do que a inteligência da advocacia criminal que cria com suas postulações e orações penais, de pé nos tribunais, a jurisprudência constitucional das liberdades, no sentido de nunca relativizar as cláusulas pétreas do postulado constitucional da presunção de inocência, do devido processo constitucional e da ampla defesa que engloba inclusive os recursos de natureza extraordinária, isso porque a Constituição é literal ao estabelecer no inciso 57, do art. 5, que: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.
Nessa passagem peço-lhes um minuto de silêncio para ouvirmos um fragmento do discurso proferido pelo Deputado Ulisses Guimarães, Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, em discurso proferido em 5 de outubro de 1988, por ocasião da promulgação da Constituição Federal, descrito na edição original da Constituição , quando advertiu:
“A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo.
A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma.
Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério.
A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia”.
Para concluir, gostaria de recordar que em 1971, o STF aceitou a Lei de Censura prévia, editada pelo governo Médici, e o Ministro Adauto Lúcio Cardoso, num gesto considerado teatral, impróprio para um Ministro, jogou a toga e abandonou o Supremo.
Esse episódio perdido no tempo que marcou a suprema Corte, revela no fundo que a resistência ainda que isolada de alguns Juízes, a exemplo de advogados, ao arbítrio, opressão e suspensão de direitos no contexto histórico do Brasil, merece compreensão e respeito. Cumprindo dizer, a propósito, por exemplo, que atualmente, o Estado não dispõe de poder algum sobre a palavra, sobre as ideias e as convicções manifestadas pelos profissionais dos meios de comunicação.
Em palavras finais, digo-lhes que em tempos de processos penais bélicos, nossas armas mais poderosas hão de ser a memória de nossos guerreiros da liberdade, no caso, os grandes criminalistas do passado e do presente e, de juízes, que resistam a todo e qualquer violação dos direitos e garantias fundamentais do homem, empunhando a Constituição da República Federativa do Brasil, sob pena de traição à Constituição e à Pátria, bem como a sobrevivência da democracia.
Eis aí a nossa salvação. Eis aí a nossa eternidade! Muito obrigado.
(*) Discurso proferido no dia 22 de novembro de 2017, pelo advogado criminalista Carlos Magno Couto, no I Encontro da Advocacia Criminal de MS, no auditório da OAB/MS.