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CASO KISS – Ilegalidades reconhecidas do Júri levaram à anulação do julgamento da boate Kiss

A sessão de julgamento do caso da boate Kiss teve uma enorme repercussão na época, não apenas por conta da própria tragédia que foi relembrada pela imprensa, mas também pela duração da sessão[1] que foi transmitida ao vivo pelo YouTube, bem como pelos fatos que ocorreram posteriormente, com uma decisão lamentável do ministro Luiz Fux mandando prender os quatro acusados que haviam sido condenados[2]. Importante destacar que inúmeras nulidades ocorreram e impactaram principalmente àqueles que estão acostumados com o júri norte-americano.

Tais nulidades, que foram mostradas ao vivo para todo país, desnudaram violações à forma processual[3] e a princípios básicos de processo penal. Precisa-se exigir de todos os operadores de Direito, em particular dos magistrados, uma atuação obediente às normas processuais, principalmente a fim de garantir o devido processo legal, a plenitude de defesa e o contraditório. Nunca é demais recordar que forma é garantia, forma é legalidade, e que o respeito ao devido processo penal não se confunde com impunidade. É a violação e não o respeito que pode eventualmente gerar impunidade.

O Tribunal do Júri completou 200 anos em junho de 2022 e continua padecendo com mitigações sistemáticas em seu procedimento. Neste sentido, salienta-se a recalcitrância na negativa do reconhecimento de nulidades óbvias, sempre sob o mantra da “não comprovação de prejuízo”, que apenas justifica a negativa de vigência ao sistema de garantias. O princípio do prejuízo, além de ser uma categoria erroneamente importada do direito civil/processo civil, é inadequada e acaba por se transformar em uma fraude a serviço do punitivismo (esse sim, amorfo por excelência, pois o poder não tolera a forma-limite).

Assim, o julgamento da apelação do caso da boate Kiss reforçou a esperança de que a instituição possa ser vista como uma garantia constitucional, sob a égide do sistema acusatório, mesmo antes de uma possível reforma processual. Os votos dos desembargadores José Conrado Kurtz de Souza e Jayme Weingartner Neto foram um alento em inúmeros aspectos, eis que adentraram com técnica e profundidade em assuntos espinhosos que (sempre) causaram (e continuam causando) desequilíbrio entre acusação e defesa.

Apesar de o relator do processo não ter reconhecido nenhuma das nulidades arguidas pelas defesas, a partir dos votos lidos[4], os demais desembargadores reconheceram:

Primeiro, a nulidade pela quantidade de sorteios realizados, principalmente considerando o prazo até o início da sessão. Foram três sorteios, sendo que o último ocorreu faltando apenas quatro dias úteis para o julgamento, violando diretamente o CPP, que exige a realização de sorteio em no máximo até 10 dias úteis (artigo 433, § 1º, do CPP) antes da sessão.

Fazer o sorteio tão próximo da data do júri impede a atuação defensiva, pois não é possível analisar os nomes sorteados a fim de eventualmente afastar aqueles que estariam impedidos ou que seriam parciais. Além do mais, ficou evidente as vantagens competitivas do Ministério Público, os quais tiveram acesso a inúmeros banco de dados para análise dos jurados, algo que a defesa não tem, especialmente o famoso “consultas integradas”, um gigantesco banco de dados (incluindo os sigilosos, como ocorrências policiais em que o jurado tenha sido vítima ou imputado, visitas a presos, visita em presídios do sistema federal, etc.) somente acessíveis aos agentes do estado. Foi exposto na época[5] (e confirmado no julgamento do TJ-RS) que o MP faz o levantamento de uma série de informações sobre os jurados, excluindo até mesmo aqueles que visitaram parentes ou amigos no sistema penitenciário anos antes. Desta forma, os desembargadores corretamente reconheceram a violação do princípio da plenitude de defesa e da paridade de armas.

Em segundo, o desembargador Kurtz de Souza ainda apontou a ilegalidade da reunião reservada entre o juiz presidente e os jurados. Tal fato aconteceu no decorrer da sustentação da defesa em que, em determinado momento, o juiz presidente achou por bem levar os jurados para uma sala para “conversarem”. Obviamente que, além de não haver qualquer permissão legal, as partes sequer puderam ter conhecimento do conteúdo para, eventualmente, impugnar o ato. De acordo com o citado julgador, o ato constitui nulidade absoluta e, caso validado, abriria um precedente perigosíssimo. Realmente um ato absolutamente esdrúxulo e cujo conteúdo não foi controlado por nenhuma das partes, sendo incompatível com um justo e devido julgamento.

Em terceiro, outra nulidade foi a violação ao princípio da correlação entre a decisão de pronúncia e a sustentação da acusação. Como se sabe, desde a reforma da Lei 11.689/2008, a decisão de pronúncia delimita a acusação, sendo que a defesa se defende dos fatos admitidos naquela decisão. Entretanto, no júri da boate Kiss, o acusado Mauro Hoffman foi pronunciado por condutas comissivas e a acusação, na réplica, inovou na tese acusatória, alegando a teoria da cegueira deliberada. Tal surpresa acusatória consistiu em transgressão ao princípio da plenitude de defesa.

Em quarto, a redação deficiente de quesitos, especialmente o quesito relativo ao dolo eventual. A redação, inclusive descrevendo condutas que já haviam sido afastadas pelos tribunais em decisões anteriores, prejudicou diretamente a defesa. Ademais, a escrita gerou complexidade na compreensão pelos jurados, prejudicando uma decisão adequada. Os desembargadores constataram a violação do princípio da correlação entre a decisão de pronúncia e a quesitação.

Em quinto lugar, cumpre destacar o acerto do voto do desembargador Jayme em relação à violação do artigo 479, na medida em que o ministério público junto, ainda que dentro do prazo legal, uma “maquete virtual” (reconstituição virtual do interior da boate), cuja imensa complexidade do programa o tornava completamente  inacessível, exigindo uma tal qualidade de hardware inalcançável para as defesas utilizando os meios normais e ordinários. Em outra palavras, uma prova surpresa que o juiz, erroneamente, não afastou de plano e permitiu sua utilização no plenário, causando surpresa e grave violação do contraditório e da plenitude de defesa.

Por último, vale ressaltar que ficou clara a indignação de todos os desembargadores com a decisão do presidente do STF, ministro Luiz Fux, que no dia 14 de dezembro determinou a prisão imediata dos condenados no júri da boate Kiss, ao arrepio das normas constitucionais e convencionais. O próprio presidente da Câmara, desembargador Manuel José Martinez Lucas, chamou a decisão de esdrúxula e arbitrária. Resta evidente que, como a decisão da prisão por parte do presidente do STF se fundamentava na condenação do tribunal do júri, todos os acusados devem ser imediatamente soltos.

A visibilidade e complexidade do processo não pode servir como justificativa permissiva para violação dos direitos e garantias. A posição sistemática do júri no artigo 5º, XXXVIII, da Constituição não é ao acaso. O júri é uma garantia do cidadão e, como tal, deve ser interpretado.

Se o nível de civilidade de um povo tem relação direta com o sistema de garantias processuais penais, a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul restabelece – mesmo que pontualmente – a crença de que vivemos em um Estado democrático de Direito. Apesar de o tribunal do júri precisar ser rediscutido a partir do sistema acusatório, desde já a minimização de erros judiciais perpassa pela garantia de um julgamento justo. E isso se dá, ao menos, com respeito às regras do jogo.


[1] O julgamento começou no dia 1º. de dezembro de 2021 e terminou no dia 10 de dezembro de 2021.

[2] Sugerimos a leitura dos artigos “O júri da boate Kiss: que nos sirva de alerta” e “‘Caso boate Kiss’: roga-se por respeito à Constituição“.

[3]  Sempre devemos lembrar que “A forma processual é, ao mesmo tempo, limite de poder e garantia para o réu”. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 19 ed. São Paulo: Saraivajur, 2022. p. 1060.

[4] O artigo foi escrito com base nos votos lidos na sessão de julgamento, vez que os votos escritos ainda não haviam sido disponibilizados.

[5] Situação que discutimos nos artigos “‘Caso Boate Kiss’: idoneidade dos jurados e paridade de armas (Parte 1)” e “‘Caso Boate Kiss’: idoneidade dos jurados e paridade de armas (Parte 2)“.

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Rodrigo Faucz Pereira e Silva é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de mestrado em Psicologia Forense da UTP.

Aury Lopes Jr. é advogado, doutor em Direito Processual Penal, professor titular no Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado, em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

Conjur – Artigo publicado 04/08/2022

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