CASO MARIELLE FRANCO – Juiz pode pedir ao Google dados estáticos por localização e palavra-chave, diz STJ
A ordem judicial para entrega de dados estáticos delimitada por parâmetros de pesquisa por geolocalização, período de tempo específico palavras-chave não se mostra desproporcional, pois, se tem como norte a apuração de gravíssimos crimes cometidos, não impõe risco desmedido à privacidade e à intimidade dos usuários possivelmente atingidos.
Com esse entendimento, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça negou três recursos em mandado de segurança ajuizados pelo Google contra decisões do Judiciário fluminense que determinaram entrega ao Ministério Público estadual de informações específicas que possam ajudar nas investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes.
O crime ocorreu em 14 de março de 2018. Em agosto, Polícia Civil e MP do Rio solicitaram lista IPs e Device IDs de usuários que pesquisaram palavras-chave relacionadas ao caso me período de tempo relativo à ocorrência. Também pediram IPs dos usuários que cruzaram o pedágio da via Transolímpica. Ao todo, as ordens pedem dados de usuários que tenham transitado em 34 áreas do Rio. O Google recorreu e perdeu nas instâncias ordinárias.
No STJ, a empresa sustentou que colaborou com o caso, mas se opôs ao que classificou como “tentativa de ginástica interpretativa para legitimar a fórceps esse tipo de investigação genérica”. Afirmou que não há embasamento legal para esses pedidos e que configuram invasão à privacidade e quebra da proporcionalidade.
Relator, o ministro Rogério Schietti analisou a questão conforme dispõe o Marco Civil da Internet e concluiu que a requisição de dados pessoais armazenados por provedores como Google impõe três fatores: indícios do ilícito cometido, justificativa da utilidade da requisição e período ao qual se referem os registros.
“Não é necessário que se fundamente a requisição com indicação da pessoa alvo do pedido ou que se justifique a indispensabilidade da medida — o que significaria mostrar que a prova não pode ser realizada por outros meios”, destacou.
Assim, a proporcionalidade é adequada na medida em que serve para elucidação dos delitos em investigações que já duram mais de dois anos; é necessária diante da complexidade do caso; e é proporcional porque a restrição a direitos fundamentais que da quebra resultam não ensejam prejuízo às pessoas eventualmente afetadas. Os dados recolhidos que não servirem serão descartados pelo MP, e nessa fase, a entrega dos mesmos é anonimizada, restrita a IPs e Device IDs.
Divergência e “alargamento”
O julgamento registrou um voto divergente, pelo ministro Sebastião Reis Júnior, para quem há evidente quebra do sigilo e da privacidade de usuários — afinal de contas, o objetivo do MP é identificar pessoas através do cruzamento de dados. Também classificou as ordens como genéricas, sem as mínimas delimitações necessárias.
“Ela fala em um período de 10 a 14 de março. Por que não 5 a 14? Por que não 8 a 14? Não tem explicação nenhuma. E a amplitude das informações: não há qualquer delimitação de público alvo. Pede informações de qualquer pessoa que tenha procurado no Google as palavras-chave”, contestou o ministro.
Ao proferir o voto, o relator tratou do assunto. Entendeu que o objetivo é, em um universo maior de pessoas, chegar-se a número reduzido de possíveis indivíduos que poderiam, em tese, ter relação com os fatos, mas que não serão expostos, já que o passo seguinte seria avançar nas investigações por meio de pedidos individualizados.
O ministro Schietti ainda fez uma diferenciação entre as ordens judiciais, que tratam de quebra de sigilo de dados informáticos estáticos relativos a arquivos digitais de registro, daquela que ocorre com as interceptações das comunicações, as quais dão acesso ao fluxo da comunicação de dados travada com seu destinatário. Apenas na segunda incide a Lei 9.296/1997, a Lei das Interceptações Telefônicas.
“Não estamos, como vi algumas notícias dizerem, julgando um alargamento da possibilidade de quebra de sigilo telemático das pessoas”, afirmou o ministro Ribeiro Dantas, ao acompanhar o relator. “Dados como esses registros não são protegidos pelo sigilo constitucional. Portanto não se aplica a eles o regime da Lei 9.296/96”, destacou.
Resistência do Google
O julgamento também foi marcado por críticas dos ministros à resistência apresentada pelo Google ao cumprimento de decisões judiciais. O ministro Schiett, por exemplo, afirmou que causa estranheza a preocupação da empresa com a preservação do sigilo de terceiros quando não se tem notícia de uma única pessoa incomodada com o pedido do Ministério Público.
“Essas mesmas estruturas tecnológicas que nos invadem diariamente com fornecimento de nossos dados para empresas, para oferecimento de venda de produtos, que deveriam se preocupar com a invasão da nossa privacidade, agora se colocam de maneira ferrenha contra a simples investigação de dois assassinatos”, disse o relator.
Para o ministro Saldanha Palheiro, o Judiciário brasileiro, na sua inteireza, já se deparou com essa resistência. trutural, filosófica e técnica para negar um pedido que foi objeto de determinação judicial? Obriga a parte a recorrer até o STJ. Quanto tempo se perdeu para se valer de sua política? Uma política de privacidade que não prevalece na hora de disponibilizar nossos dados para propagandas que invadem nossa esfera de individualidade cotidianamente”, disse.
“Essas empresas precisam entender que há lei nesse país e que há juízes com comedimento, com fundamentação, com embasamento”, criticou o ministro Reynaldo Soares da Fonseca. “É incompreensível a negativa do Google quanto ao cumprimento das legítimas requisições judiciais que são necessárias para o prosseguimento das investigações dos assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes”, acrescentou a ministra Laurita Vaz.
RMS 60.698
RMS 61.302
RMS 62.143
Danilo Vital – Conjur