Coisas que aprendi na execução penal
Aprendi muitas coisas com a (e na) execução penal. Algumas dessas coisas não estão nos manuais, tampouco são abordadas durante a graduação.
A execução penal me ensinou que devemos fiscalizar e investigar tudo, nunca presumindo que um preso provisório ou apenado está mentindo sobre determinado fato.
Para explicar como aprendi essa lição que marcou a minha vida, relatarei dois fatos que ocorreram na minha experiência profissional. Nesses dois casos, se eu não houvesse “desconfiado” que os presos estavam falando a verdade, teriam ocorrido injustiças grotescas.
Um dos casos ocorreu pouco depois de ter assumido a função de Defensor Público com atuação na execução penal. Eu era o único Defensor responsável por uma penitenciária com muitas centenas de presos, um albergue e um número considerável de apenados cumprindo penas restritivas de direito.
Enquanto fazia atendimentos em um dos módulos da penitenciária, recebi informações de que havia um preso muito jovem chorando desesperadamente em outro módulo. Eu tinha dias específicos para realizar atendimentos em cada módulo, mas, como vários apenados relataram o desespero desse jovem, abri uma exceção e fui encontrá-lo.
Quando começamos a conversar, aquele preso, então com 19 anos de idade, narrava que estava há 10 meses preso após uma prisão em flagrante, não tendo recebido notícias de denúncia ou audiência. Achei estranho. Ninguém ficaria preso por tanto tempo sem que fosse realizada a audiência de instrução ou, no mínimo, oferecida a denúncia.
Comecei a pesquisar em todos os sistemas disponíveis e percebi que ele tinha apenas um inquérito policial. Não cumpria pena, não estava preso provisoriamente por nada… estranho!
Fui ao cartório e informei a situação. A funcionária da VEC disse que “eles sempre mentem” e que eu poderia “deixar para lá”. Insisti para que ela pesquisasse no sistema. Foi então que, após pesquisar, ela ficou desesperada. Não havia informação de que ele estava preso. O que havia acontecido?
Ele tinha contra si apenas um inquérito, que estava há meses aguardando denúncia ou arquivamento pelo Ministério Público. Foi então que, procurando em um armário, a funcionária encontrou um envelope lacrado com os documentos relativos à prisão. Era um procedimento que adotavam para manter o sigilo desse trâmite.
Em outras palavras, aquele jovem ficou tanto tempo preso sem denúncia porque o seu inquérito tramitava como se ele estivesse solto, considerando que o envelope com as informações relativas à prisão estava caído atrás do armário. O inquérito estava há vários meses com um membro do Ministério Público que, sem saber que o jovem estava preso cautelarmente, entendeu não haver urgência para denunciar ou arquivar o inquérito de um indivíduo que, aparentemente, estava solto.
Imediatamente, o Juiz foi informado e determinou a expedição do alvará de soltura.
No segundo fato, realizei alguns atendimentos num presídio enquanto o Juiz da execução penal fiscalizava o local. Encontramos um apenado que havia chegado recentemente de uma transferência de presídio e, de forma desesperada, narrava que estava cumprindo quase o dobro da pena na sentença.
Na saída do presídio, ouvi do Juiz que não precisava me preocupar com isso. Contudo, lembrando-me do primeiro fato, resolvi pesquisar. Para a minha surpresa, o apenado dizia a verdade.
Todos que passaram pelo seu processo de execução criminal deixaram de aplicar ou postular a detração da pena. Em razão disso, já estava cumprindo quase o dobro da pena imposta. Após o pedido de detração, o apenado foi imediatamente solto.
Esses dois fatos, que insisto em contar para todos os meus alunos, ensinaram-me duas lições muito importantes: presos podem dizer a verdade e papéis/documentos podem estar errados. Frases como “está no papel, então é verdade”. “tem que ver o que está no papel” ou “todos se dizem inocentes na prisão” devem ser evitadas.
Noutras palavras, tudo deve ser investigado quando se trata de execução penal.
A execução penal me ensinou que não se deve prometer nada que não seja possível cumprir, mesmo coisas que aparentemente não são importantes. Assim, se disser que dará uma resposta ao preso na segunda-feira, tenha certeza de que conseguirá cumprir essa promessa. Os estabelecimentos prisionais “explodem” por muito pouco.
Outra lição que aprendi na execução penal é que a desorganização estatal é suprida por uma organização paralela. Se o Estado não cumpre o seu dever de efetivar direitos na execução penal, outras pessoas avocarão esse dever, mas também exercerão o poder que decorre do cumprimento desse dever.
Aprendi que o tempo é o maior inimigo de todos que estão inseridos na execução penal.
O preso sofre com cada minuto que ultrapassa o lapso temporal exigido para o exercício de seus direitos, mormente a progressão de regime e o livramento condicional.
Os atuantes na execução penal (Juízes, Promotores, Advogados e Defensores) sofrem – ou deveriam sofrer – com os atrasos na apreciação de pedidos. Perdem – ou deveriam perder – o sono quando chega o final do expediente forense e ainda há direitos atrasados que deveriam ser apreciados.
Mais uma noite que o preso passará numa cela em situação de ilegalidade…
Aprendi, sobretudo, que o Estado descumpre a lei enquanto pune aqueles que violaram a lei.
Contraditório, não?
Evinis Talon
Membro da Abracrim/RS, advogado, consultor em Direito Penal e Processo Penal, professor de cursos de pós-graduação e presidente do International Center for Criminal Studies (ICCS).