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Colaboração premiada e compartilhamento de provas: limites e vinculações

Ao tratar do tema, sempre se faz questão de asseverar o não ineditismo do instituto da colaboração premiada no Direito Brasileiro. No entanto, a despeito de todas as leis que abordaram a cooperação premiada, fato é que nenhuma o fez de modo detalhado como a Lei 12.850/2013 – Lei de Organizações Criminosas.

Em que pese a Lei 12.850/2013 – Lei de Organizações Criminosas tenha inovado na regulamentação da colaboração premiada, trata-se, ainda assim, de um diploma legal com “anemia normativa”, na medida em que deixou inúmeros vácuos no regramento da temática, os quais, a cada dia que se passa, causam não só dúvidas e controvérsias, mas, sobretudo, insegurança jurídica – a delatores/colaboradores e delatados.

Com efeito, passada mais de meia década de vigência, a Lei de Organizações Criminosas consegue, diariamente, pôr em discussão temas inéditos, que provocam os estudiosos das ciências jurídicas em todos os níveis e âmbitos.

Bem por isso – por essa capacidade de gerar discussões práticas – deve a colaboração premiada ser cada dia mais estudada e debatida, porquanto muitas questões problemáticas reclamam tratamento.

Assim, ante a insuficiência normativa do diploma em questão, cumpre à doutrina estudá-lo e aperfeiçoá-lo, demonstrando, inclusive, pontos que merecem ser melhorados, via processo legislativo, e não apenas por meio de decisões judiciais, já que o Direito, num Estado Democrático de Direito, não é [só] aquilo que os tribunais dizem.

Pois bem. Dentre as incontáveis celeumas as quais assolam os pensadores do direito que se dedicam ao estudo desse novo modelo de justiça penal negocial, o compartilhamento da colaboração premiada com outros órgãos de uma ou mais instituição, no âmbito penal ou extrapenal, tem merecido atenção especial, notadamente pela insegurança jurídica que gera para os colaboradores.

Isso porque, com o advento da colaboração premiada, os processos tomaram novos contornos e, abandonando o estilo clássico de persecução penal, tornam-se verdadeiras histórias-sem-fim. Tamanha é a relação de continuidade de processos que as operações atuais não recebem mais nomes, e sim fases [vide a multicidada “Operação Lavajato, que já virou filmes, livros, documentários, etc., mesmo sem sequer ter “acabado”].

Presentemente, faz-se uma colaboração premiada numa determinada região e, com base nela, enviam-se provas a órgãos do Ministério Público de outras comarcas, Estados, seções judiciárias, à Receita Federal e demais órgãos de fiscalização e controle. É dizer, a colaboração “ganha vida” e, muitas vezes, perpassa o Brasil todo, fazendo surgir, com base no quanto dito pelo colaborador, processos penais, ações de improbidade, processos administrativos, tributários, etc.

Em muitos casos, penais e extrapenais, compartilham-se provas, sem, no entanto, atentar-se ao “compartilhamento de prêmios”. De ter-se em mente, todavia, que quando o colaborador renuncia ao seu direito ao silêncio e compromete-se a falar a verdade, ele o faz apostando na boa-fé do Estado, na contrapartida premial, pouco se importando se falou o que sabia ao “promotor da comarca X ou Y”. Se o colaborador agiu de boa-fé, incriminando-se inclusive, ele espera o mesmo do Estado, que é uno.

Deveras, ao fazer o acordo de colaboração premiada, não se restringe o colaborador a narrar fatos de uma comarca X ou Y. Todo o oposto! Com a colaboração, nasce o dever de falar a verdade, sem qualquer reserva mental e sem limites geográficos. Destarte, se há, para o colaborador, um dever geral e “permanente” de colaboração, também deve existir, para o Estado, um dever geral e “permanente” de premiação.

Assim, sob pena de descumprimento por via transversa do acordo de colaboração premiada, há de se ter demasiada cautela no chamado compartilhamento de provas, com vistas a evitar que o Estado – que é, em última análise, a parte fixa do contrato de cooperação premiada – se beneficie da própria torpeza, obtendo ganhos investigativos e probatórios, sem, contudo, abrir mão do seu poder punitivo/sancionador.

Há que ficar claro, pois, que o contrato de cooperação premiada tem, necessariamente, duas partes: de um lado, o colaborador, que abre mão de diversas garantias processuais e materiais para colaborar com as investigações, e, de outro, o Estado, pouco importando se corporificado pelo Ministério Público Estadual ou Federal, etc.

Portanto, sempre que o compartilhamento de provas tiver o condão de comprometer o colaborador, cautelas devem ser adotadas. Evidentemente que o poder de compartilhar, ou não, as provas derivadas da colaboração premiada está com o Estado-Juiz. Dessa forma, a boa-fé objetiva deve guiar, sobretudo, os órgãos que se beneficiam do compartilhamento.

O ideal, em colaborações robustas, as quais envolvem fatos criminosos em diversas regiões, seria um “acordo coletivo” com os respectivos membros estatais, de modo que o contrato de cooperação faria lei entre todas as partes, materializando, de forma inquestionável, o “pacta sunt servanda”.

Entretanto, dada uma gama de circunstâncias, nem sempre a negociação coletiva é viável. Em hipóteses tais, a Procuradora Regional da República atuante na 4ª Região, Carla Veríssimo, preleciona que:

Caso não seja possível envolver na negociação os membros do Ministério Público lotados nas outras jurisdições, ou algum juízo não homologue a colaboração, as provas de uma investigação que eventualmente estiver mais adiantada, em razão da colaboração, não deverão ser compartilhadas com o outro juízo . Grifou-se.

Nesse sentido, observa a precitada autora, é a orientação da 5ª Câmara de Coordenação de Revisão do Ministério Público Federal, consubstanciada no Estudo Técnico 01/2017 – 5ª CCR, o qual, malgrado aborde os acordos de leniência, tece considerações também às informações obtidas em colaboração premiada:

Assim, o acesso a informações e documentos obtidos em colaboração premiada, por outros órgãos públicos de fiscalização e controle ou por terceiros interessados que se legitimem a tal “disclosure”, depende da adesão racional e razoável aos termos negociados entre Estado e colaborador.

Com efeito, na linha do predito Estudo Técnico 01/2017 – 5ª CCR, deve ser condicionado o acesso a informações, provas e valores devolvidos ou recuperados à adesão aos termos do acordo negociado, que devem ser respeitados pelos aderentes, de modo que o compartilhamento de dados, informações e documentos só pode ser efetivado através de compromisso de observância das condições acertadas entre colaborador e Estado-acusador, voltadas a garantir o status legalmente adquirido pelo colaborador com a atitude cooperativa adotada e o respeito por ele prestado como testemunha protegida.

Para verificar-se a importância de tal regramento, basta imaginar, por exemplo, o caso em que o colaborador firma um acordo com representantes do Estado [v.g. MPF], restitui valores ao erário, mas as suas informações, após compartilhadas, ao aportarem nos demais órgãos de controle [CGE, TCE, RFB, etc.], sejam valoradas somente no aspecto incriminatório, sem qualquer conotação premial.

Ora, e os valores restituídos ao erário?! Haverão de ser pagos novamente? E a colaboração premiada efetivada?! Seria, em nome da independência das instâncias, uma nítida e inaceitável violação à boa-fé objetiva e à segurança jurídica do colaborador, que, além de celebrar um acordo penal, teria de “correr” atrás de tantos órgãos quanto necessários para não se ver aniquilado por uma “enxurrada” de processos e procedimentos, penais e extrapenais, em verdadeiro bis in idem.

Na prática forense recente [abr./2018], o então juiz federal Sérgio Moro, atuante na “Operação Lavajato, “berço da colaboração premiada”, havia se posicionado contra o compartilhamento de provas de delações premiadas e de acordos de leniência em desfavor dos próprios colaboradores da operação “lava jato”, com órgãos diversos, a exemplo Tribunal de Contas da União; da Controladoria-Geral da União; da Receita Federal; do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE); do Banco Central e da Advocacia-Geral da União.

Não obstante o efêmero acerto do magistrado federal, em data posterior [03/07/18], ele reviu seu posicionamento e passou a autorizar “o compartilhamento de provas da operação Lava Jato com a Receita Federal e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN)”. Na decisão, sustentou que “a Receita tem auxiliado nas investigações, ‘atendendo a requisições específicas do MPF ou do Juízo ou realizando um trabalho paralelo, nos lançamentos fiscais, de investigação’”.

É evidente o contrassenso!

Quem colabora é o colaborador, sobretudo produzindo prova contra si mesmo, e não os órgãos de controle, que recebem todos os elementos de prova prontos, formatados, filtrados. De posse das informações/provas, fazem autuações, deflagram processos administrativos, tributários, mas recusam-se, após, a conferir os prêmios a quem lhes viabilizou o substrato probatório, em inegável descumprimento reflexo do acordo de colaboração premiada.

A toda evidência, não é essa a postura que se espera do Estado, que deve guiar-se, para além dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, constitucionalmente consagrados, pela boa-fé objetiva, que deve apresentar-se, aqui, como “verdadeiro standart jurídico ou regra de comportamento, caracterizado por uma atuação de acordo com determinados padrões sociais de lisura, honestidade e correição, de modo a não frustrar a legítima confiança da outra parte”.

Dessa forma, defende-se que a orientação da 5ª Câmara de Coordenação de Revisão do Ministério Público Federal, segundo a qual “a preservação da boa-fé e da confiança é necessária para garantir a previsibilidade das consequências decorrentes da celebração de acordo de leniência” deve aplicar-se, também, à colaboração premiada, justamente porque ubi jus ibi ratio. Daí dizer-se que “só haverá esta segurança se houver também a certeza de que o acordo será integralmente respeitado e cumprido, seja pelos celebrantes, seja por terceiros que desejem dele beneficiar-se”.

E assim deve ser, uma vez que não pode o Estado, em decorrência da desinteligência e/ou falta de atuação integrada entre diversos órgãos de controle, valer-se do bônus – que são as informações, provas e valores obtidos/reavidos com a colaboração premiada – sem se comprometer com o ônus, o qual se materializa na renúncia da punição ou parte dela em relação ao colaborador, que deve ser premiado, em todos os locais e instâncias nos quais sua colaboração produzir efeitos, “sob pena de, ao contrário, enfraquecer-se demasiadamente a posição de quem colabora com o poder público sancionador, abrindo mão de direitos fundamentais de autodefesa e lançando por terra as demandas de segurança jurídica”.

Uma vez que se trata de um questionamento novo, muito ainda há de se discutir.

Para evitar-se esse tipo de situação – em que o colaborador fornece relevantes informações e provas às autoridades públicas num dado processo, mas depois fica à mercê de toda sorte de procedimentos e processos, penais e extrapenais –, é mandatório que, na ausência de regramento legal expresso, se clausule, quando da celebração do acordo de colaboração premiada primevo, uma obrigação no sentido de que:

“O Ministério Público Federal/Estadual obriga-se a não “compartilhar/emprestar” o material probatório derivado do acordo de colaboração premiada, com o Ministério Público Estadual/Federal de outras comarcas ou seções judiciárias, bem assim com outros órgãos de controle, senão mediante a adesão expressa dos termos/prêmios acordados.

Além de o compromisso restar cravado no acordo de cooperação premiada, fazendo, assim, “lei entre as partes”, fornece meios para se questionar eventual processo/procedimento deflagrado contra o colaborador, com base na sua colaboração, mas sem lhe franquear os prêmios acordoados na negociação primeira.

Observe-se que a necessidade de os acordos de colaboração premiada previrem tal cláusula ganhou relevo, sobretudo após a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, em julgado recente, ter assentado que “o compartilhamento de termos de depoimentos prestados no âmbito de colaboração premiada deve respeitar as balizas do acordo homologado em juízo”.

Segundo apontado na ocasião, pelo Ministro Gilmar Mendes, “numa colaboração premiada, o delator aceita produzir provas contra si mesmo tendo em vista os termos acordados no pacto com o Estado. Assim, a utilização de tais elementos probatórios produzidos pelo próprio colaborador em seu prejuízo de modo distinto do firmado com a acusação e homologado pelo Poder Judiciário é prática abusiva que viola o direito à não autoincriminação”.

O Ministro Celso de Mello, por sua vez, asseverou que, embora viável sob a perspectiva jurídica, “o compartilhamento de provas impõe que se observem limites, principalmente aqueles estabelecidos consensualmente no acordo de colaboração premiada ou de leniência em relação a todos os que participaram de sua formalização”.

Portanto, deve ficar claro que, independentemente do órgão de controle, do âmbito ou da natureza do processo ou procedimento [penal, cível, administrativo, tributário, etc.], se o Estado se valeu das informações e provas fornecidas pelo colaborador, haverá de, em relação a ele, aplicar, de forma compatível ao acordo, os prêmios fixados no contrato de cooperação premiada, sob pena de violação de um “sem-fim” de direitos, garantias e princípios, dentre os quais se destacam: a boa-fé objetiva, em seus desdobramentos venire contra factum proprium e tu quoque; moralidade; lealdade; segurança jurídica; nemo tenetur se detegere; etc.

Em conclusão, todo e qualquer compartilhamento de provas derivadas da colaboração premiada só poderá ser considerado válido, legítimo e eficaz se forem observados os limites do acordo de premial.

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