Complexo de Mister M na delação premiada: só o inimigo não delata – Por Fernando de Castro Faria e Alexandre Morais da Rosa
Por Fernando de Castro Faria e Alexandre Morais da Rosa – 13/10/2016
Mister M é um mágico arrependido que se utilizava justamente do saber decorrente dos ensinamentos da mágica para poder fazer fama, ganhar dinheiro e “entregar” os demais colegas de profissão. Ao desmascarar os demais parceiros, do ponto de vista individual, ganhava benefícios, embora fosse – e continue – sendo odiado pela classe. Os limites éticos de sua conduta não entram em questão, porque sua pretensão é egoísta e individual, na lógica pragmática, ou seja, pretende maximizar os resultados favoráveis. Os demais que se virem em novas mágicas.
A quadra dos direitos fundamentais não é boa, todos sabemos. A relativização da presunção de inocência, a fim de que acusados possam ser presos após a condenação por órgão colegiado no Tribunal, as restrições à liberdade de expressão (com constrangimentos públicos a quem pensa de modo diverso – cuidado com o livro que se lê em público!), a conclusão de que a operação policial do momento não necessita observar rigorosamente as regras do processo penal são sinais preocupantes de um tempo em que a sanha punitivista nunca esteve tão em moda, para felicidade de muitos e preocupação de quem analisa os fatos com um olho no retrovisor da História e outro na estrada adiante.
Flexibilizar uma garantia fundamental tem seu preço, e muitos não sabem qual será. A prisão de pessoas que posteriormente tenham a pena reduzida, o regime alterado ou até mesmo sejam absolvidas pelos tribunais superiores é incontestável ofensa à liberdade, de tal ordem que, sabemos, jamais poderá ser restituída pelo Estado. Curiosamente, em matéria cível, o juiz exige caução idônea para liberar qualquer valor em dinheiro, em casos de execução provisória. Tudo para que não haja a possibilidade de prejuízo àquele que recorreu da sentença e, portanto, possui chance de revertê-la. Imaginem o juiz liberar um valor expressivo a uma das partes sem o trânsito em julgado e sem garantia alguma de que poderá restabelecer a situação anterior. Impensável, mas é o que faremos com a liberdade das pessoas.
Em nome de um sistema penal “eficiente”, cuja clientela bem se sabe quem é, derrubamos o avião dos direitos fundamentais. A virada na jurisprudência do STF, desde o HC 126.292, agora confirmada pelo julgamento de 05.10.2016 (ADCs 43 e 44) tem endereço certo. As condenações da Lava Jato, uma vez confirmadas no Tribunal Regional Federal, possibilitarão a prisão dos acusados. Mas é justamente nessa operação que se vê a maior incoerência do sistema punitivo pregado por muitos, caracterizada pela redução de penas (sem critérios definidos) decorrentes das delações. Nessa linha, é possível verificar que muitos dos delatores já estão cumprindo prisão domiciliar, após algum tempo na prisão e mediante a devolução de valores desviados, cujo montante total nunca se sabe qual é. Somente no embalo de muita ingenuidade é possível acreditar que a devolução será integral.
A propósito, até mesmo a Polícia Federal divulgou recentemente que as delações deveriam cessar, sob o argumento de que já há material suficiente apreendido e que há um risco de sensação de impunidade junto à opinião pública com novas delações, que implicam redução de pena, como dito (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/10/1819588-pf-se-opoe-a-novas-delacoes-premiadas-na-lava-jato.shtml) Faz sentido, afinal o lema dos acusados parece ser “tornozeleira pouca, minha delação primeiro”.
Esse modelo, longe de condenarmos moralmente, joga o processo penal em constante vigilância e desconfiança entre os sócios, parceiros, dada a possibilidade de invencionices, convicções pessoais que, por passe de mágica, viram capa de revistas e jornais e destroem reputações. E não há, depois de uma absolvição, um guichê para se recuperar a reputação e a liberdade perdidas. Levando-se ao limite as delações, podemos imaginar membros da própria investigação – do lado do Estado – daqui a pouco sendo delatados por dentro. Poucos conseguem imaginar que daqui a uns anos os parceiros de investigação podem ser justamente os delatores em nome de fama, dinheiro ou aplausos da torcida que sempre e sempre quer espetáculo (Guy Debord na pena de Rubens Casara). O que podemos aprender é que o paradigma Mister M, do maior delator da história dos mágicos, virou lugar comum. Cuidado com seus amigos e anote: somente o inimigo não delata; o amigo sim.
Fernando de Castro Faria é Mestre em Ciências Jurídicas, Professor de Direito Eleitoral e Juiz de Direito (SC). Autor do Livro: A Perda de Mandato Eletivo: Decisão Judicial e Soberania Popular.
Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR).Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com / Facebook aqui.
Fonte: http://emporiododireito.com.br/