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Contêineres, sistema prisional e a crônica de uma tragédia anunciada

Alessa Pagan Veiga

Hugo Fernandes Matias

Luciana Boiteux

Luanna Tomaz de Souza

O uso de contêineres no Estado Brasileiro voltou a ganhar holofotes com a divulgação de ofício do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), solicitando a flexibilização dos parâmetros arquitetônicos prisionais do país, a fim de que possível a utilização de estruturas metálicas temporárias para o aumento de vagas, diante da pandemia da Covid-19.

Em sua essência, a preocupação com os reflexos da Covid-19 sobre o sistema carcerário nacional é real, uma vez que a infecção já se mostra presente em unidades de Estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo, Pará e Distrito Federal. Todavia, discordamos da proposta.

Em primeiro lugar, vale frisar que o sistema prisional brasileiro tem sofrido um crescimento exponencial ao longo das últimas décadas, o que levou o país a possuir a 3a maior população carcerária do planeta, atrás somente de Estados Unidos e China. Além disso, de acordo com dados do infopen, o país possui um déficit de aproximadamente 312.925 vagas. Há uma grave deficiência estrutural na quantidade de vagas no sistema prisional brasileiro, sendo certo que a infecção por Covid-19 apenas acrescenta um elemento complicador, e com risco de morte, para a gestão e promoção de direitos no sistema.

Ademais, superlotação, maus tratos, tortura, mortes, doenças, tuberculose, dificuldade de acesso à saúde, excesso de remédios psicotrópicos, baixa quantidade de oportunidades de trabalho e dificuldade de acesso à escolarização fazem parte do cotidiano das unidades do país, em manifesta desconformidade com o texto da CF/88 e da lei de execuções penais. Esse contexto levou, inclusive, o Supremo Tribunal Federal (STF) a reconhecer o Estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro no julgamento da ADPF 347.

A necessidade de ampliação do número de vagas nas unidades prisionais do Brasil já gerou a utilização de contêineres e celas metálicas em Estados como Espírito Santo, Rio Grande do Sul e Pará, tendo sido verificada em todos esses casos a configuração de tratamento indigno e desumano, com manifesta violação a direitos fundamentais.

Verificou-se nesses Estados deficiências sanitárias ligadas à ausência de sistema de esgoto e até mesmo as altas temperaturas dos contêineres expostos ao sol que se replicaram no sistema socioeducativo e fizeram com que o país fosse acionado internacionalmente no caso do Espírito Santo.

Sobre o tema, paradigmático o sempre lembrado habeas corpus 142.513/ES, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, no qual se entendeu pela substituição da prisão em contêineres por prisão domiciliar, com extensão a todos – homens e mulheres – que estivessem em condições semelhantes. No voto, o Ministro Og Fernandes configurou como absurda a situação em julgamento.

Em 2019, no Rio Grande do Sul, o Tribunal de Justiça concedeu habeas corpus de ofício, no julgamento do agravo em execução nº 70080474125, patrocinado pela Defensoria Pública Estadual (DPRS), a presos do Instituto Penal de Novo Hamburgo (IPNH), encarcerados em contêineres, tendo consignado que a situação apresentada configurava violação à Constituição, legislação interna e atos normativos internacionais, inclusive aos parâmetros arquitetônicos fixados pelo CNPCP após o caso do Espírito Santo.

No Estado do Pará, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCP), em missões realizadas em 2016 e 2019 se deparou com a utilização de celas metálicas em unidades prisionais, inclusive no estabelecimento que ficou nacionalmente conhecido como palco no “massacre de Altamira”, tendo relatado que se tratava de medida que permitia que pessoas morressem incinerada ou asfixiadas com mais facilidade.

Por outro lado, o Conselho Nacional de Justiça expediu a Recomendação nº 62 de 2020, com diversas medidas humanitárias visando à promoção dos direitos humanos à vida e saúde de uma significativa parcela da população brasileira, sujeita às mazelas do sistema prisional, num contexto de avanço da Covid-19 sobre o país. Aliás, tal documento encontra-se afinado à visão constitucional da pessoa como centro das relações jurídicas, tal como alinhado na Carta de 1988 e em recente Resolução da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh).

Ocorre que a Recomendação tem tido aplicação ainda tímida pelo Poder Judiciário brasileiro, bem como ataques por parte da sociedade, desconsiderando-se que no sistema prisional há pessoas presas, mas também trabalhadoras e trabalhadores ligados ao Estado pelos mais variados vínculos. Além disso, todas e todos possuem familiares, que também estarão expostos à Covid-19. O sistema prisional é um espaço de constante fluxo de pessoas. Algumas unidades dependem, inclusive, da contribuição de familiares para itens básicos da vida carcerária como materiais de higiene e vestuário.

De acordo com informações veiculadas na mídia, alguns estados como Amazonas, Rio de Janeiro, Pará e Ceará já se encontram com seus sistemas de saúde saturados ou em via de saturação. Caso a Covid-19 se espalhe pelo sistema prisional, teremos perto de 700 mil pessoas, sem contar os trabalhadores e trabalhadoras e familiares, sujeitos a contrair a infecção e transmiti-la a outrem, não havendo prognósticos de que o sistema de saúde nacional possa abarcá-los.

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) expediram a Nota técnica conjunta 01 de 2020 que, ao tratar da temática do uso de contêineres, conforme proposta do Depen, expressamente consigna que “o estado de calamidade decorrente da pandemia Covid-19 não outorga salvo conduto ao Estado brasileiro para desrespeitar direitos das pessoas sob sua custódia, submetendo-as a situação ainda mais vulnerável do que as que já se encontram em um sistema reconhecido como inconstitucional”.

Por último, não se olvide que o tratamento conferido à população carcerária brasileira tem raízes em nosso passado escravocrata, sendo certo que o depósito de corpos humanos em celas de metal infelizmente nos remete ao transporte de pessoas da África ao nosso país nos abomináveis navios negreiros, também conhecidos como “tumbeiros”, dada a quantidade de mortes no trajeto ruma às Américas.

Assim sendo, o país precisa adotar medidas sérias e eficazes para o enfrentamento da Covid-19 no sistema prisional brasileiro, deixando de lado paliativos ou medidas que historicamente se mostraram inadequadas, primando pela diminuição da quantidade de pessoas aglomeradas em espaços superlotados e incapazes de lhes conferir tratamento digno. Deve-se ser vedada a utilização de contêineres ou estruturas similares, garantido-se o respeito à Constituição de 1988 e às normas de execução penal.

É também imprescindível um olhar mais sensível à orientação do Conselho Nacional de Justiça, constante na Recomendação 62, que visa à manutenção da vida e liberdade daqueles que não deveriam estar encarcerados, tudo isso sem prejuízo da necessidade de fortalecimento do acesso à saúde no cárcere no Brasil, por se tratar de direito fundamental de todas e todos, nos termos da Constituição de 1988 e dos tratados internacionais dos quais o país é signatário.

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